Albano Nunes, A Revolução Republicana de 1910 – Um marco na libertação do povo Português

A Revolução Republicana de 1910 – Um marco na libertação do povo Português
Albano Nunes* – 13.02.10

Esta Exposição que hoje inauguramos na cidade do Porto é a primeira de um conjunto de iniciativas que o PCP se propõe promover com o objectivo de contribuir para um melhor conhecimento do que foi e do que representou a revolução de 1910; que circunstâncias sócio-económicas e ideológicas a determinaram; que problemas e contradições se propôs resolver e superar; quais as classes e camadas sociais que nela se empenharam, que reivindicações e bandeiras levantaram, e quais foram afinal os seus principais beneficiários; como foi possível o avanço e finalmente o triunfo das forças mais reaccionárias e do grande capital no golpe militar de 28 de Maio de 1926 que abriu caminho a quase meio século de ditadura fascista.

A resposta a estas e outras questões – sem esquecer o contexto internacional da época, em que a par da agudização das contradições inter-imperialistas se verificou o crescimento impetuoso do movimento operário que culminou com a vitória da Revolução de Outubro na Rússia – é indispensável para uma avaliação marxista-leninista da revolução de 1910 e do seu lugar na História contemporânea de Portugal e para orientar os comunistas na batalha ideológica que já se verifica nesta matéria.

A revolução de 1910, culminando um amplo movimento de descontentamento e protesto popular, pôs fim a uma Monarquia anacrónica e desacreditada, instaurou uma das primeiras repúblicas da Europa, realizou importantes progressos no plano das liberdades e direitos fundamentais, da educação e da cultura, da laicização do Estado, dotou o país de uma Constituição bastante avançada para a época. Tais progressos devem ser reconhecidos e valorizados. Não foi por acaso que sob a bandeira do 5 de Outubro – como aliás do 31 de Janeiro – tiveram lugar importantes jornadas de unidade e resistência antifascista, bandeira que só foi suplantada pela do 1.º de Maio a partir de 1962, com as grandes manifestações populares e as greves do proletariado dos campos do Sul pelas 8 horas, que assinalaram a inequívoca afirmação da classe operária, no plano social, e do PCP, no plano político, como forças determinantes da luta pelo derrubamento do fascismo.

Pela sua natureza de classe e pelo lugar que ocupa na luta libertadora do povo português, o PCP é herdeiro do que de mais avançado a revolução de 1910 comporta.
Mas não está na natureza do PCP integrar-se no cortejo de um comemorativismo que dá uma visão deformada dos acontecimentos, acrítico e passadista – como se está já a ver com as comemorações oficiais do Centenário da República – que idealiza e absolve a República dos seus pecados de classe burgueses, que promove uma leitura personalizada e elitista da História, subestima o papel decisivo da componente popular no 5 de Outubro e na derrota de sucessivas conspirações contra-revolucionárias. Uma leitura que ignora as motivações profundas das grandes lutas operárias e populares que percorreram os dezasseis anos da República (das grandes greves dos trabalhadores agrícolas do Sul e múltiplas lutas operárias, às manifestações contra a participação de Portugal na guerra imperialista e contra a carestia de vida), passa ao lado da violenta repressão que frequentemente se abateu sobre os trabalhadores, repressão que em definitivo alienou o entusiasmo e o apoio popular que, sobretudo em Lisboa, Porto e outros centros urbanos, rodeou a implantação da República.

Os limites de classe da República

Como ensinou Marx são os homens que fazem a História, mas fazem-no em circunstâncias determinadas. E essas circunstâncias em Portugal eram as de um país atrasado e dependente, simultaneamente colonizador e colonizado (sobretudo pela Inglaterra); um país essencialmente rural e agrícola mas deficitário em produtos alimentares e onde o minifúndio coexistia com grandes latifúndios de proprietários absentistas; um país com uma altíssima taxa de analfabetismo e um elevado índice de emigração; um país com uma indústria incipiente apesar de já existirem unidades industriais de dimensão significativa; um país com uma classe operária recente e pouco numerosa embora com importantes concentrações em Lisboa e Porto e dispondo de crescente grau de organização sindical e importante capacidade de mobilização.

Não se poderia esperar da revolução de 1910 aquilo que não lhe permitiam as condições sócio-económicas e ideológicas da época, o débil desenvolvimento do capitalismo, o reduzido peso da classe operária e o atraso da penetração do marxismo, a ausência do partido revolucionário de vanguarda, que só viria a nascer em 1921, abrindo caminho com dificuldade perante a influência da ideologia anarquista no movimento operário e sindical e o avanço das forças reaccionárias que conduziu ao golpe de Estado fascista.

Mas dito isto é indispensável assinalar que, apesar da destacada intervenção popular na revolução e de medidas do poder republicano orientadas para a supressão das mais graves sobrevivências feudais, absolutistas e clericais (como a separação da Igreja do Estado e a laicização do Ensino, medidas aliás indispensáveis numa pura perspectiva do desenvolvimento capitalista), a República rapidamente revelou os seus limites de classe. As mudanças não tocaram praticamente as estruturas económicas e as relações de propriedade. E o aparelho de Estado manteve-se quase intacto, o que possibilitou uma enorme margem de manobra à reacção, tanto monárquica como republicana, reacção que ao longo dos dezasseis anos de vida da República nunca deixou de conspirar e de tentar a sua sorte.

A natureza de classe liberal burguesa do novo regime revelou-se particularmente na sua atitude para com as reivindicações populares e numa repressão tão violenta sobre as lutas e as organizações operárias – que o triunfo da revolução russa tornava a seus olhos particularmente ameaçadoras – que analistas e historiadores empenhados no branqueamento do fascismo a evocam para banalizar a repressão terrorista que destruiu liberdades e direitos democráticos fundamentais que, embora em muitos aspectos meramente formais e defendidos palmo a palmo, integravam o edifício jurídico da República.

Como não podia deixar de ser, para um Partido que se define como «partido político da classe operária e de todos os trabalhadores», a Exposição valoriza a componente operária e popular, as lutas dos trabalhadores pelas suas reivindicações mais sentidas, a intervenção das massas para influenciar a política da República e derrotar os assaltos contra-revolucionários.

Não se nega o papel, positivo ou negativo, de destacadas personalidades da República, do Partido Republicano e dos partidos que resultaram da sua divisão e de outras organizações de cariz republicano. A verdade porém é que quando, perante os problemas surgidos na concretização dos planos para o derrube pela força da Monarquia, a elite republicana hesitava em avançar, foi a «arraia miúda», a baixa oficialidade, soldados e marinheiros, trabalhadores das mais diversas condições, que empurraram a revolução para diante.

Mas a influência popular na política da República teve uma expressão limitada. Já na Revolução de Abril a intervenção da classe operária e das massas foi determinante, imprimindo ao processo revolucionário uma dinâmica que revolveu as estruturas económicas e sociais, liquidou os monopólios e os latifúndios e realizou finalmente transformações em benefício do povo que a República não soube ou não pôde realizar.
A revolução de 1910 foi essencialmente uma revolução política, «por cima». A Revolução de Abril foi uma profunda revolução social. Uma revolução que certas forças não queriam mas que as massas em aliança com o MFA impuseram. Uma revolução que muitos, que durante o fascismo reclamavam para si os ideais da República e a apontavam como exemplo a seguir, tudo fizeram para circunscrever à esfera política, aliando-se à pior reacção e desencadeando a ofensiva de recuperação capitalista que é responsável pela grave crise em que o nosso país se encontra mergulhado.

É por isso que o PCP se opõe firmemente a quaisquer tentativas para, a pretexto da evocação do Centenário da República, diminuir o lugar cimeiro que a Revolução dos cravos ocupa na luta libertadora do povo português e desvalorizar, e mesmo caluniar, os seus generosos ideais e conquistas.

As batalhas de hoje

Esta apresentação já vai longa. Não queria mesmo assim terminar sem referir duas questões que têm que ver directamente com as batalhas em que estamos empenhados.

A primeira sobre o conceito de democracia. Como a Exposição brevemente ilustra, um mérito da revolução de 1910 consistiu nos significativos progressos em matéria de direitos e garantias individuais que a Constituição de então consagrou. Resultam porém evidentes os limites de uma democracia que recusava a participação das massas, que se dotou de uma lei eleitoral que excluía do sufrágio a maioria da população ou de uma lei da greve que ficou conhecida como a «lei burla».

Diz-se isto para sublinhar que aquela democracia, já então muito limitada pelo seu pendor estritamente liberal, seria um absurdo cem anos depois. O processo da Revolução de Abril confirmou que a conquista, exercício e defesa das liberdades democráticas é inseparável de profundas transformações económicas e sociais que liquidem de facto o poder económico e político do grande capital e da edificação de um Estado democrático em que a representação e a participação das massas na construção do seu próprio destino seja efectivamente assegurada.

Na concepção do PCP a democracia deve ser simultaneamente política, económica, social e cultural num quadro em que a independência nacional esteja assegurada. Apesar de sucessivas revisões, a Constituição de 1976, incomparavelmente mais progressista do que a Constituição de 1911, aponta na direcção da Democracia Avançada que o PCP preconiza no seu Programa. Daí que seja tão importante defendê-la das novas arremetidas que os partidos do capital preparam. Daí que o PCP a considere uma valiosa trincheira de resistência às políticas de direita e bandeira de luta por uma alternativa patriótica e de esquerda indispensável à solução dos problemas do povo e do país.

Uma segunda questão respeita à soberania e à independência de Portugal, questão que Lénine focou apontando Portugal como exemplo de um país formalmente independente mas de facto dominado pelo imperialismo. A Exposição chama a atenção para o atraso e dependência externa do país à altura da revolução de 1910. Esta foi uma situação que a República não resolveu, que a ditadura fascista agravou, e que, apesar das profundas e positivas mudanças que o 25 de Abril trouxe ao País, subsiste nos dias de hoje como grave problema nacional.

À data da Revolução de Abril Portugal era, como era em 1910, um país simultaneamente colonizador e colonizado. Como condição fundamental para arrancar o País do seu atraso secular e melhorar radicalmente as condições de vida dos portugueses, o PCP apontou o reconhecimento da imediata independência dos povos coloniais e a libertação de Portugal da tutela do imperialismo. Mas destes objectivos só o primeiro foi realizado. E os laços de dependência externa agravaram-se ainda mais com a entrada para a União Europeia e a evolução federalista desta, com o reforço da NATO e uma política subserviente em matéria de Política Externa e de Defesa Nacional.

Face a esta realidade pode perguntar-se: qual tem sido historicamente o comportamento das classes dominantes perante as pressões e ingerências externas? Quem tem lucrado com a dependência e submissão de Portugal à Inglaterra, aos EUA, às grandes potências da União Europeia?

Lições para a luta

O que a História mostra é que, sempre com a palavra «Pátria» na boca, as classes dominantes estão sempre prontas a recuar diante das pressões externas e a trair o interesse e a soberania nacionais e que são os trabalhadores e o povo que empunham a bandeira da dignidade e da independência nacional. Foi assim com a resposta ao ultimatum e a revolta do 31 de Janeiro. Foi assim com as importantes acções populares contra a entrada de Portugal na I Guerra Mundial. Foi assim ao longo da noite fascista. Assim é também hoje numa luta que tem de se alargar e intensificar. À classe operária e ao povo português cabe a responsabilidade e a honra de empunhar a bandeira, simultaneamente patriótica e internacionalista, da independência nacional e da paz.

A evocação da revolução de 1910 é para o PCP uma oportunidade para aprofundar o conhecimento da história contemporânea do nosso povo, não para nos voltarmos para o passado e muito menos para repetir o passado, mas para tirar lições para a luta do presente, luta que é sempre necessário situar numa perspectiva histórica mais ampla. É isso que fará o PCP em relação à efeméride da implantação da República em Portugal, como o fez noutras ocasiões, nomeadamente com a evocação da revolução de 1383/1385 sobre a qual o camarada Álvaro Cunhal produzira na prisão, com «As lutas de classes em Portugal nos fins da Idade Média», uma obra de grande valor.

Não é esta a atitude de outras forças políticas e é real o risco de as comemorações oficiais – que envolvem muitos meios e têm uma ambição de projecção política e de envolvimento popular muito grande – serem objecto de instrumentalização política e ideológica. Aliás assistimos já a uma abundante literatura revisionista que a pretexto do «Centenário da República» pretende reescrever a história do século XX, iludindo a natureza de classe terrorista do fascismo e apagando e deformando o papel da classe operária e das massas populares, do PCP, da Revolução de Abril.

É necessário dar a tais propósitos a resposta que mereçam. Defendendo a verdade histórica mas sobretudo, voltados para diante, reforçando o Partido e as suas raízes nos trabalhadores e no povo e prosseguindo com determinação e confiança a luta pelo progresso social, a independência nacional, o socialismo.

Intervenção feita a 29 de Janeiro, no Porto, na inauguração da exposição A revolução republicana de 1910 na história da luta do povo português.

* Membro do Secretariado do Comité Central do Partido Comunista Português