o matemático e lutador
Jorge Resende
Professor da Universidade de Lisboa
Há homens que pela sua acção, interpretando os anseios profundos de libertação das massas populares, se projectam muito para além da sua existência. Assim é Bento de Jesus Caraça. Um pensamento que não passe à acção ou é aborto ou é traição, disse ele um dia. E a vida deste homem forte, de uma coerência harmoniosa, foi a prática desta ideia.
Aspectos centrais da biografia de Bento de Jesus Caraça são o de ser oriundo de uma família pobre de trabalhadores rurais, de ter aprendido as primeiras letras com um trabalhador e de ter sido ajudado nos seus estudos pela patroa dos seus pais.
O simples facto de ter chegado a professor universitário de matemática, com elevadas capacidades científicas e pedagógicas, conduz-nos a uma mesma perturbação que vem desde então, há quase um século, até agora. Na sociedade em que nasceu foi necessário a uma criança muito inteligente ter também muita sorte para poder desenvolver e revelar todas as suas capacidades.
Actualmente, em todo o mundo, uma em cada quatro crianças trabalha. Muitas outras crianças e adolescentes são atirados para a marginalidade mais abjecta, reduzidos a subprodutos iletrados de uma sociedade alienada.
Este é o resultado, no início do século XXI, do triunfo provisório de um capitalismo cínico e brutal.
Quantas inteligências excepcionais se perdem pelo caminho, despojos desta guerra impiedosa?
A dimensão de tal desastre compreende-se melhor ao olharmos para trás imaginando uma História da qual estivesse ausente o filho dos trabalhadores rurais alentejanos. Ou imaginando como seria diferente Portugal se a todas as crianças, ao longo do século XX e agora, fossem dadas as oportunidades que ele teve.
Um traço fundamental da personalidade de Bento de Jesus Caraça consiste em nunca ter esquecido ou atraiçoado as suas origens. Pelo contrário. A sua vida foi uma espécie de devolução generosa como se a posição a que chegou lhe tivesse sido apenas emprestada.
Fez isso de uma forma totalmente consciente, como se torna claro ao ler o seguinte trecho da sua conferência A cultura integral do indivíduo: (…) O trabalho de submissão, de lamber de botas, da parte das chamadas camadas intelectuais, tem sido duma perfeição dificilmente excedível. Digamos, para irmos até ao fim, que os mais excelsos nesses mister são frequentemente aqueles que, partidos das camadas ditas inferiores, se guindaram, umas vezes a pulso, outras em acrobacias de palhaço, a posições que deveriam utilizar para defesa dos bens espirituais e que só usam para traír os seus antigos irmãos no sofrimento. Palavras duras ditas serenamente.
Bento de Jesus Caraça e os seus companheiros de luta viveram um período muito duro da nossa História do século XX. Assistiu à ascenção dos fascitas ao poder em Itália (1925), ao golpe de Estado do 28 de Maio em Portugal (1926), à vitória dos nazis nas eleições na Alemanha (1930), à proclamação da república em Espanha (1931). Daí para diante lutas sangrentas dilaceram toda a Europa, culminando com a segunda grande guerra. A subida de Salazar ao poder, com a criação de todo o seu aparelho repressivo, e a vitória de Franco, ao cabo de três anos de guerra civil, com a complacência das potências ocidentais, são duas peças deste puzzle. A derrota do nazi-fascismo na Alemanha e em Itália em 1945, reforçou a vontade de lutar para que o mesmo pudesse suceder na península. No entanto, o fim da guerra e a segunda metade dos anos quarenta significaram o início do reconhecimento internacional do fascismo ibérico por parte das grandes potências, com particular relevo para os Estados Unidos da América do Norte e o Reino Unido. Em 1949 é fundada a NATO, e Portugal é um dos países aderentes. Assim se fechou o puzzle vergonhoso das cumplicidades internacionais que hoje, tal como ontem, ninguém pode ignorar.
A actividade social e política realiza-a Bento de Jesus Caraça, nos anos 30 e 40, nesse contexto internacional e de ascenso do fascismo português. Ela foi uma das faces visíveis de uma luta mais geral, legal e clandestina, que envolveu muita gente, e que não pode ser compreendida desenquadrada do trabalho colectivo do Partido Comunista Português. No início dos anos 30 faz várias conferências, muito participadas, dirigidas especialmente à juventude, que ainda hoje são editadas e lidas.
No final da sua conferência sobre Galileo Galilei defende que a mensagem que nos é transmitida pela vida do grande cientista de Florença é a seguinte: expulsai os falsos deuses; valorizai o homem, acabando com a projecção abusiva e criminosa do individual sobre o colectivo; humanizai a sociedade!
Quem lê esta frase não pode deixar de pensar que era também a mensagem que Bento de Jesus Caraça nos queria deixar.
Foi com a fundação da Biblioteca Cosmos, em 1941, que a acção cultural de Bento de Jesus Caraça atingiu a sua expressão mais alta. Foi o seu único director até ambos desaparecerem em Junho de 1948.
No que diz respeito à actividade científica, além de algumas publicações dirigidas aos estudantes, Bento de Jesus Caraça escreveu o livro Conceitos Fundamentais da Matemática, uma maravilhosa obra de divulgação, cujos dois primeiros volumes sairam na Biblioteca Cosmos, e que só em 1951 seria publicado na íntegra.
Foi um dos fundadores da Gazeta de Matemática, em 1940.
Foi Presidente da Direcção da Sociedade Portuguesa de Matemática no biénio 1943-1944.
Foi um divulgador da Matemática com uma influência só comparável, no século XX, à de Sebastião e Silva.
Bento de Jesus Caraça não foi um investigador, e dificilmente o podia ter sido numa época difícil, de obscurantismo cultural, com outras prioridades, e em que a investigação era praticamente inexistente nas nossas universidades. Mas, pela acção desenvolvida junto das novas gerações de então, a sua influência científica foi muitíssimo para além daquilo que lhe era exigido pela docência universitária.
Em virtude da sua actividade cívica e política, Bento de Jesus Caraça foi demitido em 1946.
Com o fim da guerra tinham-se realizado manifestações de rua por todo o país comemorando a vitória sobre o nazi-fascismo, na sequência das quais fora formado o Movimento de Unidade Democrática (MUD) a cuja Comissão Central pertencia Bento de Jesus Caraça.
Em 1946 o MUD publica o documento O MUD perante a admissão de Portugal na ONU, assinado pela respectiva Comissão Central o que conduz à expulsão da Universidade Técnica de Bento de Jesus Caraça e Mário de Azevedo Gomes por despacho do Ministro da Educação Nacional.
E o que dizia esse documento para provocar uma reacção tão brutal do regime fascista?
Entre outras coisas afirmava a dado passo que quer a admissão (na ONU), contra os princípios da Carta das Nações Unidas, quer a recusa em nome desses princípios, são igualmente vexatórios para o nosso sentimento de portugueses democratas. Os fascistas não suportaram que fossem postos tão frontalmente em causa.
Entre 1946 e 1947 dezenas de professores universitários portugueses foram expulsos, no seguimento destas duas primeiras expulsões.
Muitos rumaram ao exílio, destino que, no mínimo, teria tido Bento de Jesus Caraça, se entretanto não tivesse falecido a 25 de Junho de 1948, com a doença que, sem dúvida, fora agravada pela tensão causada pela perseguição política.
Tem havido muitas tentativas de adulterar o sentido da intervenção cívica e política de Bento de Jesus Caraça. Uma delas consiste em, não negando a sua militância no PCP, de certa forma a diminuir ou, pior ainda, a “desculpar”. Na verdade, as alternativas de militância política postas à disposição desta nova geração dos anos 30, para além do PCP, eram praticamente inexistentes, diz-se num artigo do número de Dezembro de 1998 da revista História, página 32. A verdade é que havia alternativas. Muitos se incorporaram no regime fascista, outros desistiram da luta, outros pertenciam a correntes políticas distintas do PCP. São conhecidas as divergências entre Bento de Jesus Caraça e António Sérgio, estando este num campo diferente daquele na oposição ao fascismo.
Na primeira conferência pública pronunciada por Bento Caraça na Universidade Popular Portuguesa, em 1929, era já visível a inspiração marxista e a opção do seu autor pela utopia comunista, afirma-se uns parágrafos antes no mesmo artigo.
A palavra utopia tem, correntemente, dois significados. Por um lado significa país ideal organizado da melhor forma visando a felicidade de todos (tal como é idealizado e descrito por Thomas More); por outro lado significa quimera, concepção irrealizável.
A verdade é que nenhuma destas ideias corresponde ao pensamento de Bento de Jesus Caraça como se pode reconhecer lendo, por exemplo, A cultura integral do indivíduo, da qual se chama a atenção para o seguinte trecho:
(…) Encarada sob este ângulo, a História da Humanidade aparece-nos como uma gigantesca luta, gigantesca no espaço e no tempo, entre o individual e o colectivo. Luta gigantesca, e trágica, e sangrenta, em que transparece um domínio quase permanente do individual sobre o colectivo e, de longe em longe, um estremecimento do grande corpo mortificado, um movimento de revolta, um triunfo efémero do colectivo, que logo cai sob outro ou o mesmo jugo pela sua incapacidade de se reconhecer e dirigir.
Como alternativa propunha Bento de Jesus Caraça uma luta árdua, tenaz e contínua: Eis a grande tarefa que está posta, com toda a sua simplicidade crua, à nossa geração – despertar a alma colectiva das massas.
Não há no seu pensamento e acção quaisquer fantasias ou perseguições de miragens. Bento de Jesus Caraça não lutou por um projecto irrealizável. Lutou por um mundo necessário, mais livre, mais pacífico, mais democrático.
Noutros textos ou intervenções procura-se pintar a figura de Bento de Jesus Caraça com cores mais suaves, para que ele se torne mais aceitável. Mas ainda recentemente (18 de Abril) o Jornal de Letras publicou uma sua carta inédita em que explicitava ao seu correspondente o pensamento exposto n’A cultura integral do indivíduo. Aí afirmava: A estrutura actual da sociedade (economia burguesa capitalista) é já incompatível, por demasiado estreita, com a aplicação em condições de pleno rendimento, da ciência e da técnica ao bem-estar dos homens. (…) Daqui resulta um dilema – a) ou se sacrificam as possibilidades de bem-estar humano à estrutura económica actual, ou b) se sacrifica esta ao bem-estar dos homens.
Já na referida conferência dizia de uma forma clara: A civilização de base capitalista tornou inoperantes os princípios de liberdade individual e de igualdade, para não falar já no da fraternidade que só por sarcasmo se pode pretender que esteja incluído hoje entre as ideias dominantes da governação.
Na realidade, a universalidade de Bento de Jesus Caraça provém do facto de se ter inserido na corrente histórica daqueles homens que, desde que os primeiros escravos se revoltaram contra a opressão, há milénios atrás, deram sentido à sua vida fundindo-a com a luta das massas populares pela sua libertação.
«O Militante» – N.º 253 – Julho/Agosto 2001