A avaliação da importância da Conferência de 1929 prende-se com a compreensão do que foi o complexo e contraditório processo de formação e afirmação do Partido Comunista Português como partido político da classe operária, nas condições históricas de Portugal, condições que, pela sua especificidade, fazem do PCP praticamente caso único no conjunto dos processsos e do historial da formação dos partidos comunistas na Europa e no mundo.
A Conferência de Abril de 1929 ocupa um lugar muito particular na história do PCP pelo facto de, com a reorganização então empreendida, se terem criado as condições para ultrapassar a gravíssima crise em que o Partido estava mergulhado, traduzida na desagregação da direcção, redução drástica dos efectivos e paralisia da sua actividade, e, simultaneamente, ter levado a uma viragem nas orientações políticas e ideológicas do Partido e na sua actividade prática e, por via disso, à consequente e duradoura influência do Partido no movimento operário e sindical, anteriormente em franca regressão, desorientação e incapacidade de intervir nas condições criadas pelo advento do fascismo.
É a partir da reorganização de 1929, encabeçada por Bento Gonçalves, que, através dum processo irregular, se começam a precisar as características fundamentais definidoras de um partido de novo tipo, segundo a concepção leninista; que o marxismo-leninismo verdadeiramente começa a impregnar as análises da realidade nacional e internacional e a acção do Partido e que a influência ideológica do marxismo-leninismo no movimento operário se vai tornar hegemónica e o Partido força determinante na resistência ao fascismo.
Este processo nada teve de linear. O Partido era extremamente débil. O fascismo não só estava na ofensiva, como dispunha de forças ideológicas, políticas e até repressivas forjadas desde o tempo da República, que, beneficiando do apoio e da experiência do fascismo internacional, o tornavam muito eficaz.
A Conferência foi o coroar de persistentes esforços de Manuel Pilar, membro da Comissão Central e único sobrevivente da direcção eleita no II Congresso (Maio de 1926), de Bento Gonçalves e da célula do Arsenal da Marinha para insuflar vida ao Partido, reerguendo-o da paralisia em que se encontrava.
A Conferência realizou-se no dia 21 de Abril de 1929, no interior do Arsenal da Marinha, nas instalações da Caixa de Previdência do Pessoal do Arsenal, da qual era dirigente Abílio Alves Lima, que viria a ter papel destacado na reorganização do Partido, e teve a participação de 15 filiados da organização de Lisboa, incluindo como único elemento da direcção o citado Manuel Pilar (1) .
A Conferência foi aberta por Bento Gonçalves, à época secretário da célula do Arsenal da Marinha, e que tinha sido incumbido de explicar aos participantes os motivos da convocação da reunião: preocupações pela inactividade do Partido, quando se exigia resposta à ofensiva do fascismo; não ter a célula recebido da Comissão Central qualquer orientação para o seu trabalho, apesar do empenho e entusiasmo com que trabalhava para engrandecer a causa comunista e a influência do Partido; perda de contacto da direcção central com a organização partidária em geral e o seu mais completo silêncio face ao agravar da situação do Partido e dos trabalhadores, apesar dos reiterados esforços dos militantes para que a direcção assumisse as suas responsabilidades; preocupação pela falta de unidade que se verificava no seio da Direcção e que, por isso mesmo, se revelava incapaz de tomar as medidas que a situação do Partido e a realidade social exigiam.
A grande questão que se colocava, portanto, aos membros do Partido, era a de saber, face à situação criada, se se deveria silenciar indefinidamente os problemas, ou se, pelo contrário, se deveria enveredar pelo início de um período de acção conforme às dificuldades do momento.
Bento Gonçalves informou que a célula do Arsenal da Marinha, que já anteriormente reclamara da Comissão Central medidas como a necessidade do estabelecimento de uma ligação sistemática com os vários organismos sindicais, uma crítica comunista a todos os assuntos do dia, a luta pelo desenvolvimento das células, a necessidade de publicações comunistas, sem que tivesse tido qualquer resposta, se pronunciou inequivocamente pela segunda opção, quer dizer, por iniciar uma acção efectiva. Para tanto defendia que a Conferência deveria tomar resoluções concretas e imediatas no sentido de ultrapassar a grave crise em que o Partido estava mergulhado, ligando-o às massas e apetrechando-o para enfrentar a ofensiva desencadeada contra os interesses e direitos dos trabalhadores.
A Conferência decidiu em conformidade com estas orientações e, constatando a incapacidade da direcção em funções para recuperar o Partido, elegeu uma nova direcção (Comissão Provisória), composta por cinco elementos (2) , vindo Bento Gonçalves a assumir ulteriormente a função de secretário-geral do Partido.
E dado que, à época, a legitimidade das direcções dos partidos comunistas carecia de aprovação por parte da Internacional Comunista (IC), foi ainda decidido informar a IC, para além da situação geral do País e do movimento operário, sobre as razões que determinaram a realização da Conferência e o carácter das resoluções nela adoptadas. Tal foi feito num extenso relatório, assinado por Bento Gonçalves, em nome da Comissão Provisória, no qual se trata de forma exaustiva a situação económica, social e política do País, a situação do Partido e do movimento sindical, bem como das tarefas que a Comissão Provisória se propunha levar à prática.
Para uma verdadeira comprensão da importância da Conferência, da reorganização de 1929, do papel de Bento Gonçalves neste processo e no desenvolvimento do Partido, bem como das grandes questões que se colocavam ao reduzido número de comunistas que se propunham reerguer o Partido e colocá-lo à altura das suas responsabilidades para com a classe operária portuguesa e o movimento comunista internacional, indispensável se torna ter em conta algumas questões nucleares, nomeadamente: as condições em que nasceu o Partido e se desenvolveu nos primeiros anos de vida; o quadro do país e do mundo à época, em que avultam o ascenso do fascismo e a crise mundial de 1929 com a consequente ofensiva contra o movimento operário; a falência das tácticas anarquistas e anarco-sindicalistas; o estado calamitoso do Partido no plano organizativo, de direcção e confusão ideológica e táctica e também as orientações da IC nessa altura.
Se não é aceitável a tese de que a reorganização de 1929 significou uma refundação do Partido, não deixa de ser um facto de que a grande questão que se colocava ao pequeno punhado de comunistas a que estava reduzido o Partido, era a de edificar a organização partidária para actuar nas condições de clandestinidade.
A reorganização do Partido havia-se tornado uma necessidade imperiosa. Como salientava Bento Gonçalves no já referido relatório à IC, quando «as massas vêem a sua situação agravar-se», numa altura «em que toda a nossa organização operária se afunda em pleno marasmo, tanto do ponto de vista ideológico, como da acção sindical» se os partidos comunistas devem ser «a vanguarda do proletariado – nós considerámos que constituiria um crime continuarmos por mais tempo sem nos lançarmos no trabalho partidário.»
Numa realidade portuguesa caracterizada por um fraco desenvolvimento capitalista, onde não existia partido com influência na classe operária e no movimento sindical, o anarquismo e o sindicalismo revolucionário dominavam no plano ideológico e organizativo. A criação duma organização revolucionária, alternativa ao oportunismo anarquista e socialista, tornara-se uma necessidade objectiva pelo próprio desenvolvimento do movimento operário português. É sabido que o PCP, contrariamente à generalidade dos partidos comunistas da Europa, nasceu de um processo de diferenciação no seio de correntes anarquistas e anarco-sindicalistas, sob o impulso da Revolução de Outubro, e não da cisão dum partido social-democrata, como ocorreu em outros países, cisões que, dando lugar a fracções revolucionárias, colocaram na ordem do dia a sua transformação em partidos de novo tipo.
Os ecos da Revolução de Outubro e o impacto das transformações revolucionárias – mais do que o conhecimento da natureza da revolução e do Partido bolchevique – aceleraram a compreensão de que as velhas tácticas dominantes no movimento operário português tinham «falhado completamente»; que a transformação revolucionária da sociedade requeria a existência dum partido político da classe operária.
Os fundadores do Partido tiveram o mérito de se terem elevado à compreensão da insuficiência do movimento sindical como instrumento da luta libertadora e de que se impunha a criação de uma organização extra-sindical, embora as ideias quanto à sua natureza não fossem claras.
Nascido dum processo especificamente nacional, sem acção directa da IC, ligação que só veio a ser estabelecida em 1922 e permaneceu irregular e atribulada, os modelos organizativos «disponíveis», no quadro do isolamento internacional, só poderiam ser os que eram dados pela experiência e as tradições do movimento operário e dos partidos burgueses.
No fundo, o Partido, na sua primeira fase, era concebido mais como um «sindicato» com intervenção política do que propriamente como partido político do proletariado, segundo a concepção de Marx, e menos ainda como partido de novo tipo, segundo a concepção leninista.
Diferentes concepções sobre o «modelo organizativo», a origem ideológica heterogénea dos dirigentes e da massa de filiados nos primeiros anos (anarquistas, anarco-sindicalistas, republicanos, socialistas), a assimilação mecânica e dogmática de experiências internacionais, nomeadamente do Partido bolchevique, intervenções da IC por vezes pouco ajustadas à nossa realidade, além da própria repressão, vieram a estar na origem de uma permanente instabilidade e conflitualidade no seio das sucessivas direcções em que cada uma das partes se acusava de não, ou de pouco, bolchevique.
A realização do II Congresso (1926), «apanhado» pelo golpe de 28 de Maio, não resolveu a grave crise em que o Partido tinha mergulhado. A repressão, que se abateu sobretudo depois da revolta de 7 de Fevereiro de 1927, a que se seguiu a ilegalização do Partido e a confiscação dos seus bens, levaram a uma redução significativa dos efectivos, à deserção de quadros e à desagregação da direcção eleita no II Congresso.
Na primavera de 1927, um conjunto de quadros assume a direcção do Partido. Experiência de luta clandestina não tinham. Os meios técnicos e financeiros eram reduzidos. A preparação política e ideológica limitada. O movimento operário estava atordoado. Mas a ditadura fascista era avaliada como «não podendo manter-se por muito tempo», «como tendo os dias contados» (3) .
Animados por um forte e sincero desejo de reerguer o Partido, de encontrar o rumo certo, apesar do quadro tão desfavorável ao movimento operário, tomaram algumas medidas no sentido de reactivar a organização partidária, exigindo maior militância, participação nas reuniões e a obrigatoriedade de os filiados assumirem a responsabilidade por tarefas partidárias. Para aumentar as depauperadas finanças, apelaram ao pagamento de meio dia e um dia de salário para o Partido. A necessidade de se criar a figura do funcionário do Partido, de dar maior atenção ao movimento sindical, de divulgar as obras teóricas do marxismo-leninismo e de dar combate à mentalidade anarquistas ainda predominante, foram definidas como tarefas fundamentais.
Entretanto, considerando que a grande massa dos militantes «não era comunista, nem comunizável» (4) assumiram como primeira tarefa «limpar o Partido», tomando para isso medidas tais que «automaticamente afugentassem os que não convinham ao Partido» (5) . Daqui que o número de filiados tenha passado de 300 para 130.
Mas a nova direcção teve vida curta. A IC (onde foram ressuscitadas velhas desconfianças em relação a quadros que apareciam de novo à frente do Partido), sem ter em conta a realidade nem o devido conhecimento dos quadros, encarregou Augusto Machado, que se havia deslocado à URSS para assistir ao IV Congresso da Internacional Sindical Vermelha (Março de 1928), da responsabilidade de reorganizar o Partido, o que teve como consequência a demissão da direcção em funções, na sequência do que se iniciou um novo período de grande instabilidade e conflitualidade no seio da direcção.
A responsabilização de Augusto Machado, pelas suas características e concepções de trabalho, revelou-se desastrosa. Eleito para a direcção do II Congresso, demitiu-se pouco tempo depois. A actividade sindical reduziu-a ao mínimo.
Numa altura em que se impunha acção, reagrupar o que restava do Partido e do movimento sindical, aproveitar a disponibilidade de novos militantes, utilizar como pontos de apoio as poucas (mas apesar de tudo importantes) células de empresa e sectores profissionais em Lisboa (Arsenal da Marinha, Correiros e Telégrafo, Arsenal do Exército, Tabacos, Ferroviários, Marítimos, Caixeiros, Padeiros), criar um aparelho clandestino de propaganda, Machado, pretextando questões de defesa, defendia a quietude do Partido e dos partidários da Internacional Sindical Vermelha; o fechar do Partido a novas adesões, rejeitava a recomposição da Comissão Central com novos quadros (incluindo Bento Gonçalves, na altura secretário da mais importante célula e de um dos mais importantes sindicatos, e que já então revelava importantes conhecimentos teóricos).
O resultado foi a paralisia do Partido, a desagregação da direcção, o aumento do descontentamento dos militantes.
A comprovação do carácter imperioso da necessidade da reorganização e da justeza das suas decisões e orientações pode ser feita pelos seus resultados. Estes são de tal modo significativos nas diferentes aŕeas da actividade do Partido e do seu papel na sociedade portuguesa que se pode considerar ter a Conferência de Abril inaugurado um novo marco na história partidária.
As dificuldades a vencer eram naturalmente imensas. Houve avanços e recuos e cometeram-se não poucos erros. O Partido jamais deixou de ser flagelado, e por vezes profundamente, pela repressão, obrigando a um fazer e refazer constante da organização. Mas é um facto inquestionável que é com a reorganização de 1929 que são lançadas as bases dum partido comunista combativo, ligado às massas, dirigente efectivo da classe operária e da resistência antifascista.
Como salientou o camarada Cunhal «é de 1929 até 1940 que o Partido se organiza para a luta clandestina. É um período particularmente rico, com êxitos importantes e também com contradições e derrotas» (6) .
Assim foi de facto. Os efectivos partidários aumentaram de forma regular e significativa (7) ; foram criadas células em empresas importantes; a organização estendeu-se a diversas regiões do país e a sectores como o estudantil, intelectual e militar. Procedeu-se à reorganização da FJC e à sua transformação numa organização combativa e que deu ao Partido um conjunto de valiosos quadros.
Criando um aparelho técnico próprio, o Partido inicia a publicação de O Proletário, de O Avante!, de O Jovem e de um número significativo de outras publicações.
A criação da Comissão Inter-Sindical (CIS) e o alargamento da influência em todo um conjunto de sindicatos revelaram-se de grande importância para o reforço do Partido.
O Partido e o movimento sindical passam a dar maior atenção aos problemas concretos que afectam os trabalhadores.
A linha de massas então adoptada como orientação táctica, em conformidade com as condições da época, representou uma alteração com enormes reflexos no desenvolvimento da luta. O Partido começa a intervir nas lutas do dia-a-dia, destacando-se, pela sua dimensão e significado, pelo confronto com as forças policiais, as marchas de fome no Alentejo e Algarve, a Jornada Internacional contra o desemprego (Fevereiro de 1931), a jornada do 1.º de Maio desse ano, com greves e manifestações, mobilizando milhares de trabalhadores, jornada que a imprensa reaccionária não pôde ignorar e que O Avante! classificou de «uma página brilhante do proletariado contra a burguesia».
O Partido passou a ter uma orientação política consistente. A definição das orientações e das tarefas orgânicas do Partido passou a assentar na análise da realidade concreta, da crise mundial do capitalismo e das suas consequências em Portugal, a par da análise do fascismo português.
A difusão e assimilação do marxismo-leninismo começa a ser feito de forma regular e sustentada. O Partido desenvolve uma intensa campanha ideológica contra o putschismo e o anarquismo, condição para assegurar uma intervenção autónoma da classe operária.
A integração do Partido no movimento comunista internacional torna-se mais efectiva.
Bento Gonçalves, a propósito da avaliação do trabalho realizado depois de 1929, salientava que «no espaço de três anos o Partido havia passado a ser conhecido e querido dos trabalhadores», que «a correlação de forças do movimento sindical modificou-se muito a nosso favor; tivemos vários êxitos no campo intelectual e estudantil; criámos uma forte organização de marinheiros, passámos a ser tomados a sério.» (8)
Os êxitos deste trabalho não são separáveis do facto de ter surgido um conjunto de quadros valorosos, vários deles despertados para os ideais comunistas pelo contacto com a realidade soviética, a começar por Bento Gonçalves; de a reorganização ter podido, à partida, contar com o apoio de uma importante célula operária como o Arsenal da Marinha; da maior assimilação pelo Partido das experiências do movimento comunista internacional.
Mas os êxitos deste trabalho são igualmente inseparáveis do talento, do empenho militante de Bento Gonçalves como dirigente operário revolucionário.
Notas
(1) A acta da Conferência, elaborada por Abílio Alves Lima, refere terem estado presentes 14 filiados, mas as assinaturas são 15 e Bento Gonçalves no Relatório à IC informa ter sido este o número de presenças.
(2) Bento Gonçalves, Francisco Martins, José de Sousa, César Leitão e Daniel Nobre Barata.
(3) José de Sousa, relatório ao Executivo da IC, 15/XI/1927.
(4) Silvino Ferreira, relatório ao Executivo da IC, 25/XI/1927.
(6) Álvaro Cunhal, Duas Intervenções numa Reunião de Quadros, Edições «Avante!», Lisboa, 1996, p. 15.
(7) No momento da realização da Conferência foi referenciado como havendo 29 filiados (todos em Lisboa), dos quais seis se encontravam presos. Nos fins de 1931, antes do começo da ofensiva repressiva, existiriam no país 700 filiados.
(8) Bento Gonçalves, «Duas Palavras», em Os Comunistas, ed. Opinião, Porto, 1976, p. 125.