Álvaro Cunhal no XIII Congresso (*)
Sobre a identidade do Partido Comunista Português
«Devemos sublinhar que as características fundamentais do PCP que constituem a sua identidade e foram adquiridas ao longo da sua existência e da sua luta, não correspondem a princípios, conceitos e práticas intemporais e imodificáveis. Elas têm um conteúdo próprio e diferenciado pois foram caldeadas pelo trabalho colectivo, pelo envolvimento no movimento de massas, pela militância, pelo sentido participativo, a generosidade e a disponibilidade revolucionária dos seus membros. Tais características fundamentais correspondem assim a princípios, conceitos e práticas desenvolvidas e enriquecidas com criatividade pelo próprio Partido. Elas são condição indispensável para que o PCP continue a ter na vida nacional a intervenção de que o povo português necessita e que o PCP está em condições de concretizar porque é e continuará sendo um partido comunista. (…)
A natureza de classe do Partido
Entre as características essenciais da sua identidade, o Partido afirma-se como o Partido da classe operária e de todos os trabalhadores, seguro de que os direitos dos trabalhadores são pedra de toque de qualquer regime democrático e a emancipação dos trabalhadores é parte integrante da emancipação de toda a humanidade.
Ao mesmo tempo, o PCP afirma-se também como firme defensor dos interesses e das reclamações de todas as classes e camadas antimonopolistas e do seu importante papel na solução dos grandes problemas nacionais e na vida democrática da sociedade.
Daí poder também dizer-se que é no PCP que essas classes e camadas – designadamente os intelectuais e os agricultores – encontram o seu melhor defensor, o melhor posicionamento para a sua acção política, no fim de contas, um partido que também é o seu.
O nosso Partido afirma-se também como força política da vanguarda, com o conceito que um partido não é vanguarda por se afirmar como tal ou institucionalizar tal designação mas porque, sempre ligado ao povo, apelando à intervenção directa, activa e permanente do povo, aponta com correcção os objectivos e o caminho da luta e estimula a luta das massas populares de forma a aproximá-las do nível de vanguarda e com a consciência de que são elas que têm que se libertar por suas próprias mãos.
Alguns membros do Partido têm defendido que o Partido deveria abandonar a sua natureza de classe e a sua concepção de vanguarda por se tratar de concepções «anacrónicas». Embora naturalmente com as diferenças entre as pessoas que a defendem, tal concepção tem subjacentes duas ideias principais hoje em voga entre teorizadores: uma é que com o desenvolvimento económico a classe operária está desaparecendo e outras classes estão assumindo o principal papel de transformação social. Outra é a de que no mundo deste fim de século o capitalismo se está a democratizar e os antagonismos e a luta de classes tendem a desaparecer face aos interesses gerais da humanidade e aos problemas globais que urge em comum resolver.
(…)
É certo que se estão dando importantes mutações na composição social da sociedade e na composição e características sociais da própria classe operária.
Mas não só é discutível que, considerado global e mundialmente o capitalismo, a tendência universal seja neste fim de século para a diminuição da classe operária, como em Portugal, apesar de mutações por vezes rápidas que se verificam no tecido social, a classe operária e os trabalhadores assalariados em geral continuam a constituir a principal força social no processo produtivo.
É também certo que o desenvolvimento económico mundial neste fim de século contém como elementos característicos uma mais complexa e universal divisão do trabalho, os sistemas de integração, novas formas de estreita e estável cooperação internacional nas esferas científica e tecnológica.
É também certo que a tarefa central de toda a humanidade – a defesa da paz a fim de evitar o holocausto nuclear – assim como a solução dos chamados problemas globais, como os problemas ecológicos, a fome, a doença, o esgotamento de recursos naturais, a explosão demográfica, exigem a estreita cooperação dos povos e de todos os Estados independentemente do seu sistema social e do seu regime político.
Entretanto estas realidades não eliminam os antagonismos de classes nas sociedades capitalistas e a luta de classes como elemento motor nesses países da evolução social e política.
A natureza de classe do nosso Partido está na origem da sua criação, como da criação dos partidos comunistas em geral. E, se é certo que muitos conceitos de Marx e Engels, válidos na sua época, não correspondem mais a realidades deste fim de século, corresponde a uma realidade a necessidade apontada por Marx e Engels de «um partido operário, constituído não como a cauda de qualquer partido burguês, mas sim como partido independente, que tem o seu próprio objectivo e a sua própria política».
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A classe operária e todos os trabalhadores continuam a ter absoluta necessidade de um partido de classe, de um partido completamente independente dos interesses, concepções e política dos capitalistas, dos exploradores. (…)
Uma ideologia, um guia para a acção
O nosso Partido tem-se afirmado e continua a afirmar-se um Partido marxista-leninista. É ocasião de insistir em que não se trata de um rótulo, nem do apego acrítico a teorias, conceitos e ideias feitas ultrapassadas pela vida.
O marxismo-leninismo é intrinsecamente dialéctico e antidogmático. Maus advogados do marxismo-leninismo são aqueles que transformam os princípios teóricos em verdades eternas. Maus advogados do marxismo-leninismo são aqueles que transformam o princípio teórico em dogma, o dogma em lei objectiva e esperam que a suposta lei objectiva, porque é objectiva, transforme a realidade segundo o princípio arvorado em dogma.
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O marxismo-lennismo deve enriquecer-se incessantemente com o estudo das novas situações, fenómenos, processos, conhecimentos e experiências.
Não têm razão aqueles que dizem que o PCP, ao confirmar-se como partido marxista-leninista, se afasta do conhecimento e da exacta explicação da realidade do mundo contemporâneo e designadamente da realidade portuguesa.
Pelo contrário. O marxismo-leninismo, aberto para a vida, é um instrumento poderoso para a análise das realidades. E o abandono do marxismo-leninismo afasta e leva a falsas explicações das novas realidades aqueles que o abandonam.
Verificam mutações nos sistemas económicos e na sua interacção e relacionamento? São defrontados e entram em pânico pelas derrotas do socialismo no leste europeu e extasiam-se pelos avanços tecnológicos e das forças produtivas no sistema capitalista? Verificam a inevitabilidade objectivamente considerada do aprofundamento da divisão internacional do trabalho e dos processos de integração? Verificam melhoria das condições de vida e realizações de natureza social em países capitalistas avançados? Verificam alterações na composição social da classe operária?
Verificam uma crescente participação dos pequenos aforros no capital accionista das grandes empresas? Abandonando o marxismo-leninismo, alguns avançam imponderadamente uma tentativa de explicar as novas situações e fenómenos com apressadas teorizações que vertiginosamente dogmatizam. Que o mundo caminha para um sistema socioeconómico único. Que o capitalismo se está a democratizar e a perder o seu carácter explorador. Que o Estado perdeu a sua natureza de classe e que a luta de classes desaparece também, donde se conclui que os partidos comunistas, partidos dos trabalhadores, não têm mais razões de existência no mundo actual.
Sucede porém que, com tais teorizações, são estes teorizadores que, abandonando o marxismo-leninismo, se afastam de algumas das mais significativas realidades do mundo contemporâneo que aliás não contradizem aquelas que observam na vida. Da exploração capitalista. Da centralização e concentração do capital. Da natureza exploradora e agressiva do imperialismo. Do conflito existente em termos históricos entre o sistema capitalista e um sistema socialista. Da natureza de classe da política dos Governos e dos Estados. Da existência de classes antagónicas, de conflitos de classes e da luta de classes.
Em contacto com a vida, libertado de conceitos dogmáticos, sujeito à prova das mutações da realidade e a um aprofundamento da investigação das numerosas áreas das suas teorias, o marxismo-leninismo é um poderoso instrumento de análise da realidade em mudança e um guia para a acção daqueles que não apenas conhecem o mundo mas que lutam para transformá-lo. (…)
Os princípios orgânicos do Partido
(…) Importa antes de mais fazermos uma ideia correcta do que para o nosso Partido tem sido e é o centralismo democrático. Importa examinar os conceitos e a prática.
Uma concepção básica que só os espíritos dogmáticos podem esquecer é que na estrutura e funcionamento do Partido não há regras intemporais e imutáveis. O nosso Partido não tem do centralismo democrático uma concepção dogmática. Considera como essencial no conceito assegurar simultaneamente a democracia interna, uma única orientação geral e uma única direcção central.
Embora as circunstâncias históricas determinem inevitavelmente a acentuação a vertente centralista ou da vertente democrática, não pode considerar-se conforme com a ideia básica do centralismo democrático nem o estabelecimento de uma direcção central autoritária e dirigista, que apague e impeça a democracia interna, nem o estabelecimento de tais regras e práticas na vida interna que, a pretexto da democracia, o Partido deixe de ter uma direcção central e uma orientação geral por todos reconhecida.
É uma realidade que não pode ser contestada que o nosso Partido desenvolveu criativamente os princípios do centralismo democrático no sentido do aprofundamento da sua democracia interna, do reforço dos direitos e liberdades dos militantes, da concepção e generalização da direcção colectiva e do trabalho colectivo com riquíssima expressão em constantes iniciativas na base da informação horizontal e discussão horizontal, da larga participação dos militantes na análise e elaboração das orientações, da descentralização de competências que permite que dentro da orientação geral do Partido todos os organismos e organizações tenham grande capacidade de decisão e iniciativa. Temos a esse respeito um rico património ideológico e uma prática democrática que nos diferenciam de outros partidos.
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Do debate resulta com nitidez que, de acordo com os princípios essenciais do centralismo democrático tal como os define o nosso Partido, o colectivo partidário reclama uma mais rigorosa definição e aprofundamento da democracia interna do Partido.
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É sabido que alguns membros do nosso Partido, ao reclamarem o abandono do centralismo democrático, têm fundamentalmente em vista o reconhecimento de tendências organizadas no Partido, ou seja, de fracções constituídas em torno de plataformas políticas próprias e de chefes próprios, com representantes no Comité Central e o direito dos militantes que discordem da orientação do Partido combaterem publicamente a orientação do Partido e recusarem-se a actuar segundo a orientação do Partido.
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É nossa opinião que, numa situação tão complexa, há que distinguir as posições e as atitudes. Há que ganhar para o Partido camaradas que dele se podem estar a distanciar. Ter opiniões contrárias às da Direcção do Partido não só não é nenhum crime como é um direito de qualquer militante. Mas formar grupos fraccionários que actuam conspirativamente e organizadamente dentro do Partido, e fazendo campanha na comunicação social, inserindo a sua acção na campanha anticomunista mais vasta contra o Partido, é que não é de admitir. Correspondendo à vontade do colectivo partidário, sem precipitações, cremos que é questão que terá de ser resolvida.
O internacionalismo e o movimento comunista
Entre as características essenciais da identidade do nosso Partido conta-se o internacionalismo. Que o PCP é um partido patriótico e internacionalista não é apenas uma afirmação de sempre, mas uma atitude e uma prática de sempre.
Ao utilizarmos a designação «internacionalismo proletário» não esquecemos as profundas transformações sociais verificadas no mundo, desde que Marx e Engels lançaram a palavra de ordem «proletários de todos os países uni-vos!». O proletariado sofreu profundas alterações. Discute-se mesmo se em alguns países capitalistas se pode continuar a falar em protelariado.
Mas a designação «internacionalismo proletário» tem a virtude de lembrar que as mais profundas raízes do internacionalismo são os interesses comuns dos trabalhadores de todos os países na luta contra a exploração capitalista, contra a opressão, pelo progresso social, a democracia, a paz e o socialismo.
A defesa da paz e a solução de outros problemas globais alargam as relações de cooperação e de solidariedade aos mais diversos sectores sociais e forças políticas. Criam novas relações internacionalistas. Mas não anulam as relações específicas de cooperação e solidariedade entre os trabalhadores, entre os povos e nações em luta contra o imperialismo, entre os comunistas e outras forças revolucionárias.
Não apenas o debate agora realizado na preparação do Congresso, mas a acção de todos os dias, confirma as profundas convicções e profundos sentimentos internacionalistas de amizade e solidariedade do nosso Partido.
Estais certamente de acordo, camaradas, que, no mundo em mudança em que vivemos, num momento em que grassam a capitulação e o oportunismo, o nosso Partido reafirme aqui, neste Congresso, que os comunistas portugueses são e continuarão a ser solidários para com os comunistas, para com as forças revolucionárias e progressistas, para com os trabalhadores de todos os outros países, para com os povos e nações em luta contra o imperialismo.
Para nós, comunistas portugueses, patriotas que somos, ser comunista é obrigatoriamente ser também internacionalista. (…)»
(*) Extractos da intervenção do Secretário-Geral do PCP, Álvaro Cunhal, na abertura do XIII Congresso (Extraordinário) de Maio de 1990.