um intelectual militante
Manuel Gusmão
Bento de Jesus Caraça foi um intelectual militante, a vários títulos exemplar, num período histórico marcado por uma grande tensão, urgência e paixão históricas. É o sentido dessa expressão “intelectual militante” que aqui gostaria de ajudar a esclarecer, através da referência a alguns aspectos do trabalho da sua vida, ou seja, do modo como ele trabalhou, fez ou dedicou a sua vida.
Começarei por duas notas sobre questões das quais ele é um caso ou um exemplo e que, ao mesmo tempo, ele próprio formula ou ajuda a compreender.
A 1ª: nascido no Alentejo e de origens populares; por circunstâncias felizes, foi-lhe permitido fazer estudos superiores, tendo-se tornado um cientista e professor universitário. Ora, ele tinha uma consciência lúcida das questões envolvidas nesse percurso. Numa conferência de 1931, “As Universidades populares e a cultura”, ao denunciar que a cultura era o monopólio de um grupo “a classe burguesa – que por virtude da organização social, torna inacessível a sua aquisição à massa geral da humanidade”, Bento de Jesus Caraça responde aos que defendem que “muitas pessoas se elevam do fundo da massa a altas situações sociais” mostrando como esse número é irrisório e que isso significa a perda ou a amputação de “grandes aptidões” que não chegam a poder exprimir-se e realizar-se. Mas ele vai mais longe e acrescenta uma pergunta profundamente reveladora: “quantos desses [que conseguiram ascender socialmente] se conservaram sempre fiéis à sua própria classe e aos seus ideais de emancipação humana e não desertaram ingressando no campo contrário!”. Bento de Jesus Caraça é um daqueles que mantiveram a fidelidade às suas origens populares, e o que dirá a seguir mostra várias coisas: (a) Que o aparelho de poder político e económico e a ideologia das classe dominantes não só produzem aquela amputação, como podem produzir aquele abandono ou essa deserção; (b) Mas mostra também que a fidelidade à classe de origem e aos seus ideais de emancipação não é um efeito automático, implica uma resistência e uma escolha que são seguramente político-ideológicas e, nesse quadro, uma inapagável decisão ética. (c) Ao mostrar que a determinação de classe não actua de forma automática, Bento de Jesus Caraça ajuda simultaneamente a compreender que intelectuais com origens e situações sociais próximas da pequena burguesia urbana ou das camadas intermédias possam abraçar e manter-se fieis aos ideais revolucionários; ajuda a compreender esse fenómeno que caracteriza a história do movimento operário e comunista: o da plena e activa integração no seu seio de intelectuais revolucionários.
A 2ª nota destina-se a referir como essa integração, de que o seu caso é um exemplo, representa um encontro que se dá, no plano da opção política e ideológica, mas também no terreno da cultura ou da democratização da cultura. O movimento operário e comunista, desde muito cedo, manifestaram o desejo e compreenderam a necessidade de se apropriar das mais altas e poderosas criações da cultura (da ciência às artes), socialmente produzida pela humanidade ao longo da sua história, sem que tal história deixe por isso de ser a história da luta de classes. Por seu turno, os intelectuais revolucionários e, em particular, os comunistas sempre tenderam a conceber que os vectores de criação, de descoberta e invenção, que tendencialmente se exprimem na autonomia relativa do seu trabalho, são uma parte do caracter estruturalmente transformador de todo o trabalho humano, e que no seu horizonte de possibilidade, a cultura deve constituir “património, instrumento e actividade de todo o povo” (do actual Programa do PCP, p. 86). Uma parte da obra e do legado político de Bento de Jesus Caraça passa por aí e pode ser ilustrado por um pequeno (?) facto. Manuel Rodrigues Oliveira, membro das Juventudes Comunistas e do Partido desde os anos 20, fundador e proprietário da editora “Cosmos”, contou em várias ocasiões que foi o dirigente operário comunista Bento Gonçalves, na prisão, quem lhe sugeriu o projecto que se viria a tornar na Biblioteca Cosmos – a mais importante acção de divulgação científica e cultural do séc. XX em Portugal – e o nome da pessoa adequada a concebê-lo e dirigi-lo: Bento de Jesus Caraça.
No tempo em que Bento de Jesus Caraça viveu, a intelectualidade era ainda, e designadamente em Portugal, uma pequena elite social, mesmo se já atravessada por diversas contradições de classe e por atitudes e posições política e ideologicamente contraditórias. Entretanto, não deixa de ser significativo que a reorganização de 1940/41 represente e produza uma série de fenómenos articulados entre si: um crescimento e reforço da organização do PCP, da sua capacidade de organizar as massas populares e de as levar à luta, a elevação da sua intervenção não só social mas também política, tornando-se não só um grande partido operário mas um grande partido nacional. É neste quadro que, em conexão com o aumento da influência do PCP entre a classe operária e os trabalhadores em geral, se verifica um crescimento da sua influência na intelectualidade; e é o conjunto desses factores que leva o Partido, através dos seus militantes e da construção da unidade com outros, não só a desempenhar um papel decisivo na luta antifascista, mas a participar fortemente na construção de uma cultura alternativa, de uma cultura que, sendo de resistência, é também projecto de liberdade e de democracia; trabalho efectivo de democratização da cultura e, indissociavelmente, de criação cultural.
Bento de Jesus Caraça foi um intelectual multifacetado, daqueles que encontrou e trabalhou a relação de acção recíproca entre o seu trabalho intelectual, disciplinar ou profissional e essa função intelectual, que tradicionalmente tem significado o desempenho de um papel na formação e intermediação de ideias, valores e sentidos; e que no seu caso se orientou decididamente para a generalização do acesso à cultura como condição e exercício de liberdade, como antecipação de uma comunidade livre e soberana. Cientista, interessado pela filosofia e pela história da ciência, mas também pela divulgação científica e pelas artes; militante da democratização da cultura que foi ao mesmo tempo um militante político, ele foi alguém que procurou activamente construir a unidade das suas facetas enquanto indivíduo concreto, e que tomou partido. Outros falarão nestas páginas da sua militância comunista. Cabem-me algumas palavras mais, não tanto sobre a sua militância cultural, mas sobretudo sobre o modo como pensou e trabalhou a cultura e que está no cerne dessa militância ao mesmo tempo cultural e política.
Na sua justamente famosa conferência “A cultura integral do indivíduo”, mas também em outros textos, Bento de Jesus Caraça dá um exemplo de aguda e activa compreensão e utilização do materialismo histórico e da dialéctica materialista para compreender e ao mesmo tempo encontrar os meios de transformação do seu presente. No seu trabalho, ele encontra a necessidade de pensar historicamente “a época actual”, e de a determinar como época de contradições, e de transição concreta “entre aquilo que desaparece e o que vai nascer”. Algumas das suas caracterizações têm aquele admirável poder de conhecimento, que nos leva a reconhecermos nelas, mesmo se em formas diferentes, algo que une e diferencia a sua e a nossa actualidade. Apenas dois exemplos: “Época singular! Em que podemos assistir às manifestações do mais alto poder criador e do mais persistente esforço de sistematização – Einstein e Broglie – e, paralelamente, à desorganização total da vida económica e à destruição deliberada precisamente daquilo de que a maioria carece”. Ou: “Há alguns séculos, os destinos de um agrupamento social jogavam-se no próprio local em que o agrupamento vivia. Hoje, o futuro de nós, portugueses, joga-se tanto em Portugal, como em Nova York ou nas planícies do norte da China”.
Ao escolher, expressamente, nessa conferência, como ângulo de visão da história da Humanidade e da sua própria época, o da contradição e da luta entre o individual e o colectivo, aquilo que ele efectivamente faz é uma reapresentação da concepção marxista da luta de classes, transpondo-a para um plano que poderíamos designar como o de uma antropologia cultural. Nesse plano, Caraça não perde de vista a radicação ou o peso das determinações materiais, económica e social, e a sua dimensão histórica, mas o que ele procura é pensar uma dialéctica de superação histórica das formas de dominação de classe e “de casta”, pela qual o individual “chegado a um elevado grau de desenvolvimento, se absorverá” no colectivo, e se processará uma “síntese grandiosa do indivíduo e da colectividade”. Caraça procura claramente o específico papel e sentido da cultura nesse processo; e o lugar da responsabilidade do indivíduo, e em particular do intelectual, que se assume como militante da cultura.
Nós comunistas somos muitas vezes acusados de termos uma visão instrumental da cultura. E de facto a cultura é para nós, também, um instrumento – não um ornamento, não a auto-promoção do poder, não a imposição da submissão ou do consentimento, não uma mercadoria -, mas como compete ao partido revolucionário dos trabalhadores portugueses, um instrumento de emancipação. Mas, por outro lado e, no fundo, a acusação é falsa, e duplamente falsa. Primeiro, porque os humanos são também criadores de instrumentos; não há trabalho humano sem a produção e a transformação de instrumentos. Neste sentido, não se trata para nós de “instrumentalizar” a cultura, mas de a trabalhar no sentido da ampliação da humanidade dos humanos. Segundo, porque, desde há muito, consideramos também a cultura como um fim.
Bento de Jesus Caraça disse-o e fez aquilo que disse. Na conferência de 1931, escrevia:
“O aperfeiçoamento constante dos meios de satisfação e desenvolvimento das necessidades [materiais], ideias [de cooperação e objectivos de ordem moral], e sentimentos [do belo], constitui a cultura, que no dizer de Karl Marx «compreende o máximo desenvolvimento das capacidades intelectuais, artísticas e materiais encerradas no homem».
A cultura é assim simultaneamente um meio e um fim.”
O que ele escreveu não é letra morta; ecoa e vive ainda hoje no Programa do PCP que utiliza expressões e ideias que vêm de Bento de Jesus Caraça, no parágrafo de abertura e no parágrafo final do ponto sobre a democracia cultural.
«O Militante» – N.º 253 – Julho/Agosto 2001