Domingos Abrantes, Da Federação Maximalista à fundação do Partido Comunista Português

Da Federação Maximalista à fundação do Partido Comunista Português

Domingos Abrantes

Membro do Comité Central do PCP

A Federação Maximalista Portuguesa foi fundada há 90 anos por iniciativa de um grupo de destacados dirigentes sindicais profundamente ligados à luta dos trabalhadores e que, embora perfilhassem todos eles os ideais anarquistas, foram influenciados pelo impacto internacional da Revolução de Outubro na Rússia.

A FMP propunha-se como objectivo «difundir os princípios tendentes ao estabelecimento do socialismo comunista», assumindo como tarefa prática imediata defender a revolução russa e propagar os seus princípios.

Dois momentos relevantes assinalam e balizam a constituição da FMP: a apresentação da Declaração de Princípios/Estatuto orgânico e da sua direcção (Maio de 1919)1 e o começo da publicação do seu órgão «A Bandeira Vermelha»2 (5/X/1919).

«A Bandeira Vermelha», denominado  semanário comunista a partir do 2.º número, complementava e reforçava os objectivos políticos da FMP, como órgão ao serviço da divulgação da teoria e do «desenvolvimento da acção prática concordante com o que se desenvolvia em todos os países», com o fim de «preparar o ambiente para destruir a organização burguesa e criar o poder proletário». «A Bandeira Vermelha» desempenhou um papel sem paralelo na defesa da Revolução de Outubro, divulgando as suas realizações e princípios, desmascarando as agressões imperialistas e as campanhas detractoras desenvolvidas pela comunicação social dominante, e ainda como espaço de discussão sobre a natureza da revolução social, da táctica e da organização revolucionárias à luz da interpretação que faziam dessa conquista maior do proletariado mundial que era a Revolução de Outubro.

Foi curta, atribulada e difícil a vida da FMP. Durante o cerca de ano e meio da sua existência foi sujeita a várias medidas repressivas por parte dos poderes republicanos, a campanhas de difamação e intoxicação da opinião pública, a que viria somar-se a guerra movida por anarquistas.

Praticamente todos os seus dirigentes foram sujeitos a medidas de prisão, alguns deles por mais de uma vez, medidas que atingiram igualmente numerosos activistas, difusores e vendedores de «A Bandeira Vermelha» e mesmo simples leitores. O primeiro número foi apreendido ainda na tipografia, não mais tendo parado as perseguições, com apreensão de várias das suas edições, no todo ou em parte.

As reuniões da FMP eram vigiadas pela polícia, tendo mesmo sido imposta a obrigação de previamente se tornarem públicos os locais das suas realizações.


O exemplo contagiante da revolução russa tornara-se uma ameaça à ordem burguesa à escala internacional. A imprensa reaccionária pintava o que se passava na Rússia revolucionária como uma autêntica catástrofe. As grandes acções de protesto contra a política governamental por melhores condições de vida passaram a ser assimiladas a tentativas de implantar o sovietismo em Portugal.

O combate ao comunismo foi elevado à categoria de política de Estado (republicano). O Governo colabora com congéneres estrangeiros no combate ao comunismo, trocando informações sobre elementos considerados subversivos, dando contas da sua existência e actuação em Portugal, bem como das medidas adoptadas para combater a «praga» bolchevique. Mais uma vez se comprovava que a burguesia liberal teme mais a acção da classe operária do que a acção das forças reaccionárias.

É difícil determinar com rigor qual o enraizamento orgânico da FMP, o número de filiados e influência real. Apesar dos apelos à «constituição de Conselhos Operários nas oficinas, nas fábricas e nos campos», é duvidoso que esta forma de organização tivesse atingido expressão significativa.

Se se considerar de forma integrada os Conselhos Maximalistas constituídos em diversas localidades, ainda que alguns tivessem optado pelo nome de destacados revolucionários e não pelo nome da localidade; os centros comunistas; as localidades onde foram presos activistas; aquelas onde existiam postos de venda e correspondentes de «A Bandeira Vermelha», bem como as tiragens do jornal (cerca de 5000 exemplares, dos quais 1400 para o Porto), poder-se-á concluir que a extensão da organização da FMP foi maior e mais importante do que normalmente se lhe atribui.

Para além das regiões de Lisboa e Porto, centros fundamentais da sua implantação, a FMP estava presente em regiões como Braga, Guimarães, Viana do Castelo, Aveiro, Coimbra, Santarém, Covilhã, Setúbal, bem como no Alentejo e no Algarve, num total superior a 50 localidades.

A FMP cessou praticamente a sua actividade depois de, na sequência do seu activo apoio à greve dos ferroviários, uma das mais combativas greves naquela época, ter sido assaltada a tipografia onde se procedia à impressão de «A Bandeira Vermelha» e preso o secretário-geral da FMP, o ferroviário Manuel Ribeiro (Outubro, 1920)3 .

A contribuição da FMP para o desenvolvimento do movimento operário português, apesar das enormes limitações político-ideológicas, determinadas em grande parte pelo baixo nível de desenvolvimento do movimento operário e das relações sociais à época, foi de tal forma importante que se poderá dizer que com a sua criação se inicia uma nova etapa na história do movimento operário português, de que ressalta a criação do partido político da classe operária, o Partido Comunista Português, na origem do qual estiveram grande parte dos fundadores da FMP, a começar pelo seu secretário-geral, Manuel Ribeiro, que, além de dirigente do PCP, assumiu o cargo de director de «O Comunista», o primeiro órgão do Partido.

A viragem no movimento operário tornara-se uma necessidade objectiva determinada pelo desenvolvimento da classe operária e das relações sociais.

Os acontecimentos e as transformações operadas nas duas primeiras décadas do século XX, e sobretudo no período posterior à I Guerra Mundial, pela sua profundidade e pela afirmação da classe operária como sujeito social, assumiram carácter histórico transcendente no plano internacional e nacional.

O capitalismo tinha passado à fase imperialista. As suas contradições tornam-se mais agudas, conduzindo como sua expressão maior à I Guerra Mundial, com custos brutais para os trabalhadores e os povos.

A social-democracia, bandeando-se com as classes dominantes e o imperialismo contra os trabalhadores e os povos, tornou-se co-responsável pela carnificina causada pela guerra imperialista desencadeada para servir interesses dos «cavalheiros da indústria», acelerando a falência da II Internacional.

A revolução socialista na Rússia quebrou a frente imperialista, tornou a luta entre o trabalho e o capital na contradição fundamental à escala mundial. Ao colocar-se a perspectiva da revolução proletária no terreno das acções práticas, os ecos da Revolução de Outubro imprimiram nos anos que se lhe seguiram (1918, 1919 e 1920) um imenso vigor à luta revolucionária em todo o mundo.

A Europa foi sacudida por uma série de revoluções democrático-burguesas e proletárias. A luta de massas atingiu dimensão jamais alcançada até então. As lutas económicas por reivindicações imediatas e pela exigência de profundas alterações sociais e políticas entrelaçaram-se com a luta internacionalista em defesa da revolução na Rússia e pelo reagrupamento das forças revolucionárias, com destaque para o papel do Lénine e cujo resultado foi a constituição da Internacional Comunista (Março, 1919).

Portugal não passou à margem do turbilhão mundial, comprovando-se, pese embora as especificidades e mesmo os condicionalismos de natureza nacional, o carácter dialéctico do nacional e do internacional no desenvolvimento dos processos revolucionários.

 
Já assim tinha sido aquando da onda revolucionária que percorreu a Europa em 1848. Assim tinha sido igualmente em 1871, com os acontecimentos da Comuna. Só que enquanto nestes casos a sua influência se fez sentir fundamentalmente no seio de democratas e intelectuais progressistas de origem pequeno-burguesa, no caso da Revolução de Outubro a sua influência determinante fez-se sentir na classe operária, e isto representa uma diferença de monta, prenunciando a intervenção decisiva da classe operária como sujeito histórico.

O desenvolvimento capitalista em Portugal, ainda que limitado se comparado com outros países, progrediu nos primeiros 20 anos do século XX. A classe operária cresceu numericamente e cresceu nomeadamente o operariado industrial, bem como a sua concentração, níveis de organização e capacidade de luta, traduzida no recurso crescente à greve. Nas condições de instauração das liberdades democráticas conquistadas com a implantação da República, e para a qual os trabalhadores haviam dado contribuição inestimável, a organização dos trabalhadores reforçou-se significativamente, como se reforçou a sua combatividade. Nesta época têm lugar centenas de greves. O confronto com as forças repressivas tornou-se corrente. Alargou-se o leque de sectores envolvidos na luta, tanto mais que as esperanças numa vida bem melhor, prometida pelo partido republicano, não se vieram a confirmar.

O envolvimento de Portugal na I Guerra Mundial agravou substancialmente as condições de vida dos trabalhadores e das massas populares, levando à agudização da luta de classes e ao acentuar do «divórcio» entre a classe operária e os governantes, que, para tentarem conter a luta, recorriam cada vez mais a medidas repressivas, arbitrárias e limitadoras das liberdades contra o movimento operário (assassinatos, prisões de centenas de grevistas e dirigentes sindicais, assaltos e encerramentos de instalações sindicais e de jornais operários).

Depois de uma certa quebra no impetuoso fluxo reivindicativo, ainda em 1916, mas sobretudo em 1917, à semelhança do que acontecia pela Europa fora, vai assistir-se a um novo e impetuoso fluxo de luta de massas no qual – pelo seu significado, dimensão e condições de afrontamento com o poder – avultam as lutas contra a carestia de vida e em particular a greve geral de Novembro de 1918.

Tendo-se alterado as condições em que devia ocorrer, –  os efeitos da pneumónica, nomeadamente nos meios populares, a assinatura do armistício sete dias antes e com ele a esperança de melhores dias e um “arrefecimento” da luta social e não pouco importante, as divisões nos meios sindicais quanto à oportunidade da greve – , a greve apesar de ter sido a mais largamente preparada acabará por não ter a dimensão esperada nem alcançar os objectivos fixados.

Entretanto, a greve geral em algumas localidades alentejanas atingiu uma adesão significativa, nomeadamente nos distritos de Évora e Beja.

É no decurso desta greve que, no Vale de Santiago (Odemira), têm lugar as primeiras ocupações de terras de agrários acompanhadas de vivas”aos camaradas da Rússia” e se institui o primeiro “soviete”, expressão directa de influência da Revolução de Outubro.

A repressão que recaiu sobre o movimento operário e sindical em geral e sobre os trabalhadores de Odemira em particular foi brutal. Milícias armadas de agrários apoiados pela GNR realizaram uma verdadeira “caça ao homem”, prendendo e espancando trabalhadores. Foram presos várias dezenas tendo cerca de 30 deles sido deportados para Angola sem julgamento e culpa formada. A GNR que desde a greve de 1912 assumira a função protectora dos agrários teve também aqui um activo papel repressivo a favor dos agrários, função que vai manter durante décadas e mesmo para além da queda do fascismo.

A reacção, que havia classificado a greve geral de Novembro de «ensaio de maximalismo à russa», exultou com a acção governamental e o que considerou ter sido uma derrota em toda a linha do movimento sindical. O entusiasmo era tal que a comunicação social dominante chega a proclamar que em Portugal, pela primeira vez na Europa, se tinha extirpado o bolchevismo. E no entanto a reacção não tinha razões para tanto entusiasmo.

 
Cerca de um mês depois da greve, a 14 de Dezembro, a situação política vai alterar-se significativamente com o assassinato de Sidónio Pais, interrompendo-se a primeira tentativa de fascização do país.

Como salientaria Bento Gonçalves, o ano seguinte, 1919, «foi um ano rico de acontecimentos, de organização, de agitação e de lutas operárias»4 .

Logo em Janeiro a classe operária teve intervenção decisiva na derrota da intentona monárquica, naquela que ficou conhecida como a “escalada de Monsanto”. O ano de 1919 regista o maior movimento reivindicativo desde 1911 e as comemorações do 1º de Maio foram as maiores até então realizadas em Portugal, avaliando-se a participação só em Lisboa em mais de 30 000 pessoas e tendo-se aprovado no comício realizado nesse mesmo dia na cidade uma resolução de apoio à revolução soviética. Em matéria de organização e agitação os progressos são igualmente significativos.

Em Fevereiro surge «A Batalha», que vem a ser o jornal operário com maior tiragem e o terceiro no país; em Maio é fundada a Federação Maximalista Portuguesa; em Setembro, em Coimbra, o 2.º Congresso da União Operária Nacional decide-se pela fundação da CGT, e em Outubro começa a publicar-se «A Bandeira Vermelha». Acontecimentos que marcarão os dois pólos – comunista e anarquista – em torno dos quais se vai desenvolver o movimento operário e sindical.

Neste período, a classe operária dera mostras, através de numerosas lutas, de enorme combatividade e de que não estava disposta a deixar-se esfolar sem resistência. Mas a não existência de um partido operário de massas, o quase desconhecimento da teoria marxista e o domínio ideológico e orgânico do anarquismo, privavam-na duma direcção política capaz de assegurar a sua intervenção como força autónoma naquela que é a mais significativa e decisiva forma de luta de classes, a luta política.

As tácticas e as formas de organização defendidas pelos anarquistas e anarco-sindicalistas, assentes no voluntarismo e no espontaneísmo das massas, na defesa do apoliticismo, da greve geral como forma suprema da luta emancipadora, revelaram-se crescentemente desajustadas à nova realidade marcada por uma maior diversidade do mundo do trabalho; pela redução do peso dos trabalhadores artesanais e pelo crescimento do peso dos trabalhadores industriais, mais concentrados e urbanos, e cujos destinos se ligavam cada vez mais a outros sectores da população; pela «unificação» do patronato em organizações de classe que dispunham cada vez mais do aparelho de Estado como instrumento coercivo para defesa dos seus interesses.

A reflexão sobre os resultados da greve geral de 18 de Novembro de 1918 e sobre as experiências e os resultados da Revolução de Outubro, empreendida por alguns dirigentes sindicais, levou à conclusão de que o movimento operário se encontrava num beco sem saída e que as possibilidades do sindicalismo como instrumento de acção revolucionária e emancipadora revelavam-se limitadas, pelo que se impunham outras formas de organização e de intervenção.

É neste quadro que nasce a FMP, a primeira organização que em Portugal assume a defesa da Revolução de Outubro, ainda que o conhecimento quanto à natureza da revolução, condições em que teve lugar e o papel dos bolcheviques fossem bastante limitados e não pouco deformados.

O que sabiam era que na longínqua Rússia a classe operária tinha tomado o poder, derrubado a burguesia e que apoiada nesse poder construía uma nova vida liberta da exploração e se mostrava capaz de fazer frente com êxito aos seus inimigos. Repentinamente a revolução social deixara de ser só teoria, sonho e esperança, para passar a ser uma realidade que, embora tivesse ocorrido na Rússia, o instinto da classe operária dizia-lhe que era também a sua revolução e que a vitória dos trabalhadores russos era também a sua vitória, pelo que era do interesse da classe operária portuguesa defendê-la.

António Peixe5 , destacado sindicalista várias vezes preso, um dos fundadores da FMP e posteriormente do Partido, em artigo publicado no primeiro número de «A Bandeira Vermelha», intitulado “– Porque não serei bolchevista?”, mostra de forma muito clara que não sabendo muito bem o que era o bolchevismo em termos teóricos, sabia quais eram os seus resultados práticos.

Mas além disso ele tinha um critério muito importante para a sua opção. Para ele bastava-lhe o facto do bolchevismo ter provocado “tanto pavor e tanto cagaço como provocam nos arraiais burgueses”, para que lhe “fosse simpático”, para que “o propagasse e defendesse”.

Mas o mais importante e decisivo argumento era a convicção de que sem o bolchevismo não se alcançaria “tão cedo a desejada emancipação económica”.

Entretanto o entusiasmo causado pela revolução na Rússia não era suficiente para garantir a assimilação criadora dessa experiência. O proletariado português, que se afirmara como força social através de numerosas e combativas lutas contra a exploração, estava longe da tomada de consciência do seu verdadeiro lugar no sistema de relações sociais. A revolução continuava a ser entendida como um acto de vontade. Agora sob o impacto da Revolução de Outubro, a possibilidade da «revolução social» tornava-se inevitável e estava aí a chegar.

A origem político-ideológica dos quadros, o seu isolamento do movimento revolucionário internacional, e o baixo nível teórico, além de se terem formado na base do desdém pela análise objectiva da realidade, tão próprio dos anarquistas, não podia deixar de se reflectir na visão que tinham da revolução bolchevique e na assimilação das suas experiências.

Era a época em que, pelo desconhecimento do que verdadeiramente ocorrera na Rússia, se identificava ainda a Revolução de Outubro como o triunfo dos ideais libertários e se assimilava o bolchevismo ao anarquismo, confusão para a qual em muito contribuiu a comunicação social e até o embaixador português na Rússia, ao assimilarem bolchevismo a maximalismo, quando na Rússia o maximalismo nada tinha a ver nem com o bolchevismo nem com o anarquismo, mas sim com uma facção radical dos socialistas revolucionários de natureza pequeno-burguesa.

Conhecia-se o significado etimológico da palavra bolchevique, sabia-se que a causa da sua entrada no léxico político se devia à cisão entre os partidários de Lénine (bolcheviques/maioria) e os partidários de Martov (mencheviques/minoria), mas quanto ao seu conteúdo a confusão era total. Segundo «A Bandeira Vermelha», a palavra bolchevique, para além de maioria, significava «também a de máximo na doutrina. Por isso tem sido empregado o termo maximalista como sinónimo de bolchevismo».

Mas é com a fundação da FMP e a publicação de «A Bandeira Vermelha» que se começa a fazer uma abordagem sistemática de toda uma série de questões políticas, ideológicas, tácticas e orgânicas de capital importância para que a classe operária portuguesa ganhe consciência e actue como força social independente, nomeadamente sobre a natureza da revolução social e os caminhos para a alcançar; a questão do poder em geral e a da ditadura do proletariado em particular; os limites do sindicalismo como instrumento da luta emancipadora e toda a magna questão da intervenção política da classe operária. Discussão que, à medida que se vão alargando os conhecimentos, vai permitir avançar na conceptualização daquelas questões e precisando o rumo e as opções.

A Declaração de apresentação da FMP e o Estatuto orgânico são de grande importância para a compreensão das suas limitações, mas também do processo de diferenciação que se vai operar no seio do anarquismo e do anarco-sindicalismo. Se por um lado esses textos mostram quanto era profunda a sua influência nos fundadores da FMP, por outro lado anunciam já os germes que no seu desenvolvimento não podiam deixar de levar à ruptura com o anarquismo e o anarco-sindicalismo.

A FMP para a concretização do objectivo que era o estabelecimento do «socialismo comunista», admitia «transitoriamente a acção exercida em ditadura pelos Conselhos Operários» (Art.º 1.º). Clarificava-se ainda que «tanto a ditadura proletariana como o regime dos sovietes são considerados meios práticos experimentais, mediatos, sem nenhum carácter filosófico ou sistema, entendendo-se que a organização soviética é o melhor auxiliar do sindicalismo revolucionário e a ditadura proletariana o melhor caminho para o comunismo» (Art.º 2.º).

A questão da ditadura do proletariado vai estar no centro das discussões. As confusões são enormes, mas havia um facto incontornável: a experiência da revolução russa mostrava que a classe operária, para derrubar a burguesia e derrotar as suas tentativas para readquirir os privilégios perdidos, precisa de um poder forte e esse poder só podia ser o poder dos sovietes.

Por muito grandes que fossem as concessões ao anarquismo, a defesa da ditadura do proletariado (ainda que na primeira fase entendida como um apêndice do sindicalismo, mais organismo de gestão económica do que órgão político) afrontava um dos mais sagrados princípios do anarquismo e do anarco-sindicalismo: a recusa em reconhecer qualquer poder, mesmo o poder proletário. O afrontamento tornava-se ainda maior quando, correlativamente, tendo-se concluído pela incapacidade revolucionária do sindicalismo «para derrubar as instituições burguesas», se defendia ser forçoso «recorrer a um organismo extra-sindical», conclusão que, apesar da sua ambiguidade, afrontava um outro não menos sagrado princípio anarco-sindicalista: o do sindicalismo como único instrumento da revolução e forma superior de organização social futura.

A reacção dos anarquistas não se fez esperar, levando a uma declaração apaziguadora por parte dos maximalistas.

A 12 de Outubro, «A Bandeira Vermelha» publicava uma Declaração de Princípios, na qual se afirmava em tom de decreto: «Para evitar mal entendidos da parte de muitos camaradas que podem supor que os revolucionários portugueses que se dizem bolchevistas fizeram quaisquer restrições nos seus ideais avançados (leia-se nos ideais anarquistas) se torna público que todos os componentes da Federação Maximalista Portuguesa e seus conselhos são em princípio anarquistas e sindicalistas revolucionários, adoptando contudo a designação de bolchevistas, comunistas, maximalistas ou sovietistas, ou quaisquer outras com que o Estado embirre desde que combatam intransigentemente as instituições burguesas e apressem a evolução do regime capitalista para a sociedade anarquista que é o objectivo para que tendem os bolcheviques russos». E a Declaração prossegue: «Há anarquistas e sindicalistas que repudiam a designação de bolchevistas? Consigne-se porém que todo o indivíduo que em Portugal se declare bolchevista é anarquista ou sindicalista revolucionário».

O recuo em relação às posições iniciais da FMP é notório, como o era a preocupação de não «descolar» dos anarquistas. Mas nada podia evitar o processo de diferenciação.

Segundo o art.º 20.º do Estatuto orgânico, a FMP define-se como uma organização de “carácter proletário, popular, constituída na sua essência por trabalhadores e tendo por fim o nivelamento das classes e o estabelecimento duma sociedade sem senhores, nem servos, sem exploradores nem explorados”.

A FMP não é já um sindicato, mas não é ainda também um partido e muito menos um partido comunista. Todavia, quer pela composição social, quer pelos objectivos define-se desde logo pela sua natureza de classe.

Com a consolidação do poder soviético na Rússia e um maior conhecimento daquela realidade, reforçam-se progressivamente entre nós as posições dos «sovietistas». Os apelos à união de todos os revolucionários, para que se realize um congresso comunista e se funde o partido comunista começam a multiplicar-se e a ideia acaba por se impor como o coroar lógico deste processo.

A criação de partidos políticos da classe operária foi uma grande conquista do marxismo, tarefa à qual Marx e Engels dedicaram enormes energias e saber, definindo a sua natureza, objectivos, programa político, táctica e os princípios da sua edificação.

A concepção do partido político da classe operária resultava da actividade teórica e prática dos fundadores do comunismo científico e, consequentemente da sua consciência de que a classe operária para vencer precisava de um partido próprio, mas não de um partido qualquer.

Em Dezembro de 1889, Engels declarou que ele e Marx desde 1847 pensavam que o proletariado para vencer quando chegasse o momento decisivo precisava de ser bastante forte e para isso era necessário que o proletariado constituísse “um partido distinto de todos os outros e oposto a eles, um partido de classe confiante na sua própria força”6 .

Para que a tarefa da constituição do partido político da classe operária tivesse sido levada a bom termo, Marx e Engels tiveram de travar uma dura batalha teórica, ideológica e orgânica contra o apoliticismo e as influências desagregadoras do anarquismo no seio do movimento operário.

A conferência de Londres da Associação Internacional dos Trabalhadores (17-22 de Setembro de 1871) aprovou uma resolução apresentada pelo internacionalista Vaillant e sustentada por Marx e Engels a qual defendia o carácter indissociável dos movimentos de carácter económico e a luta política, orientação assente na tese de que o proletariado na sua luta “contra o poder colectivo das classes dominantes”, “só pode agir como classe, constituindo-se em partido político distinto, oposto a todos os antigos partidos formados pelas classes dominantes” e que “a constituição do proletariado em partido político é indispensável para assegurar o triunfo da revolução social e do seu fim supremo: a abolição das classes”7 .

Esta resolução assumiu uma importância histórica de importância mundial ao assestar uma decisiva derrota política, ideológica e orgânica nas concepções e na actividade de Bakunine e dos seus partidários, derrota ampliada no Congresso de Haia (2-7 de Setembro de 1872), ao tomar a decisão de se avançar como tarefa concreta, para a criação de partidos políticos da classe operária.

A fundação do Partido Socialista em 1875, concretizando a decisão do Congresso de Haia, tornou Portugal pioneiro na criação de partidos operários. Mas o Partido Socialista, nascido sob influência pequeno-burguesa, nunca se enraizou solidamente no movimento operário português, e perdeu mesmo a partir de 1909 a influência que chegou a ter no movimento sindical, espaço que foi conquistado pelo anarco-sindicalismo, adepto do abstencionismo político, do apartidarismo e do não reconhecimento de qualquer forma de poder, ainda que os anarquistas se defrontassem no seu dia-a-dia com a acção do poder burguês e tenham acabado por estabelecer compromissos, alguns pouco edificantes, com esse mesmo poder.

Marx e Engels sabiam melhor do que ninguém que a luta da classe operária pelos seus interesses, a sua tomada de consciência como força social independente eram condicionadas pelo nível de desenvolvimento capitalista e o desenvolvimento da organização operária que lhe estava associada.

Quando nos finais de 1920 se avançou para a criação do PCP, este tinha-se tornado uma necessidade objectiva, mas as ideias acerca do partido político da classe operária estavam longe de corresponder às concepções do marxismo-leninismo. A assimilação dessa concepção iria ser longa e dolorosa. A composição heterogénea do Partido – entre os seus membros, muitos defendiam que este devia integrar socialistas, anarquistas, sindicalistas e comunistas, com exclusão dos reformistas, e o primeiro Manifesto do Partido ao País (Julho de 1921) dizia que o PCP era «constituído na sua essência por trabalhadores sindicados de várias nuances socialistas de tendência extremista-libertários e socialistas de extrema esquerda» – acabaria por ser fonte de enormes dificuldades.

As condições em que nasceu o PCP, desde logo do seio do anarquismo e não da cisão dum partido social-democrata, como ocorreu na generalidade dos países europeus, reflectiam uma realidade própria, especificamente portuguesa.

O conhecimento do marxismo como teoria da luta de classes era praticamente ignorado pelos quadros e as ideias que tinham do comunismo eram ainda ideias de um comunismo “vulgar”. Os quadros em condições de assimilar as ideias do comunismo revolucionário eram em número escasso.

As sequelas da cristalização da mentalidade pequeno-burguesa resultante duma estrutura social pouco desenvolvida, do oportunismo do Partido Socialista e do domínio ideológico do anarquismo, não desapareciam facilmente só pelo facto de se ter fundado o Partido.

Esta situação vai reflectir-se longamente na luta ideológica, nas formas de organização e tácticas de luta e mesmo nos conflitos pessoais entre os que procuravam dirigir o Partido segundo o que pensavam ser o verdadeiro bolchevismo e os que consciente ou inconscientemente continuavam aferrados ao lastro dos dogmas do anarquismo.

De qualquer modo tinha sido dado um passo gigantesco para a criação das condições capazes de assegurar a intervenção autónoma da classe operária portuguesa. «A Bandeira Vermelha» não se enganara quando declarou ser a corrente comunista «o único penhor, a única garantia da revolução».

Passaram-se 90 anos desde a fundação da FMP. A classe operária e os comunistas portugueses percorreram um longo caminho e tiveram de travar duras batalhas para se afirmarem e assegurar o direito à existência.

A experiência acumulada, a preparação político-ideológica e o conhecimento dos processos de desenvolvimento revolucionário não têm hoje comparação com a época em que um pequeno grupo de militantes operários iniciaram o caminho da luta pelo «socialismo comunista». Mas a abordagem do significado e da importância da FMP não pode deixar de ter em conta as condições históricas concretas da época, pelo que será oportuno recordar a observação de Marx acerca da postura a ter no que se refere à abordagem da herança histórica, na base da qual se fundamentam os avanços da teoria do socialismo.

Em Janeiro de 1873, Marx referindo-se aos limites e aos erros dos socialistas utópicos, numa altura em que as condições sociais não estavam suficientemente desenvolvidas para permitir à classe operária constituir-se em classe militante, dizia que «não nos sendo permitido renegar esses patriarcas do socialismo, como não é permitido aos químicos renegar os seus pais, os alquimistas, o que se deve é evitar cair nos seus erros, o que, cometidos por nós, seria imperdoável»8 .

Foi a repercussão internacional da Revolução de Outubro, o desenvolvimento da classe operária, a sua combatividade e consciência de classe manifestadas nas amplas lutas de massas, sobretudo depois da implantação da República, que, através de um processo nada linear, levou à consciência da necessidade da classe operária dispor da sua vanguarda revolucionária.

Aos maximalistas e ao seu órgão propagandístico, «A Bandeira Vermelha», apesar de todas as suas limitações, ambiguidades e confusões político-ideológicas, cabe o mérito de terem preparado – pela sistemática divulgação e discussão das experiências da primeira revolução proletária e dos processos revolucionários em outros países; pela reflexão sobre as lutas e experiências do movimento operário português e internacional; pela popularização de textos dos clássicos do marxismo e dos principais dirigentes soviéticos e do movimento comunista internacional; pelo apoio à luta dos trabalhadores – as condições e os quadros que levariam a 6 de Março de 1921 à fundação do Partido Comunista Português como partido político da classe operária, cuja história desde então se confunde com a história e com a luta dos trabalhadores portugueses.

Notas:

1    Segundo declarações de Manuel Ribeiro, a FMP fora “formada por um grupo de militantes operários:”Na verdade os 17 elementos que compunham a direcção inicial eram todos sindicalistas: 6 da construção civil (o mais forte sector à época); 4 metalúrgicos; 2 marceneiros; 2 manufactores de calçado; 1 encadernador; 1 ferroviário e 1 ourives.

2    Bandeira vermelha, publicou-se entre 5 de Outubro de 1919 e 19 de Junho de 1921, tendo sido publicados 63 números. Devido à repressão a sua periodicidade (semanal) nem sempre foi regular e teve mesmo longos períodos de interrupção. Depois do assalto à tipografia e do empastelamento da edição (X/1920) só reapareceu a 5 de Dezembro, tendo-se apenas publicado 2 números. Reaparece novamente em 17/IV/1921 (nº 54) não já como órgão da FMP mas somente como semanário comunista, funcionando como órgão oficioso do PCP, até 19 de Junho de 1921.

  Manuel António Ribeiro (1878-1941) Empregado da CP, depois jornalista e escritor. Um dos fundadores da FMP, integrou a sua Comissão Executiva, ocupando o cargo de Secretário-Geral. Foi director de «A Bandeira Vermelha». Preso em Outubro de 1920 pelo seu apoio activo à greve da CP. Foi um dos fundadores do PCP, integrou a sua primeira direcção e foi director (redactor principal) de «O Comunista», o primeiro órgão do PCP. Entusiasta da revolução de Outubro e seu activo divulgador e defensor.
Colaborou em quase todos os jornais operários da época. Revelou-se um escritor de talento. Após a prisão enveredou pelo misticismo, interessou-se pelo estudo da arte sacra e acabou por se converter ao catolicismo. Nos anos 30 colaborou com o Partido em iniciativas unitárias de carácter antifascista.

4    Bento Gonçalves “Palavras necessárias”, in Os Comunistas. Bento Gonçalves, ed. “Opinião”, Porto, pg. 82.

5    António Peixe – metalúrgico. Fundador e membro da Comissão Executiva da FMP.
Membro da “Comissão organizadora dos trabalhos para a criação do PCP”.
Integrou a primeira direcção do Partido. Activo colaborador de “A bandeira Vermelha”. Foi preso várias vezes. Escreveu alguns importantes artigos na cadeia.

6    Carta de Engels a Gerson Trier, 18 Dez. 1889, in Karl Marx une Biographie de, Henrich Gemkow, Verbag Zeit  Bild, Dresde 1968, p. 104.

7    Ver Jacques Duclos, “A primeira Internacional”, Ed. Sociais, Paris, 1964, pg. 246.

8    K. Marx, “A indiferença em política”, em Marx e Engels, Obras Completas, volume XVIII, Dietz, 1964, pg.299-303. Reproduzido em La Nouvelle Critique, nº 31/1970.