Bento de Jesus Caraça, como militante político

Bento de Jesus Caraça
como militante político

Alberto Vilaça
Escritor. Membro da Direcção da Organização Regional de Coimbra

Bento de Jesus Caraça, um homem de inteligência superior, foi militante de muitas causas.

Matemático ilustre, notável cultor, apaixonado professor e grande divulgador dessa ciência, faz lembrar um outro para cujo drama ele tão bem soube sensibilizar-nos, Galileo Galilei, perseguido pela Inquisição desde que, do púlpito de uma igreja florentina, um frade dominicano de nome Caccini acusou as matemáticas de serem uma “invenção diabólica”.

Não seria este o pensamento de Salazar, mas certo é que Caraça não se ficou por elas como ciência pura. Bem pelo contrário, cuidou da sua correlação dinâmica com os problemas humanos concretos, estudando e ensinando as suas raízes sócio-económicas, as vidas e posturas cívicas de alguns dos seus maiores criadores e de outras grandes figuras da Humanidade, tal como a sua aplicação, através da economia, à equação e solução de múltiplas carências dos homens, intervindo também com enorme relevância, por essa e por várias outras formas, nas inerentes lutas políticas, nas mais gerais dos povos e em particular nas dos portugueses. Forjando-se enfim como um intelectual de “novo tipo” profundamente ligado às massas populares e aos seus anseios.

Bem se pode assim dizer que se tornou também “diabólico” aos olhos do fascismo e que isso lhe valeu as mais variadas perseguições, com silenciamentos, um processo disciplinar e outros judiciais, prisões, a expulsão da cátedra, dificuldades económicas e angústias, o agravamento de antiga doença e uma morte prematura. Tudo por força de uma intensa e permanente militância cujos resultados e exemplo nos legou, apesar de todas essas perseguições, prolongadas aliás até para além da morte e que fizeram com que, poucos dias depois desta, o Avante! de Julho de 1948 proclamasse: “Até à morte Bento Caraça foi perseguido! Mas até à morte Bento Caraça lutou pelo bem do povo e de Portugal!”

Sem conhecida actividade directamente política nos primeiros anos da juventude, logo cedo porém se destacou com apreciados dotes de jovial e contagiante capacidade de direcção, numa militância cultural e cívica que, embora sem aquela incidência específica mas por sistemáticas posições racionalistas e progressivamente inspiradas pelo materialismo dialéctico, constituíria base fundamental para a formação das válidas mentalidades de muitos intervenientes nas próprias actividades políticas de carácter democrático – dele mesmo e de outros.

Entretanto, e naturalmente, iria construindo a sua pessoal formação teórica marxista, interessado pelo leninismo e dando os primeiros passos na luta contra a Ditadura Militar fascista instalada desde 1926.

Nascido num meio pobre, de operários agrícolas alentejanos, contactando depois e de perto com os meios trabalhadores em geral desde 1919, através da Universidade Popular Portuguesa, e anos após mesmo com o operariado industrial de Lisboa, Barreiro, Seixal e Setúbal, veio inclusive e em data não clarificada a conhecer pessoalmente Bento Gonçalves e outros dirigentes comunistas.

Marcado sem dúvida pelas suas origens de classe e também pelo convívio com as classes trabalhadoras na década de Vinte, em especial nos últimos anos desta, não surpreende que, já em 1929, tenha anunciado o seu combate ao “sistema capitalista”, escrevendo e afirmando mesmo em público: “creio que a classe proletária está destinada a, num futuro mais ou menos próximo, tomar nas suas mãos a direcção dos destinos do mundo, transformando por completo toda a organização social existente”.

E também nunca mais deixou de participar na batalha ideológica com uma peculiar e já aludida militância por via cultural e teórica que necessariamente produzia semelhantes efeitos políticos nas consciências, mas cujas abundância e riqueza não se inserem na finalidade específica destas linhas.

Entretanto passara, em 1931, a integrar uma organização do próprio PCP – o NIS ou NTI, Núcleo de Intelectuais Simpatizantes ou Núcleo de Trabalhadores Intelectuais.

Entre outros objectivos, nomeadamente estudos das questões agrária, colonial, militar e outras, propunha-se este organismo a posterior distribuição dos seus membros por células adequadas e ainda fomentar o estudo do leninismo e a criação do Grémio dos Trabalhadores Intelectuais, um “sindicato” que aglutinaria legalmente os vários ramos de profissionais liberais.

Bento de Jesus Caraça aparece não só então mas de seguida e até falecer em renovados contactos partidários, numa inequívoca qualidade de membro do Partido, como em diferentes datas evidenciam vários documentos e diversos testemunhos directos.

São igualmente conhecidos muitos dos intercâmbios intelectuais e publicações marxistas e de esquerda a que teve acesso nos anos Trinta. Mas bem interessante seria fazer um outro estudo: como se fez, com que meios se fez a sua própria formação teórica de marxista, aberto ao leninismo, e de militante de um partido com essas matrizes?

Com as referidas marcas sociológicas, sem dúvida sentindo também o impacto da revolução soviética, que livros e revistas leu, em especial nos anos Vinte e até antes? Anotou-os, e como?

Há que vasculhar, passe o termo, a sua biblioteca não meramente profissional, as notas que possa ter feito aos seus livros, os apontamentos que porventura terá tirado, eventualmente e se aí indicadas as datas de aquisição e leitura.

Por exemplo e por ocasional informação colhida em conversa com seu filho, detentor de todos esses livros, posso afirmar que um deles, e que tem notas à margem pelo punho de Bento Caraça, é a Dialéctica da Natureza, de Engels. Como se sabe, trata-se de um livro fundamental para a visão materialista e dialéctica do mundo, da ciência e do seu próprio desenvolvimento, com realce para a história do conhecimento científico – aspectos que o anotador tanto cultivou – e cujas revelação e publicação integrais só vieram a ocorrer precisamente em 1925 e a partir da URSS.

Quantos mais não haverá talvez com idênticas fontes de informação?

Curioso objecto de estudo detalhado, pois só há curtas referências, seria ainda o das organizaçoes políticas antifascistas a que esteve ligado, em especial as primeiras e mais efémeras. Mas talvez não haja muitos elementos concretos a tal respeito e se verifique até uma ou outra repetição (acaso com hipotéticas designações diferentes) quanto às mais antigas de que há notícia. De um modo ou de outro, porém, impõe-se tentar essa investigação sistemática.

Num sucinto inventário, podem entretanto apontar-se numerosos movimentos e organizações – bem mais de uma vintena, de carácter antifascista e democrático, de luta pela Paz, de solidariedade e apoio humanitários a prisioneiros dos campos de concentração nazis e a lutadores antifascistas foragidos – aos quais o insigne intelectual e militante comunista pertenceu ou deu apoio, ou com que de algum modo colaborou, ou até e tão só (mas relevantemente) incentivou e fomentou.

Ei-los: ABC, Liga Antifascista, União Antifascista, Acção Antifascista, Associação Pró-Pátria, o já falado NIS ou NTI, outras possíveis e inidentificadas estruturas posteriores do PCP, Liga dos Amigos da URSS, SVI (Socorro Vermelho Internacional), Movimento Amsterdam-Pleyel, Comité Mundial contra a Guerra e o Fascismo, LCGF (Liga Contra a Guerra e o Fascismo), FPP (Frente Popular Portuguesa), BAAF (Bloco Académico Antifascista), Exiled Writers Committee, American Commitee to Save Refuggees, Unitarian Comittee, Associação Feminina Portuguesa para a Paz, MUNAF (Movimento de Unidade Nacional Antifascista), MUD (Movimento de Unidade Democrática) e Candidatura do General Norton de Matos à Presidência da República.

Quanto ao PCP, será de acrescentar que as expressas ligações orgânicas de Caraça passararm nomeadamente por dirigentes como José de Sousa, Manuel Alpedrinha, Pavel (Francisco Paula de Oliveira), Júlio Fogaça, Álvaro Cunhal e António Dias Lourenço, senão também o próprio Bento Gonçalves e outros.

Numerosos foram, por outro lado, os destacados intelectuais e outros antifascistas portugueses, bem como intelectuais de grandes envergadura e projecção internacionais – como pelo menos, quanto a estes últimos, Romain Rolland e Henri Barbusse – com os quais colaborou no âmbito dos mencionados movimentos e organizações.

Quanto à sua acção nuns e noutras, além naturalmente da partidária, importa em especial destacar, em 1934-36, a LCGF (de que até se faziam reuniões disfarçadamente no decurso de jogos de bilhar num café da Baixa lisboeta e de que terão existido, entre outros, um Comité Central e um Comité Regional de Lisboa) e a FPP (a cujo Directório pertencia como representante e dirigente da primeira); e sobretudo, mais tarde, o MUNAF e o MUD, tendo ambos estes organização em vários pontos do país – tal como as duas anteriores, mas muito mais extensiva.

Como é bem sabido, o primeiro destes dois últimos, de carácter clandestino e criado a partir de 1943 por impulso do PCP, ligava unitariamente importantes e diversos sectores democráticos, tendo sido decisivo para o seu arranque e congregação o papel de Caraça, que também ficou a pertencer aos respectivos Conselho Nacional e Comité Executivo.

Igualmente conhecida e importante é a actividade do MUD, com uma existência semi-legal em 1945-48 e em que o papel aglutinador e dinamizador de Caraça foi do mesmo modo essencial, destacando-se como vice-presidente e realizando-se até muitas das reuniões na sua própria residência.

Não cabe obviamente nem é possível desenvolver aqui toda a actividade de tais organizações e movimentos ou sequer a do prestigiado militante comunista no seu seio.

Será contudo de anotar, como índices do seu papel de proa na luta antifascista e embora sem os enumerar um a um, os discursos e conferências que fez, os artigos e entrevistas que publicou, as representações ao presidente da República e a outras entidades, bem como os documentos e manifestos de vários daqueles movimentos (muitos deles identificados e decerto beneficiando do seu contributo na respectiva elaboração), que subscreveu juntamente com os demais democratas pertencentes às comissões signatárias, e até muitas cartas públicas e privadas.

Entre os de responsbilidade colegial, são vários os do MUD e em especial o da proclamação programática do MUNAF, cujo texto inicial redigiu e naturalmente foi também enriquecido pela discussão colectiva. E em particular ainda os documentos que elaborou em representação do MUD, nessa qualidade os publicitando mas em seu próprio nome: Aspectos do Problema Cultural Português e A Posição do MUD no Momento Político Presente.

Por outro lado – e abstraindo aqui das áreas profissional e universitária, e até das propriamente ideológica e filosófica – enunciam-se mesmo alguns dos vectores fundamentais das suas reiteradas tomadas de posição, tanto cívicas como caracterizadamente políticas, todavia aqui não especificáveis ou descritíveis em concreto: defesa e múltiplas e diversificadas práticas de educação popular; formação cultural e informação enciclopédica, mormente através da Universidade Popular e da Biblioteca Cosmos; defesa da Escola Única, denúncia e combate aos métodos e directrizes obscurantistas do chamado Estado Novo; defesa da Paz e luta contra a guerra; indefectível unidade democrática, na luta pela Democracia e pelo Socialismo; reivindicação das liberdades de expressão, associação e outras, como a da formação de partidos políticos e eleições livres; denúncia e protesto contra agressões e prisões de operários, estudantes e outros cidadãos pela polícia política, e em especial contra a existência do campo de concentração do Tarrafal e deportações para lá; posicionamentos por medidas de desenvolvimento da produção e da economia nacionais, assim como do trabalho e dos diversos direitos laborais; denúncia da inadequação do então Estado antidemocrático português às exigências democráticas da participação na ONU; defesa da soberania nacional, numa linha independente de colaboração internacional com os países democráticos e todos os povos, mas contra a política de blocos; etc..

Ao mesmo tempo e sempre, ligado também e por várias formas e actuações aos meios operários e aos meios intelectuais progressistas: desde os sindicatos livres anteriores à fascização de 1933 até outras organizações como a Voz do Operário e a Cooperativa dos Trabalhadores de Portugal; desde a frequência das redacções de revistas como O Diabo e a Seara Nova até aos “Passeios no Tejo”.

É necessariamente redutor falar apenas de um dos aspectos da personalidade e da actividade de Bento de Jesus Caraça, de mais a mais do modo abreviado que aqui se impõe e tão amplas e abrangentes elas são.

O seu pensamento e a sua acção desenvolveram-se em tão multifacetados campos e sensibilizam tão diferenciados sectores humanistas, científicos, culturais, cívicos e mesmo políticos que é com uma grande verdade que a primeira figura institucional da República Portuguesa afirmou recentemente ter Bento de Jesus Caraça uma “dimensão universal” e por isso mesmo “não ser apropriável por ninguém”.

Resta acrescentar-lhe a também grande verdade de que igualmente não é desapropriável de nenhuma das vertentes da sua rica identidade.

Entre estas, e porque a propósito no que toca ao tema específico, a da sua militância política e muito em particular a da sua militância e do seu ideal comunistas, indissociáveis aliás de tudo o mais que ele é e fez.

E falando-se de militância antifascista – que foi muito a de Caraça ao lutar pela paz e pela soberania nacional, pelas liberdades e pela democracia, pela emancipação económica e cultural do povo – ocorre ainda recordar alguns factos paradigmáticos e recentes a que há longo tempo ele dera resposta antecipada suscitando agora umas considerações finais.

É que se ouvem por vezes insólitas vozes, vindas inclusive de três diferentes quadrantes do espectro partidário português. Só destes, e um de cada, aqui vão os seguintes exemplos.

Há quem tenha afirmado não ser antifascista porque era ainda criança ao tempo da revolução. E até quem tenha dito que não aprovaria um certo monumento à resistência e ao 25 de Abril se se chamasse "contra o fascismo" pois nunca votaria contra qualquer ideologia. Tal como alguém – reconhecendo embora faltarem valores à democracia que temos – tentou mesmo justificar este facto por ser um "traço comum" às demais democracias existentes no mundo e resultar da sociedade de consumo.

É como se qualquer de nós dissesse com igual cinismo que não condena o esclavagismo porque não é do tempo da sua existência em Portugal!

É como se se fingisse que o que está em causa, mais que uma ideologia (aliás e em si mesma antidemocrática e repulsiva), é um regime político que durante quase meio século oprimiu violentamente o povo português. É como se se ignorasse que o primeiro parágrafo do preâmbulo da nossa Constituição regista expressamente que o acto libertador do MFA, "coroando a longa resistência do povo português e interpretando os seus sentimentos profundos, derrubou o regime fascista".

A unidade democrática – justa, necessária e sempre preconizada por Caraça – é e quer-se pluralista. Porque mais amplo, plural deve ser o quadro partidário constitucional.Saibamos porém livrar-nos do falso “pluralismo” de gente tão neutra …

O fascismo não está por aí a bater-nos à porta, mas os interesses e as forças económico-sociais que lhe serviram de lastro – mais que o mero consumismo (que aliás manipulam) e tal como no resto do mundo capitalista, “democrático” ou não – permanecem vivos. E, com essa ou com outras formas ditatoriais e repressivas, não deixariam de tentar continuar ou agravar o caminho do domínio e da exploração dos cidadãos em geral e das classes trabalhadoras em especial, bem como de esmagar os seus valores, se e quando as vias da democracia vigente deixassem de lho permitir tanto quanto lhes convém.

A militância democrática continua pois a passar pelo combate que tal impeça, lutando hoje mesmo tanto contra esses domínio e exploração como pela crescente realização destes valores.

É assim de parafrasear Bento de Jesus Caraça ao falar dos diferentes tipos de humanismo que distinguia, pois é actualíssimo relembrar que cada homem “vale tanto pelo que é como por aquilo contra que é”.

De um outro modo: somos e valemos também por aquilo contra que lutamos, contra o fascismo clássico ontem, contra qualquer dos seus sucedâneos hoje e amanhã, contra o poder e a exploração capitalistas sempre, ainda que por vezes se apresentem a coberto de linguagem ou fórmulas aparentemente democráticas, mas de real conteúdo oposto.

«O Militante» – N.º 253 – Julho/Agosto 2001