Nos 25 anos da Constituição da República

Nos 25 anos da Constituição da República

Vitor Dias

1. A aprovação e promulgação da Constituição da República em 2 de Abril de 1976 representa, a muitos títulos, um marco decisivo e fundamental na história da democracia portuguesa conquistada com a Revolução de Abril.

Não apenas porque a aprovação e entrada em vigor de uma nova Lei Fundamental do país, depois de quarenta e um anos de vigência da Constituição fascista de 1933, significou a necessária e positiva passagem da situação democrática, alcançada pelo levantamento militar e pela luta popular a seguir ao 25 de Abril de 1974, para a instauração de um regime democrático escolhido pelo próprio povo.

Mas sobretudo porque a nova Constituição da República, no seu conteúdo inicial, incorporou e consagrou o vastíssimo acervo e património de valores, objectivos, transformações, conquistas e mudanças trazidas à sociedade portuguesa pela revolução democrática.

2. À distância de 25 anos, a muitos poderá parecer estranho que, quatro meses depois de uma mudança tão drástica e desfavorável na situação político-militar e na correlação de forças nos órgãos de poder como a que foi induzida pelo desfecho dos acontecimentos de 25 de Novembro, ainda tenha sido possível aprovar uma Constituição tão avançada e sobretudo tão fiel e correspondente aos mais profundos e sólidos valores e aquisições da revolução.

Mas essa eventual estranheza talvez possa ser atenuada ou afastada, lembrando que esse resultado só foi possível graças ao êxito da luta então travada pelo PCP e outras forças progressistas, civis e militares, para derrotar as manobras desencadeadas pelas forças de direita e sectores do PS, para levar mais longe a dinâmica revanchista do 25 de Novembro e retardar a aprovação da Constituição, na esperança que uma substituição do Presidente da República permitisse fazer retroceder o processo constituinte. E, como justamente sublinhou Álvaro Cunhal em “A revolução Portuguesa – o passado e o futuro”, foi «significativo da tensão que se viveu o facto de o Presidente da República ter ido à Assembleia Constituinte quando da aprovação da Constituição, em 2 de Abril de 1976, para ali mesmo, imediatamente, a promulgar. Foi uma decisão da mais alta importância, com a qual o Presidente Costa Gomes prestou um notável serviço à democracia e ao País».

E, para se compreender aquele valioso resultado à distância de 25 anos, é sobretudo indispensável reavivar a memória de que a aprovação de uma Constituição com aquela natureza e conteúdo contava a seu favor com uma fortíssima radicação social e apoio popular aos ideais e conquistas da revolução que, além do mais, representava um factor condicionante das posições das forças e quadrantes mais reaccionários ou conservadores, em grande medida ainda obrigados a dissimular muitos dos seus reais objectivos e propósitos.

3. Desde há 25 anos que, a respeito da aprovação da Constituição e do seu significado, entre muitas outras, são repetidas duas monumentais falsificações.

A primeira diz respeito à tentativa de opor a Constituição à revolução, quando é uma evidência histórica que a Constituição e o seu carácter só foram possíveis graças à revolução e ao seu carácter profundamente transformador e, sobretudo, às mudanças operadas na realidade económica, social e política pela acção e luta das próprias massas populares.

A segunda diz respeito à tentativa de apresentar a aprovação da Constituição como uma derrota do PCP e de outras forças progressistas a quem, falsa e desonestamente, se atribuem propósitos ou projectos contrários à elaboração da Constituição e à correspondente instauração e institucionalização de um regime democrático.

Ora, a verdade é que tanto no Programa do PCP, aprovado na clandestinidade em 1965, como nas alterações que conjunturalmente lhe foram introduzidas no VII Congresso Extraordinário de Outubro de 1974, está consagrada com total clareza a prioritária eleição de uma Assembleia Constituinte e a instauração de um regime democrático escolhido pelo próprio povo. A verdade é que, bem ao contrário, foram as forças de direita civis e militares, dispondo ainda de outras cumplicidades que, em Junho de 1974, manobraram para a prioritária eleição por sufrágio popular do General António de Spínola para Presidente da República, com expresso adiamento das eleições para a Assembleia Constituinte, e num óbvio golpe para, através de um plebiscito pessoal, paralisar, fazer retroceder e subverter o processo de democratização da vida nacional. A verdade é que o PCP deu uma destacada e qualificada contribuição para a elaboração da Constituição da República e para a fundação e construção do regime democrático-constitucional e, ao longo de 25 anos, foi o mais destacado protagonista na luta pela defesa e aplicação da Constituição e do projecto de democracia política, económica, social e cultural que ela consagra.

4. Não adianta ignorar, e por isso mais vale afrontar claramente a questão, que nas operações de deturpação, de calúnia, de reescrita da história e de recomposição da memória colectiva em que aquelas duas falsificações se inserem, desde há 25 anos que desempenham um papel crucial as referências (e as constantemente recuperadas imagens) ao chamado «cerco da Constituinte».

Mas, contra a corrente criada por milhares de insistências em falsidades por parte de dirigentes do PS, do PSD e do CDS-PP, que a generalidade dos órgãos de informação repete acriticamente há 26 anos, importa dizer uma vez mais que se trata, pura e simplesmente, de uma escandalosa falsificação, nascida na época de uma óbvia conveniência política e depois perseverantemente mantida por uma enorme má-fé e por uma imensa desonestidade política e intelectual.

Esta prolongada campanha procura apresentar aquele episódio de 12 e 13 de Novembro de 1975 como a imagem emblemática ou acontecimento simbólico de uma alegada oposição entre processo revolucionário e elaboração da Constituição, entre massas em movimento e deputados eleitos pelo povo para a Assembleia Constituinte.

Mas, para criar e impor esta ideia como a «verdade» histórica, precisam de sonegar, ocultar e esquecer todas as verdades sem comas que, aliás, nunca têm a coragem de contestar abertamente ou ponto por ponto.

Desde logo, a verdade incontestável de que a concentração dos trabalhadores da construção civil só se realizou junto ao Palácio de S. Bento (onde funcionava a Assembleia Constituinte mas onde funcionava também a sede do Governo) porque o Ministro do Trabalho mandou encerrar provocatoriamente as instalações do Ministério na Praça de Londres, transferindo assim para o Primeiro-Ministro a resposta às reivindicações dos trabalhadores.

Depois a verdade incontornável de que única relação da concentração com os deputados à Constituinte está no facto de que erradamente o «sequestro» do Governo se estendeu à impossibilidade de saída dos deputados.

E sobretudo a verdade insofismável de que a concentração dos trabalhadores da construção civil incorporava reivindicações laborais e traduzia um conflito agudo com a política do Governo, mas não incorporava nenhum objectivo ou reclamação contrários à elaboração da Constituição nem visava politicamente os deputados à Constituinte, a quem aliás não foram dirigidas quaisquer reivindicações ou exigências políticas.

5. A circunstância muito relevante de Portugal ser seguramente o país da Europa ocidental, e talvez com poucos casos similares em todo o mundo, em que mais vezes foi revista a Constituição não se explica por qualquer suposta ânsia de perfeccionismo ou volúpia actualizadora. Antes exprime com toda a clareza a continuidade de um conflito de fundo entre as forças que não se reconhecem nos valores, na substância concreta e na arquitectura constitucional originária da revolução de Abril e as forças, como o PCP, que são fiéis àquele património e vêem nele importantes instrumentos e referências para a construção de um futuro diferente e melhor. E em todos os temas e argumentos recorrentes, expostos ao longo de 25 anos contra a Constituição – desde a sua extensão ao seu carácter «excessivamente programático» -, o que sempre esteve presente foi a incomodidade da direita com uma Constituição ela própria merecendo ser considerada uma conquista da revolução. E as sucessivas revisões da Constituição traduziram, sistematicamente, por parte do PS e dos partidos da direita a sua vontade de ou reabilitar retroactivamente, por via constitucional, a política anti-constitucional que tinham realizado no Governo ou abrir portas para a imposição da política de direita que comummente defendem.

Sendo sabido que é sempre possível melhorar um texto constitucional e não se negando que, em várias revisões houve aperfeiçoamentos pontuais positivos, a verdade porém é que não foi esse o escopo fundamental das quatro revisões até agora operadas, aproximando-se uma quinta, de carácter extraordinário, para viabilizar constitucionalmente a adesão de Portugal ao Tribunal Penal Internacional.

Com efeito, e escolhendo apenas alguns temas nucleares, o escopo fundamental da revisão de 1982 foi designadamente a reconfiguração dos órgãos de poder ditada pelo encarniçado propósito do PS, do PSD e do CDS de extinguir o Conselho da Revolução e a participação institucionalizada do MFA no processo político. O da revisão de 1988 foi principalmente o de eliminar a protecção e consagração constitucional de grandes transformações económicas e sociais e conquistas da revolução como as nacionalizações e a reforma agrária. O da revisão extraordinária de 1992 foi o de proteger e autorizar as graves mutilações de soberania nacional induzidas pela assinatura do Tratado de Maastricht. Por sua vez, a revisão de 1997 saldou-se especialmente pela imposição obrigatória de um referendo sobre a instituição das regiões administrativas que entretanto estavam (e lá continuam) consagradas na Constituição como sendo parte integrante do poder local, e pela perigosa e perversa abertura concedida a negativas modificações do sistema eleitoral, tanto para as autarquias locais como para a Assembleia da República.

6. O saldo global deste processo de sucessivas revisões, que historicamente têm de figurar como actos estruturantes da cumplicidade e convergência do PS com a direita, revela necessariamente factores e elementos de desprotecção de realizações, valores e princípios da revolução democrática, de facilitação da ofensiva da política de direita e, nalguns casos, de empobrecimento da democracia.

Mas este lúcido e avisado reconhecimento não pode conduzir a culpar a Constituição do que é culpa da orientação e política de sucessivos Governos. Nenhuma revisão constitucional criou a obrigação de levar por diante o furioso processo de privatizações. Foram os governos do PS e do PSD que o quiseram percorrer. Nenhuma revisão obrigou Portugal e envolver-se subordinadamente na teia crescentemente federalista da integração europeia. Foram os Governos do PS e do PSD que o escolheram e impuseram. Nenhuma revisão, e concretamente a última, obriga à modificação do sistema eleitoral. É o Governo do PS que insiste em trilhar esse caminho desastroso.

E é também a esta luz, e tendo em conta quanto de desfavorável se passou em Portugal e no mundo, que se pode dizer que, 25 anos depois da sua aprovação, o saldo mais marcante não está tanto no que se perdeu mas na grande capacidade de resistência em defesa da Constituição e em quanto valioso, de acertado, de progressista e de avançado nela continua consagrado (e merece ser relido e reavivado), ajudando a uma luta que continua e designadamente não criando nenhum obstáculo ou barreira constitucional à política de esquerda que o PCP defende e à democracia avançada por que luta.

«O Militante» – N.º 252 – Maio/Junho 2001