1992, Álvaro Cunhal, O Partido Comunista da «Reorganização» dos anos 40 ao 25 de Abril

 

Conferência de Álvaro Cunhal
no Seminário «Para a história da oposição ao Estado Novo»
Universidade Nova de Lisboa – 9 de Abril de 1992

“O Partido Comunista: da “reorganização” dos anos 40 ao 25 de Abril”é o tema que me foi atribuído no convite para fazer esta conferência. É um tema aliciante. Exige porém duas observações prévias.

A primeira: numa curta conferência, falar de um quarto de século de vida de um partido que como o PCP desenvolveu ininterruptamente uma intensa e acidentada actividade ao longo desses anos não é tarefa fácil. Não será possível ir além de algumas anotações referentes a aspectos selecionados. Perdoem pois as mil e uma omissões de factos e ideias de que se esperava talvez ouvir falar.

A segunda: na história de um partido cada momento tem sempre um passado que contribui para explicá-lo e precede um futuro que o confirma ou desmente. Perdoem-se pois, no decurso da minha exposição, algumas referências, embora fugidias, a actividades anteriores ou posteriores ao período referido no tema que me foi atribuído.

1. Breve referência a anos anteriores

Desde logo não se pode falar da reorganização do PCP nos anos 1940/41 se não tivermos em conta alguns importantes momentos anteriores da sua vida e actividade. Lembremos: a fundação em 1921, a actividade legal até ao golpe militar de 28 de Maio de 1926, a efectiva organização na clandestinidade a partir de 1929 com Bento Gonçalves, secretário-geral, a luta do Partido, da classe operária e de amplos sectores sociais nas condições da estruturação fascista do Estado nos anos 1933 e seguintes, a influência crescente nos sindicatos até à sua ilegalização em 1933/34, a luta ideológica contra o anarco-sindicalismo e o reviralhismo e os sucessivos e profundos golpes da repressão que conduziram à grande crise do Partido nos anos 1938/40 tornando necessária a reorganização de 1940/41.

No movimento comunista, são de referir nessa época a construção da sociedade nova na União Soviética, grandes progressos dos partidos comunistas, a realização do VII e último Congresso da Internacional Comunista (Agosto de 1935), a vitória das frentes populares em França e Espanha, as revoluções em marcha no continente asiático e sul-americano.

Na vida internacional, sobressaiem ainda, como acontecimentos maiores, a subida de Hitler ao poder em 1933, a guerra da Itália fascista para a conquista da Abissínia, agressões do militarismo japonês no Extremo Oriente, o golpe fascista em Espanha seguido da guerra civil (1936/39). Finalmente o início da 2ª Guerra Mundial.

Só tendo em conta estes antecedentes do período imediatamente anterior ao que esta conferência respeita (desde a reorganização de 1940/41 até ao 25 de Abril) é que se pode avaliar correctamente o que representou a reorganização do PCP nos anos 40/41, a transformação do PCP num grande partido nacional, a sua luta ininterrupta que se seguiu ao longo de mais de 30 anos e a contribuição do PCP para o derrubamento do fascismo e a instauração da democracia com o 25 de Abril.

2. Significativo o momento da reorganização

É particularmente significativo que essa reorganização do PCP tenha sido empreendida num momento em que parecia que o terror fascista ía ganhar todo o mundo e a ditadura em Portugal, terminada a fascização do Estado, estava no aparente apogeu do seu poder.

A guerra civil espanhola terminara com a derrota da República e a instauração da ditadura de Franco, cujo golpe foi militarmente apoiado pela Alemanha de Hitler e a Itália de Mussolini e contou com o activo apoio de Salazar. Os exércitos nazis tinham varrido e ocupado a Europa continental, chegavam aos Pirineús e avançavam até às portas de Moscovo, de Leninegrado e de Stalinegrado. O Japão militarista conquistava o Oriente.

O que então apregoavam os fascistas, faz lembrar o que hoje apregoam alguns: que o comunismo tinha morrido.

O governo declarava que o PCP estava definitivamente liquidado e tanta confiança mostrava em que com a derrota da URSS na guerra o comunismo seria uma causa definitivamente perdida que libertou em 1940 do Tarrafal e de outras prisões vários membros responsáveis do Partido.

Em tais circunstâncias, empreendendo a reorganização, creio poder dizer-se que o PCP mostrava como os comunistas compreendem os seus deveres para com o povo e para com o país, como não recuam ante obstáculos e dificuldades, como não se deixam intimidar pela mais brutal repressão e como a sua visão da história e da sociedade os não faz perder a confiança no futuro.

3. Brevíssimo índice de mais de 30 anos de luta

É impossível, nos poucos minutos disponíveis para o efeito, dar uma nota cronológica, mesmo brevíssima, da actividade do PCP nos 33 anos considerados nesta conferência. Podemos entretanto, como pontos de referência para melhor entendimento, considerar quatro períodos:

De 1940 a 1949, nos anos da 2ª Guerra Mundial e após a derrota hitleriana, a vitória da URSS e Aliados e a instauração de novos regimes democráticos – a transformação do PCP num grande partido nacional ligado às massas. Sobressaiem neste período a criação de uma organização nacional partidária, a realização dos III e IV Congressos do Partido (1943 e 1946), a publicação regular do “Avante!” e outra imprensa clandestina, o impetuoso fluxo do movimento operário com grandes greves e outras lutas de massas, a criação e organização de amplos movimentos unitários antifascistas, a batalha da Oposição pela primeira vez no terreno eleitoral da ditadura (1945 e 1949).

De 1950 a 1959 – o PCP nos anos da guerra fria. Sobressaiem, neste período de refluxo revolucionário, a realização do V Congresso sob o impacto do desvendar do culto da personalidade de Staline no XX Congresso do PCUS, grandes lutas de massas e novas lutas no terreno eleitoral fascista, com relevo para a campanha do General Humberto Delgado nas eleições presidenciais de 1958.

De 1960 a 1967 – a luta revolucionária na situação de crise geral da ditadura fascista. Sobressaiem neste período o novo fluxo revolucionário de 1961/62, o ascenso geral da luta popular, a luta contra a guerra colonial e a realização do VI Congresso que aprovou o Programa do PCP para a revolução antifascista como revolução democrática e nacional e traçou a orientação para o levantamento
nacional armado.

De 1968 a 1974 – a luta no período de agonia da ditadura. Sobressaiem neste período o desenvolvimento geral da luta democrática em todas as frentes (luta operária, luta sindical, luta dos estudantes, luta contra a guerra colonial, lutas nas forças armadas) aproximando-se a crise revolucionária que conduziu ao 25 de Abril, ao derrubamento da ditadura, à revolução democrática e à instauração da democracia portuguesa.

Este brevíssimo enunciado não pretende constituir a arrumação do que poderia considerar-se etapas da situação nacional e da actividade do PCP, mas apenas uma indicação geral que melhor facilite a compreensão do que a seguir será dito acerca da natureza, dos objectivos e do Programa do PCP, das suas formas de intervenção e de luta, da sua contribuição para a derrota da ditadura e para a conquista da liberdade e da democracia pelo povo português.

4. Porquê o PCP o único a sobreviver e a reforçar-se sob a repressão

É útil relembrar que na maior parte desses anos o PCP foi o único partido que resistiu à repressão fascista e não só sobreviveu nas condições de clandestinidade como se tornou um influente partido nacional. Os partidos existentes à data do golpe de 1926 cessaram praticamente a sua actividade e acabaram por desaparecer completamente da cena política. O Partido Socialista cessou a sua actividade na Conferência Nacional que foi autorizado a realizar em 1933 e só 40 anos mais tarde (em 1973) foi criado o Partido Socialista actual.

Neste intervalo, houve sem dúvida correntes de opinião e personalidades destacadas assumindo posições políticas diversas, formaram-se grupos, realizaram-se reuniões de que sairam declarações de intenção. Há siglas que desapareceram com a mesma rapidez como apareceram. Em movimentos unitários participaram democratas representando formalmente partidos como é o caso do Partido Socialista Português e do Partido Repúblicano. Mas com excepção da União Socialista, do Directório Democrático Social (nos anos 60), da ASP, PS e FAP já no período de crise final do regime nenhuma outra corrente política teve expressão organizada ao longo dos 34 anos considerados nesta intervenção.

É por isso legítimo perguntar o que tornou possível ao PCP, ao contrário do sucedido com outros partidos e correntes, resistir e conduzir uma luta ininterrupta durante essas dezenas de anos.

Podem apresentar-se algumas causas fundamentais.

A primeira, a existência de objectivos de luta correspondendo a aspirações profundas do povo português e a convicção de serem objectivos justos e merecedores de todos os sacrifícios.

A segunda, a existência de um colectivo de homens e mulheres firmemente decididos a travar a luta contra o fascismo nas condições de acção clandestina e de vida clandestina e dispostos a todas as provas, incluindo dar a vida se tal se impusesse, como em muitos casos de facto se impôs.

A terceira, a criação de elementos logísticos clandestinos essenciais: instalações, tipografias, imprensa clandestina, sistemas de ligação e transportes, bem como uma direcção experimentada e capaz, uma organização estruturada e os chamados métodos conspirativos de trabalho capazes de assegurar a defesa da repressão fascista.

A quarta, a ligação estreita do Partido aos trabalhadores e às massas e (através da luta) a criação de uma sólida e permanente base de apoio e fonte e reserva de quadros, de inspiração e de energias revolucionárias.

Cabe dizer que a reorganização de 1940/41 pecou inicialmente por partir de uma conclusão não provada segundo a qual a causa fundamental das sucessivas prisões que atingiam a direcção do Partido se deviam necessariamente a provocação policial instalada entre os quadros dirigentes. Substimaram-se as insuficiências dos métodos de defesa numa tão severa clandestinidade e o resultado foi que já depois da reorganização novos golpes atingiram a direcção até que a partir de 1942 se realizou uma transformação radical desses métodos.

Estas características explicam que, ao contrário de numerosos grupos políticos que se formaram neste período e tiveram curta existência, o PCP tenha desenvolvido com permanência a sua actividade, tenha dado uma contribuição determinante para a criação de condições que conduziram à vitória do 25 de Abril de 1974 e tenha aparecido com o 25 de Abril com força organizada, base de apoio e capacidade de intervenção imediatas e operativas que então faltaram a outros sectores políticos.

5. Vida clandestina e constante preocupação democrática

Forçado a actuar numa rigorosa clandestinidade, sujeito a uma violenta repressão, o Partido era forçado à centralização de tarefas essenciais e a medidas de cuidadosa defesa. Mas embora com soluções diferentes em momento diferentes, procurava-se assegurar um funcionamento democrático compatível com tal situação.

Tal como praticamente todos os partidos comunistas do mundo, por influência do PCUS e da Internacional Comunista, o PCP sempre afirmou ter uma estrutura e um funcionamento fundamentados no centralismo democrático. Mantendo-se esta expressão, os conceitos e a prática sofreram entretanto através dos anos modificações importantes.

A defesa contra a repressão nas condições de clandestinidade a que o PCP era obrigado, exigia compartimentação de organizações, militantes e tarefas, secretismo de numerosos dados, forte centralização de competências de direcção e rigorosa disciplina. Mas apesar de erros cometidos em alguns momentos de centralismo excessivo, foi constante a preocupação de, mesmo em tais condições, assegurar métodos democráticos de trabalho.

Em qualquer dos Congressos realizados nessa época (III em 1943, IV em 1946, V em 1957 e VI em 1965) a par de competências centralizadas, de disciplina, de unidade, foram sublinhados princípios democráticos como a eleição de todos os organismos de direcção (embora de impossível generalização nas condições de clandestinidade) a prestação de contas e direitos fundamentais dos membros do Partido: de defenderem as suas opiniões, de discordarem dos organismos superiores, de crítica, de participação na discussão ampla e democrática de toda a actividade partidária e na elaboração das directrizes gerais do Partido.

O IV Congresso sublinhou a necessidade e o dever de adoptar formas democráticas “sempre que não colidam com o trabalho conspirativo”. O V Congresso procedeu a uma severa crítica ao exagero do centralismo e a métodos autoritários de direcção e aprovou Estatutos do Partido. O VI Congresso insistiu nos princípios democráticos e no trabalho colectivo. Tanto concepções centralistas como outras depois caracterizadas como “anarco-liberais” foram ultrapassadas.

Tanto a experiência nacional, como a internacional mostraram que, com o enunciado de princípios do centralismo democrático, foi possível instaurar de facto situações extremamente diferenciadas, com numerosos casos de desrespeito pelos princípios relativos à democracia interna e a acentuação dos princípios do centralismo, levando em alguns partidos a situações de autoritarismo e mesmo despotismo de um núcleo dirigente.

No PCP, além de um crescente respeito pelas opiniões diferenciadas, a democracia interna ganhou novos valores e aprofundou-se progressivamente através do conceito e da prática do trabalho colectivo. Foi uma experiência extremamente útil o facto de não ter havido praticamente secretário-geral do Partido durante 26 anos. Bento Gonçalves preso em 1935, morreu no Tarrafal em 1942. Depois da sua morte, durante mais 19 anos, não houve secretário-geral. Só em 1961 foi designado novo secretário-geral, o que não alterou nem os princípios nem a prática de direcção colectiva e do trabalho colectivo que se tinham anteriormente adoptado nos organismos mais responsáveis e se foram alargando no Partido, como uma das características essenciais da democracia interna.

Não consideramos que a admissão de tendências, de campanhas e de lutas entre dirigentes com as suas plataformas próprias, reduzindo o resto do partido a apoiantes e votantes, seja uma afirmação de democracia superior ao conceito e à prática do PCP que se compreende a si próprio como um grande colectivo que determina a orientação e a acção.

Assim, de 1940 a 1974, o PCP conseguiu por um lado, com severas normas de funcionamento defender-se no essencial da repressão, mas conseguiu também, com preocupações, métodos, prática e critérios democráticos, criar um colectivo fraterno, coeso, ligado por fortes laços de solidariedade e confiança. Estes dois aspectos complementares contam-se entre os factores da capacidade de resistência e de intervenção do PCP ao longo de tantos anos de duras provas.

6. O regime fascista – ditadura do capital monopolista

A ditadura que tiranizou Portugal durante 48 anos anos liquidou as mais elementares liberdades dos cidadãos, apesar de as inscrever no artº 8º de um arremedo de Constituição. Censura, perseguições, prisões, torturas (por vezes até à morte), condenações por tribunais especiais, “medidas de segurança”, cidadãos presos até mais de 20 anos, polícia política omnipresente, legião fascista, partido fascista, organização fascista da mocidade – em tal situação viveu o povo português quase meio século.

Um tal regime para quê? para servir quem? um tal regime apenas para servir um homem, um ditador, e lhe fazer a vontade?

Com frequência se fala da ditadura de Salazar. De certa forma essa designação é correcta porque Salazar exerceu de facto um poder pessoal. Daí o interesse em conhecer não só o que fez mas também o que pensava e dizia, além do mais porque o seu pensamento e a sua fala também fizeram parte da sua acção.

Assim é de lembrar que Salazar proclamou um regime que nas suas próprias palavras era declaradamente antidemocrático , defendia abertamente a liquidação das liberdades dos cidadãos (“liberdade possível, autoridade necessária”), enaltecia as torturas (por vezes até à morte) infligidas pela polícia aos presos políticos com a cínica expressão de “alguns safanões a tempo”. No plano externo, considerava a vitória de Franco e a instauração da ditadura fascista em Espanha como vitória sua; vangloriava a expansão alemã antes da guerra gabando a ditadura fascista hitleriana como sinónimo de “civilização”; gabava o acordo de Munique e a contribuição que dizia ter-lhe dado o “génio político” de Mussolini cujo retrato tinha na sua secretária, de cuja ditadura enaltecia “as formidáveis alavancas espirituais” e da qual dizia “aproximar-se” a sua ditadura, dele, Salazar. Ao findar a 2ª Guerra Mundial decretou luto nacional pela morte de Hitler e considerou que o maior erro de Hitler foi ter perdido a guerra … Esta uma pequena amostra.

Seria porém insuficiente e deformador da realidade histórica caracterizar a ditadura como uma ditadura pessoal, sem considerar as forças sociais que dominavam o país, ao serviço das quais actuava a ditadura, a quem servia a liquidação das liberdades e a repressão fascista.

A este respeito, a análise do PCP distinguia-se da opinião de outras forças políticas.

No nosso entender, um aspecto essencial da política da ditadura, nomeadamente após a 2ª Guerra Mundial, foi a rápida formação de grandes grupos monopolistas dominantes da economia nacional, o que, num país atrasado como era Portugal, não poderia ter acontecido apenas pela centralização e concentração de capitais decorrente da concorrência (lei do desenvolvimento do capitalismo), mas que só foi possível pela intervenção do Estado obrigando à concentração industrial e bancária, à formação do capital financeiro, ao domínio pelos grupos monopolistas
dos sectores fundamentais da economia portuguesa.

Os casos dos Melos da CUF, dos Espírito Santo da banca, dos Champalimaud dos cimentos, alargando o seu domínio aos mais variados sectores e empresas e constituíndo grandes impérios económicos, contam-se entre os mais significativos.

Certamente esses senhores e seus clãs, aos quais actualmente estão de novo a serem entregues empresas de importância estratégica na economia portuguesa, não gostarão que se citem os seus nomes. Mas se seria inevitável falar deles se estivessemos fazendo uma conferência sobre o presente Portugal democrático, mais se justifica que o façamos ao falar da história da ditadura fascista na qual foram protagonistas e senhores.

Se tivermos em conta que os grupos monopolistas estavam intimamente associados ao capital estrangeiro e que os proprietários dos latifúndios e os capitalistas na agricultura se entrelaçavam e fundiam cada vez mais estreitamente com a banca e a indústria torna-se claro o fundamento do PCP quando definiu o regime fascista como a ditadura terrorista dos monopólios (associados ao imperialismo estrangeiro) e dos latifundiários.

E se tivermos em conta que os grupos monopolistas portugueses estavam também associados ao imperialismo estrangeiro na exploração e opressão nas colónias portuguesas e que o sistema colonial não só estava chegando mundialmenteao seu fim como era um factor de opressão do próprio povo português, melhor se compreende que, entre os objectivos definidos pelo PCP para a revolução antifascista, tenham sido inscritos a liquidação do poder dos monopólios, a reforma agrária, a libertação de Portugal do imperialismo e o direito dos povos das colónias portuguesas à independência.

Esta foi sempre uma diferença básica entre o PCP e outros sectores antifascistas. Estes consideravam a necessidade de instaurar um regime democrático, mas não punham em causa a continuação do poder económico e o efectivo domínio do país pelos grandes grupos monopolistas e pelos latifundiários. Tal posição explica que, já numa fase avançada da crise da ditadura e particularmente quando ela entrou na sua agonia, tenha não só havido dificuldades e divergências no movimento antifascista, mas que com vista a um acordo para pôr fim à ditadura fascista tenha também havido contactos entre algumas forças da Oposição e alguns dos mais poderosos grupos capitalistas, que sentiam que o fascismo deixava de estar em condições de defender e garantir os
seus interesses e temiam uma explosão revolucionária.

7. O Programa do PCP para a revolução antifascista

Quando se examinam as propostas que faziam as diversas forças políticas para o regime que deveria suceder à ditadura, não pode deixar de ter-se em conta que desde a 2ª Guerra Mundial (1939/45) ao 25 de Abril de 1974, quase 30 anos, se registaram radicais alterações na situação internacional, significativas alterações na situação nacional e uma evolução das organizações e do pensamento político da Oposição determinando importantes mudanças programáticas.

Se em relação ao PCP, em linhas gerais e simplificadas, quisermos definir o essencial dessas mudanças, podemos dizer que, na medida em que o Partido aprofundou a análise da realidade portuguesa, foi-se precisando a necessária complementaridade das vertentes política, económica, social e cultural da revolução antifascista, da revolução democrática, no quadro da independência e soberania nacionais.

Manteve-se entretanto sempre, como objectivo e tarefa central, como eixo da luta antifascista, a liquidação da ditadura fascista, a conquista da liberdade política, a instauração de um regime democrático.

Logo em Março de 1943 (pouco tempo portanto após a reorganização, ainda grassava a 2ª Guerra Mundial) nos “9 pontos-Programa para a Unidade Nacional”, aprovados no III Congresso (1943) e confirmados no IV Congresso (1946) se propunha a instauração da liberdade de palavra, de imprensa, de reunião, de associação, de crenças e cultos religiosos, a legalização das organizações operárias e progressistas” e a constituição de um Governo Provisório até que o povo português escolhesse os seus governantes através de eleições em sufrágio directo e em escrutínio secreto de uma Assembleia Constituinte.

O IV Congresso realizado em 1946, portanto já depois do fim da guerra, insistindo nos objectivos centrais das liberdades democráticas lançou a consigna de um Governo de Concentração Nacional para proceder à realização de eleições livres.

O V Congresso (1957), o Programa aprovado, a par de objectivos de carácter social, de objectivos relativos às estruturas socioeconómicas (nacionalização das empresas monopolistas e reforma agrária com a expropriação dos latifúndios), e do reconhecimento do direito dos povos das colónias portuguesas de África à imediata e completa independência, apontou como objectivo político central a instauração das liberdades e direitos dos cidadãos e de um regime verdadeiramente democrático.

O VI Congresso (1965) realizado já num período de crise da ditadura e guerra colonial, aprovou o “Programa do PCP para a revolução democrática e nacional” definindo 8 pontos ou objectivos fundamentais largamente desenvolvidos: 1º Destruir o Estado fascista e instaurar um regime democrático; 2º Liquidar o poder dos monopólios e promover o desenvolvimento económico geral; 3º Realizar a Reforma Agrária entregando a terra a quem a trabalha; 4º Elevar o nível de vida das classes trabalhadoras e do povo em geral; 5º Democratizar a instrução e a cultura; 6º Libertar Portugal do imperialismo; 7º Reconhecer e assegurar aos povos das colónias portuguesas o direito à imediata independência; e 8º Seguir uma política de paz e amizade com todos os povos.

O 1º objectivo foi definido como o “objectivo central” da revolução antifascista. Apontou-se a dissolução dos órgãos e instrumentos do poder fascista, a instauração e garantia das liberdades sindical, de palavra, de imprensa, de associação, de reunião, de greve e de manifestação; a liberdade de consciência, de divulgação das crenças e da prática do culto; a igualdade de direitos para todos os cidadãos independentemente do sexo, grau de instrução e situação
económica.

Adiantou-se como objectivo “uma organização democrática do Estado, uma câmara legislativa única eleita em sufrágio directo, universal e secreto para todos os cidadãos maiores de 18 anos, a designação do Governo pelo Parlamento e a sua responsabilidade perante este, eleições livres para todos os órgãos de administração local; a reorganização das forças armadas, a democratização da justiça.

Este breve enunciado permite aferir da importância central que no programa do PCP assumiu (como sempre assumiu ao longo dos 71 anos da sua história) a democracia política.

Isto relativamente ao programa. Mas são também oportunas algumas palavras relativas à acção.

Dando alta avaliação à luta antifascista de outras tendências, é uma verdade histórica que ao longo de dezenas de anos de ditadura, nenhum outro partido ou força política lutou com mais dedicação e coragem do que o PCP pela liberdade e a democracia. Muitos comunistas deram a vida e milhares de comunistas deram a sua liberdade para que finalmente o povo português alcançasse a sua. No VII Congresso realizado já na legalidade alcançada com o 25 de Abril foi divulgada uma informação concludente. O total dos anos passados na prisão pelos então 36 membros do Comité Central ultrapassou os 300 anos. Ninguém mais que os comunistas, porque foram mais cruelmente privados dela, conhecem o valor da liberdade. Esse valor foi ganho na luta, no sofrimento, na esperança, no sonho, no objectivo concreto das batalhas travadas.

Não é apenas uma afirmação programática mas um valor e um sentimento ganho na vida o facto de a política nacional que propomos ter como elemento determinante um regime de liberdade no qual o povo decida efectivamente o seu destino.

Através dos anos, pelas lições da própria actividade e pela cada vez mais atenta análise de experiências negativas noutros países, este aspecto central da nossa política e da nossa acção foi sendo cada vez mais afirmativo e convicto.

A democracia, para o PCP, tem (repito) quatro vertentes inseparáveis (a económica, a política, a social e a cultural). No que respeita à democracia política (com conceitos cada vez mais precisos e mais explicitados) o PCP sempre a inscreveu entre os seus objectivos essenciais, não só para um regime político a instaurar após o derrubamento da ditadura mas como um valor intrínseco e parte integrante e inalienável na sociedade socialista que propõe para o futuro de Portugal.

Não cabe no âmbito do tema que me foi proposto para esta conferência tratar da acção do PCP no 25 de Abril e após o 25 de Abril. Não se pode entretanto deixar de referir a contribuição em muitos aspectos determinante dada pelo PCP para a intervenção popular na liquidação do regime fascista e na conquista das liberdades democráticas, para a instauração e institucionalização do novo regime democrático, para a elaboração pela Assembleia Constituinte da Constituição da República que aí foi aprovada por todos os partidos, com excepção do CDS.

E não se pode tão pouco deixar de referir que na actualidade, quando tantas ofensivas são desenvolvidas contra liberdades e direitos dos cidadãos e contra elementos básicos da democracia política, o PCP trava a luta em sua defesa e propõe ao povo português uma política em que a democracia política é não só assegurada, como é aprofundada simultaneamente nas suas vertentes representativa e participativa.

8. Enriquecimento do projecto de sociedade socialista

Através dos 71 anos de existência, num mundo marcado nesses anos por grandes transformações, o projecto político do PCP foi-se corrigindo e enriquecendo e precisando com a experiência própria e as experiências alheias.

Os objectivos da sociedade socialista foram durante anos definidos na base dos escritos de Marx, de Engels, de Lénine, e das realizações da primeira grande experiência histórica da construção do socialismo na URSS.

A própria criação do PCP teve a determiná-la por um lado a consciência política da classe operária portuguesa ganha pela sua própria luta e por outro lado o impacto da revolução russa de 1917, dando o exemplo da conquista do poder pelos trabalhadores e do empreendimento da construção de uma nova sociedade com a abolição da exploração e opressão capitalista e com a criação dos sovietes e de formas novas de democracia participativa.

Nos anos que se seguiram à 2ª Guerra Mundial, o papel mundialmente reconhecido desempenhado pelo povo soviético sob a bandeira do socialismo e apoiando-se nas realizações do socialismo para a derrota da Alemanha nazi e a libertação do mundo do terror e da barbárie fascista confirmou por um lado os extraordinários êxitos também mundialmente reconhecidos alcançados pela URSS na construção do socialismo e levou, por outro lado, a uma avaliação insuficiente, estreita, unilateral e demasiado confiante da política e da acção do
PCUS e de Stáline, considerado então como um dirigente genial.

As grandes transformações e conquistas revolucionárias na União Soviética (no domínio económico, social e cultural) foram tomadas como experiências e exemplos quase de validade universal e integraram embora apenas em termos muitos gerais o projecto político do PCP de uma sociedade socialista para Portugal.

Nesses anos, a par da falta de conhecimento profundo e completo da realidade soviética apesar das relações estreitas com o PCUS, faltou-nos uma posição crítica aberta a aspectos que começamos a analisar na base da experiência e do pensamento próprio do nosso Partido.

O tempo, as próprias análises do Partido, designadamente da sociedade portuguesa, as experiências directas da própria luta, o juízo crítico de aspectos negativos que íamos apreciando na realidade da URSS e outros países socialistas foram afastando o PCP de quaisquer “modelos” e enriquecendo, modificando, dando nova configuração ao seu Programa.

É certo que no Programa aprovado no VI Congresso (1965) se identifica a revolução socialista como “a conquista do poder pelo proletariado” e a “ditadura do proletariado” expressões que actualmente nos parecem ideologicamente ultrapassadas e que foram riscadas do Programa do PCP no VII Congresso (extraordinário) realizado em Outubro de 1974.

Importa porém sublinhar que a par das grandes vertentes económica, social e cultural da sociedade socialista então prefigurados (abolição da exploração do homem pelo homem, propriedade social sobre os principais meios de produção, desenvolvimento harmonioso de todos os sectores e recursos da economia nacional, intervenção da pequena produção na produção socialista, desenvolvimento contínuo da produção, elevação constante do bem-estar material e espiritual dos trabalhadores, fim da miséria, do desemprego, da desigualdade social, princípio a cada um segundo o seu trabalho, cultura como património e instrumento das amplas massas populares) – a par dessas vertentes – a vertente da democracia política foi claramente sublinhada.

Desde logo a luta pela revolução democrática e nacional (com todos os seus objectivos respeitantes às liberdades e direitos dos cidadãos) é considerada como “parte constitutiva da luta pelo socialismo”. Insiste-se em que “as liberdades democráticas serão asseguradas” e admite-se “um sistema pluripartidário”. Define-se o regime que se projecta como um “novo tipo de democracia incomparavelmente superior a todos os tipos actualmente existentes”, afirmando-se que “o Estado socialista estabelecerá a mais ampla forma de democracia, garantindo a participação das massas trabalhadoras no Governo e na direcção da vida política e económica do país através dos órgãos do Estado e das organizações de classe, sindicais, políticas e outras”.

O XIII Congresso (extraordinário) do PCP realizado em 1990 apontou como causas da derrocada dos regimes existentes nos países do leste da Europa situações e soluções que representaram não os ideais dos comunistas mas o afastamento desses ideais, como sejam o poder dos trabalhadores e do povo e a sua participação criativa em toda a vida da sociedade, a democracia política associada à democracia económica, social e cultural, o desenvolvimento impetuoso das forças produtivas resultante das novas estruturas socioeconómicas, o melhoramento radical das condições de vida, um partido indissoluvelmente ligado às massas e uma teoria dialéctica capacitada para responder às novas realidades e para ser um guia para a acção. Ao apontar tal causa do fracasso do “modelo” que se instalou nesses países, o PCP reafirmou assim características essenciais dos ideais comunistas, tal como os comunistas portugueses os compreenderam, os foram aperfeiçoando, definindo e traduzindo na luta de todos os dias através dos anos.

A luta de 71 anos do PCP, constituiu uma longa aprendizagem. Se o PCP tivesse ficado cristalizado e imóvel no pensamento e na acção ante as grandes transformações que se operaram ao longo do século, há muito teria morrido. O PCP respondeu às novas situações que foi defrontando, aprendeu com a vida, enriqueceu conceitos. Manteve simultaneamente valores essenciais que são a razão da sua própria existência.

Esses valores não são produto de ideias concebidas em abstracto, elaborados em gabinetes isolados da vida, no terreno da teoria separada da prática. São a substância da própria existência e da própria luta, cimentada nas convicções e na acção de gerações de comunistas.

Qualquer estudioso que se dê ao trabalho de examinar atentamente os objectivos da acção concreta do PCP através dos anos e as lutas conduzidas pelo PCP – designadamente nos anos que constituem o tema desta conferência – poderá verificar que, com fins imediatos muito variados, as posições assumidas e as lutas travadas se podem arrumar em cinco grandes objectivos gerais, constantes, unificadores em que todas as lutas (apesar dos fins específicos de cada uma) se inscreveram: a luta pela liberdade e a democracia, eixo político central da luta do
Partido ao longo de toda a sua existência; a luta em defesa dos interesses dos trabalhadores e do povo em geral, pela melhoria das suas condições de vida; a luta pelo desenvolvimento do país inseparável do progresso social e da vertente social; a luta em defesa da independência nacional; e a solidariedade internacionalista para com as forças revolucionárias, os trabalhadores e os povos dos outros países.

Estes objectivos inspiradores da luta convicta, dedicada e apaixonada dos comunistas através dos anos inseriram-se não apenas na consciência e na sensibilidade ganhas na luta, mas como valores do Programa do PCP, tanto para o regime democrático a instaurar após o derrubamento da ditadura, como para a sociedade socialista que o PCP como seu último objectivo sempre teve no horizonte do Portugal futuro. A nossa reflexão na actualidade é certamente diferente daquela que foi em anos passados. Cremos que assim sucede com o pensamento e a acção que se movem com o tempo. Por isso seria altamente instrutivo que partidos e indivíduos que têm a sua história a contar trouxessem à memória e procedessem à reflexão (como nós fazemos) acerca do que noutras épocas pensaram, afirmaram, defenderam e fizeram.

9. Sempre voltado para as massas

Não é exacta a ideia por vezes avançada de que o PCP nos anos sombrios de clandestinidade se caracterizava por ser um núcleo político fechado, mergulhado numa existência conspirativa e secreta, afastado da vida, do povo, das massas. Tal ideia não corresponde à realidade.

Sem dúvida que, durante os 48 anos de ditadura, o PCP foi a força política que, pelos métodos de organização e acção adoptados, se revelou mais capaz de actuar nas condições de uma severa clandestinidade. Mas, ao mesmo tempo, mais que nenhuma outra força política estabeleceu, manteve e aprofundou nesses anos a ligação com a classe operária, com o povo, com a vida social, política e cultural do país. Quem esteja interessado em investigar esta matéria, encontra valiosos elementos informativos nos jornais clandestinos publicados regularmente (nomeadamente o “Avante!”, “O Militante”, “O Têxtil”, “O Corticeiro”, “O Camponês”,”A Terra” e outros) e poderá tomar contacto com uma informação viva de situações, de problemas e de lutas mostrando essa profunda ligação. Ligação diária, ligação constante.

Diferentemente do PCP e de alguns outros sectores democráticos manifestaram-se nesses anos duas atitudes extremas. A daqueles que recorrendo apenas muito limitadamente e de forma insipiente a métodos clandestinos intervinham quase exclusivamente quando a ditadura abria campo a actividades legais e semi-legais. E a daqueles que menosprezando e condenando a criação e aproveitamento de possibilidades de acção legal e semi-legal defendiam a exclusividade da organização e acção clandestina.

O PCP por seu lado, como meio indispensável para chegar às massas, informá-las, influenciá-las, esclarece-las, estimulá-las, organizá-las para a luta, não só aproveitava as possibilidades de acção legal e semi-legal que se pudessem oferecer, como tomava a iniciativa de criá-las. São exemplos de particular significado a actividade nos Sindicatos Nacionais integrantes da organização corporativa desenvolvida particularmente a partir de 1945, de forma a transformá-los em instrumentos de defesa dos interesses dos trabalhadores, actividade que acabou por conduzir à criação da Intersindical; a criação e acção das Comissões de Unidade nas empresas que com o apoio dos trabalhadores acabaram em muitos casos por ser reconhecidas; a acção da juventude nas Associações de Estudantes em que se apoiaram grandes movimentações, com especial referência para 1941-42, 1961-62 e 1969; e a concorrência às eleições fascistas que permitiu conduzir grandes campanhas políticas em unidade com outras forças democráticas (eleições para a Assembleia Nacional a partir de 1945 e eleições para a Presidência da República nomeadamente de 1949, 1951 e 1958.

De sublinhar, em relação com este aspecto específico da luta antifascista, o papel dos intelectuais (escritores, artistas plásticos, músicos, cantores, actores, professores) não só participando nas formas gerais da luta antifascista, mas dando também uma ímpar contribuição para a cultura e a defesa de valores democráticos com a sua obra específica.

A íntima ligação com a classe operária, os trabalhadores em geral, os intelectuais, a juventude, e o aproveitamento ou criação de formas de organização legal e semi-legal, eram indissociáveis de uma concepção fundamental do PCP: que a luta popular de massas constituia uma frente de luta determinante e um motor do desenvolvimento do processo que conduziria à revolução antifascista.

A luta do PCP contra a ditadura não se resumia ao desmascaramento da política fascista e ao protesto contra ela. A luta foi conduzida de forma a suscitar, promover e organizar a luta popular com objectivos concretos e imediatos. A experiência mostrou que o interesse directo numa luta que se trava (e o êxito alcançado ou possível) é um factor que pode ser determinante para o esclarecimento dos problemas gerais e globais. No caso concreto do período considerado nesta conferência, para o reforço da consciência antifascista e do carácter imperioso do derrubamento da ditadura.

Será uma inadvertência de qualquer estudioso da resistência antifascista dar menos atenção e menosprezar o que foram e o que significaram as lutas de massas no tempo da ditadura. Apesar das perseguições e da repressão fascista, a história da resistência é uma história de greves, de manifestações, de concentrações, de campanhas políticas, em muitos casos de extraordinária amplitude, grandeza, nível de organização e heroísmo, que não só constituiram uma demonstração de elevada consciência e combatividade do povo português (com particular relevo da classe operária, dos intelectuais e da juventude), não só incapacitaram o fascismo de criar uma verdadeira base de massas, como constituiram uma valiosíssima escola que acabou por conduzir o regime ao progressivo isolamento e o povo a objectivos gerais de liberdade que vieram a ter exaltante expressão no levantamento popular que se seguiu imediatamente ao levantamento militar do 25 de Abril e ao derrubamento do governo fascista e que, em aliança com os militares do MFA, acabou por determinar as grandes transformações democráticas então verificadas e a instauração e institucionalização do regime democrático.

Neste Seminário “Para a história da Oposição ao Estado Novo”, é correcto que sejam referidos os méritos e deméritos dos partidos e outras forças políticas. É porém também necessário referir, como grande protagonista da Oposição, o povo português, que justificou com a sua luta a confiança daqueles que nele confiavam e justificará certamente no futuro a confiança daqueles que nele confiam.

10. A luta pela unidade antifascista

Será difícil contestar que nos anos decorridos de 1940 ao 25 de Abril o PCP desempenhou um papel de primacial importância na concretização da unidade das forças antifascistas.

Já antes do período a que respeita esta conferência, sob a influência da criação, vitórias eleitorais e formação de governos das Frentes Populares com comunistas e socialistas em França e Espanha (1935/36) – também em Portugal, por iniciativa do PCP, se deram nesses anos passos positivos para a criação de uma Frente Popular (1936/38).

Com a vitória de Franco na guerra civil e o início da 2ª Guerra Mundial esse processo foi interrompido.

Assim, quando da reorganização de 1940-41, as forças antifascistas encontravam-se divididas, dispersas, sem acordos nem acção comum.

Foi por iniciativa do PCP e sob o impacto das grandes greves operárias de Julho/Agosto de 1942 e Outubro/Novembro de 1943 (que tiveram ainda nova expressão em 8 e 9 de Maio de 1944) da unidade e combatividade da classe operária e da influência do PCP nelas reveladas, que se constituiu em Dezembro de 1943 na clandestinidade o Conselho Nacional de Unidade Anti-Fascista. Num “Comunicado ao Povo Português”, o Conselho declarou ser objectivo do Movimento de Unidade Nacional Anti-Fascista (MUNAF) a instauração de um governo em que estivessem representadas todas as correntes da oposição e que desse ao povo português “a possibilidade de escolher, em eleições verdadeiramente livres, os seus governantes”.

O Conselho Nacional, que teve como Presidente Norton de Matos e contou na sua composição mais de 40 membros, conseguiu unir à sua volta praticamente todos os sectores da oposição antifascista, esteve aberto a grupos militares e a correntes católicas e formou Comités de Unidade Nacional por todo o país. É certo que muitos dos membros do Conselho Nacional representavam formalmente partidos praticamente inexistentes como tal. Mas, alguns representavam correntes políticas com influência não desprezível.

Ao terminar a guerra, aproveitando em profundidade a manobra pseudo-democrática de Salazar, o MUNAF lançou um vastíssimo e dinâmico movimento político de massas que impôs temporariamente a sua actuação legal e semi-legal (o MUD) e que nos anos seguintes (fazendo frente à repressão) promoveu uma intensa actuação política.

A luta do PCP pela unidade antifascista continuou sendo uma constante da sua orientação e teve, ao longo dos anos expressões diferenciadas em termos de composição e organização, como foram o Movimento Nacional Democrático (MND) com Ruy Luis Gomes, as Juntas de Acção Patriótica (JAP), a Frente Patriótica de Libertação Nacional (FPLN), as Comissões Democráticas Eleitorais (CDE), os Congressos da Oposição Democrática (Aveiro), o MUD Juvenil e o Movimento da Juventude Trabalhadora (MJT), o Movimento Democrático das Mulheres (MDM) e
outras.

Em 1949 a campanha eleitoral de Norton de Matos e em 1958 as campanhas eleitorais de Arlindo Vicente e Humberto Delgado fundindo-se finalmente na deste último mereceram o entendimento e a acção comum de praticamente todos os sectores democráticos confluindo numa vigorosa acção política de massas.

A constituição em fins de 1962 da Frente Patriótica de Libertação Nacional (de que vieram a fazer parte com o PCP entre outros Humberto Delgado e Ruy Luis Gomes) representou nos anos seguintes até à sua divisão interna ainda na década 60 um importante papel na aglutinação e dinamização da luta contra a ditadura.

A unidade antifascista na luta contra a ditadura teve magníficas expressões de que os democratas portugueses se podem justamente orgulhar. Era porém inevitável que a existência de diferenças de pontos de vista entre sectores sociais e políticos tão diversos provocasse dificuldades e contradições ao processo de unidade.

As diferenças mais sérias tanto na luta imediata contra a ditadura como nos objectivos definidos para o regime democrático a conquistar respeitavam a quatro principais questões: a estrutura socioeconómica (nomeadamente monopólios e latifúndios), as posições dominantes do imperialismo estrangeiro sobre Portugal, o direito dos povos das colónias portuguesas à autodeterminação e independência e a chamada via para pôr termo à ditadura. Deve sublinhar-se que essas diferenças de pontos de vista continuaram após o 25 de Abril, ainda de
forma mais aguda naturalmente, porque se tratou então de concretizar ou não na vida as políticas que se propunham.

Nos últimos anos do fascismo, por um lado as tendências para um compromisso com o regime com vista à sua “liberalização” e ilusões voltadas para os “dissidentes” e por outro lado um verbalismo radical pseudo-revolucionário apregoando a acção directa e o terrorismo com vista a uma revolução imediata que apelidavam de proletária e socialista constituiram factores negativos para a unidade dos antifascistas. Apesar porém dessas dificuldades, em numerosos aspectos houve acções paralelas e acções convergentes.Um processo unificador implicou naturalmente não apenas diferentes opiniões, diferentes programas, diferentes objectivos, mas contradições e polémicas mais ou menos agudas e, em certos momentos, conflitos e rupturas.

Entretanto, mesmo quando separados, todos acabávamos por convergir no objectivo primeiro, fundamental e comum de pôr fim à ditadura, conquistar a liberdade, instaurar um regime democrático. Este grande objectivo comum acabou por ser alcançado e por isso, quando o foi, em dias grandes da história do povo português e de Portugal – a revolução de Abril de 1974 – todos os antifascistas se encontraram unidos, por momentos infelizmente breves, na conquista e instauração das liberdades e de um regime por que haviam sonhado gerações e gerações submetidas à tirania fascista.

Porque o tema da conferência que fui convidado a fazer termina precisamente no 25 de Abril, acho preferível não me alargar nas divergências, conflitos e polémicas, nem anteriores nem posteriores, antes abordando a questão da unidade terminar este ponto da minha exposição nesse momento histórico em que os antifascistas concluímos unidos, na alegria da liberdade conquistada, a nossa longa luta contra a ditadura.

11. Como derrubar a ditadura?

Um problema maior que se colocou ao povo português, aos democratas, ao PCP, logo desde 28 de Maio de 1926, foi como pôr fim à ditadura.

Antes da 2ª Guerra Mundial, enquanto a efectiva hegemonia da resistência coube a círculos republicanos vindos da República de 1910, a ideia predominante era a de que o único caminho seria um putch – um golpe militar. Algumas tentativas, das quais a principal foi logo em 7 de Fevereiro de 1927, foram dominadas militarmente. Depuradas as forças armadas pela ditadura, a ideia do golpe militar (do então chamado “reviralho”) além de iniciativas esporádicas logo abafadas, passou a ser um pretexto para justificar e defender a passividade de sectores antifascistas aos quais faltavam determinação, organização e mesmo coragem para travar a luta dia a dia e para enfrentar dia a dia a repressão.

O PCP deu combate político e ideológico ao reviralhismo mas só quando, já nos anos 40, adquiriu força e capacidade para promover e dirigir, mesmo nas condições do fascismo, a luta política e social de massas, só então começaram a surgir outras perspectivas no pensamento e na actividade da Oposição.

Talvez nenhuma outra questão tenha dado lugar no campo antifascista a tão profundas divergências e tenha influenciado tão profundamente a orientação política, as linhas programáticas e as formas de intervenção.

De uma maneira talvez simplista podem considerar-se dois grandes blocos de tendências, a que o PCP fez frente simultaneamente.

Por um lado, as vacilações e ilusões do que chamámos a “burguesia liberal”.

A ideia ilusória de que o fim da ditadura e a instauração da democracia viria de factores externos (por pressão da Inglaterra quando da derrota da Alemanha na guerra, por exemplo). A ideia igualmente ilusória, mas que renascia ao longo dos anos de que seria possível uma vitória nas eleições fascistas elegendo deputados da Oposição e facilitando assim o caminho para uma solução pacífica (1957). A ideia de que o fim da ditadura resultaria da desagregação automática e irreversível da própria ditadura (tendência particularmente forte nos anos 60). A ideia de que a única saída seria um compromisso com o próprio regime, da ala mais moderada da Oposição que assim alcançaria discriminada autorização para actuar legalmente (esta tendência foi muito viva no período do marcelismo). Esta não era apenas uma atitude pragmática de alguns. Grassavam especulações teóricas segundo as quais, ao contrário do salazarismo, que teria sido inspirado pelo “capital agrário”, o marcelismo seria o desbloquear do desenvolvimento, a política do capital progressista a que chamavam “neo-capitalismo”, interessado na liberalização e na democratização do país.

Noutro bloco, a impaciência do que chamámos o radicalismo pequeno-burguês, que, particularmente após o desencadeamento das guerras coloniais, portanto já na década de 60, considerava inúteis a acção política e as lutas de massas e, em alguns círculos, por influência directa do maoismo de então, defendia a precipitação, como forma prioritária, exclusiva e imediata, de acções armadas em diversas modalidades: desde a acção guerrilheira ao terrorismo.

Propagandistas exaltados do lançamento imediato de tais acções, sem darem um passo para a sua realização, reclamavam que o PCP as empreedesse, mostrando estarem firmemente decididos a sacrificar-se até à morte… do último comunista.

Também no PCP esta questão da via para o derrubamento da ditadura deu lugar a debates e vacilações.

No fim da 2ª Guerra Mundial, dada a aliança dos Estados Unidos e Inglaterra com a União Soviética, generalizou-se em largos círculos a crença de que a aliança no tempo de guerra poderia ter nova e duradoura expressão no tempo de paz. Isto naturalmente antes do célebre discurso de Fulton, de Churchill (5 de Março de 1946), que reacendeu a guerra fria contra a União Soviética. Difundiu-se a ideia de que o imperalialismo tinha mudado de natureza e de que os Estados Unidos, além da Inglaterra, passariam a ter um papel progressista na libertação dos trabalhadores e dos povos do mundo. No próprio movimento comunista apareceram tais ideias, como foi o caso do “browderismo”, – de Browder, Secretário-geral do Partido Comunista dos Estados Unidos, depois afastado do partido.

No PCP, tais concepções não vingaram, mas não deixaram de manifestar-se da parte de alguns camaradas (reunião do Comité Central de Maio de 1945) e na opinião de alguns outros que à data se encontravam no Campo de Concentração do Tarrafal e defenderam a então chamada “política de transição”.

O caminho insurrecional, o levantamento nacional armado foi a linha definida pelo III Congresso (1º ilegal) realizado em Novembro de 1943 e confirmada no IV Congresso realizado em 1946.

Mas em 1956/57, as conclusões do XX Congresso do PCUS, não tanto pela revelação e condenação do culto da personalidade de Stáline como pela perspectiva apontada da coexistência e competição pacífica, da breve ultrapassagem pacífica do capitalismo pelo socialismo em termos mundiais, da solução pacífica como caminho universal para o fim das ditaduras e para revoluções socialistas, tiveram também eco no PCP. O V Congresso realizado em 1957, sem se afastar da sua linha de massas, colocou entretanto como objectivo “desejável e possível” (inserto no que foi depois considerado “o desvio de direita” dos anos 1956/59) “a solução pacífica do problema político português”, associada à crença numa “desagregação contínua” e “irreversível” da ditadura. Expressão significativa desta tendência foi a palavra lançada de uma “jornada nacional pacífica para a demissão de Salazar” (1959) com a esperança de que poderia conduzir a tal resultado.

Em 1961 foi retomada a linha do levantamento nacional armado (reunião de Março do Comité Central). A necessidade do recurso à força, de uma solução violenta para pôr fim à ditadura resultava da recusa do governo fascista abrir caminho a uma solução pacífica do problema político português, da insistência na farsa das eleições, do uso sistemático da repressão fascista para manter a ditadura como regime imutável e intocável.

O levantamento nacional, definido (nomeadamente no VI Congresso realizado em 1965) como insurreição popular, luta armada do povo e de militares revolucionários, foi apontado pelo PCP, não como um acto voluntarista, como consequência de apelos ou de iniciativa de uma vanguarda empreendendo isolada o combate, mas exigindo a existência de uma situação revolucionária, em que à crise do regime se somasse a preparação, disposição e determinação das forças revolucionárias.

12. Crise e derrota da ditadura fascista

O extraordinário agravamento das contradições económicas e sociais resultantes do processo específico do desenvolvimento do capitalismo no tempo da ditadura, a amplitude e vigor da luta popular e democrática, a redução radical da base social e política de apoio do fascismo, a luta armada dos povos das colónias conduziram a uma crise geral e irreversível do regime.

O vigoroso ascenso da luta popular em todas as frentes, a guerra colonial sem saída militar, a deterioração da situação económica, o crescente isolamento interno, as dissidências nas hostes fascistas (“os dissidentes do regime”), as contradições nas Forças Armadas que há muito tinham deixado de ser (na frase de Salazar) “a garantia e o penhor da Revolução Nacional” e a formação de um movimento militar organizado (o MFA), o surgir de tendências antifascistas e progressistas no clero e nos meios católicos e o isolamento internacional – são os aspectos mais significativos da crise do regime que entrou na sua agonia com a manobra liberalizante de Marcelo Caetano.

O fluxo do movimento operário com poderosas lutas de massas e a formação a partir dos sindicatos fascistas de um movimento sindical independente (a Intersindical), o movimento democrático com redobrada vitalidade na grande campanha em torno das eleições para a Assembleia Nacional fascista, um movimento juvenil nomeadamente dos estudantes, a luta contra a guerra colonial nas suas variadas formas e tendo expressão em acções violentas contra o aparelho militar da guerra colonial e crescentes acções de resistência nas Forças Armadas, anunciavam a aproximação da crise revolucionária.

Ao longo dos anos, tendo em conta que a ditadura dispunha de um Estado fortemente centralizado e militarista, o PCP sempre considerou que o levantamento nacional teria que contar com a participação e a neutralização de parte considerável das forças armadas. Com a crise do regime fascista aprofundada com a guerra colonial, a resistência nas forças armadas e a radicalização política de soldados e sectores da oficialidade, o elemento militar ganhou cada vez mais peso na perspectiva apontada.

Assim admitia-se não só uma insurreição popular e militar simultânea, como a possibilidade de uma acção militar preceder o levantamento popular. O 25 de Abril veio a comprovar tal previsão.

Insistindo numa ideia já atrás referida, na história das sociedades cada momento foi vida tendo atrás um antes e tendo à frente um depois.

Daí a dificuldade, para não dizer impossibilidade, falando de um partido com 71 anos de existência, de falar de uns tantos anos sem referir o que os precedeu e o que se seguiu.

Este seminário dedica-se à “história da Oposição ao Estado Novo” . A luta contra a ditadura fascista teve um objectivo último central e fundamental: a conquista da liberdade e da democracia. Alcançado esse objectivo é legítimo questionar, não só o que se pensou e fez antes, mas como se concretizou na vida nacional a luta travada pelo PCP, pelo povo português, pelos democratas portugueses durante esses 48 anos de ditadura.

A questão sugere naturalmente o tema de um outro Seminário que seria interessante realizar sobre o 25 de Abril, a revolução democrática e os anos que se seguiram até hoje. É um tema válido num mestrado de história, porque sendo da história recente, não deixa de ser já história. História que por vezes erradamente alguns julgam estar escrevendo por si próprios mas que acaba por ser escrita nas linhas fundamentais pela vontade dos povos.