No 50º aniversário de Moncada, Manuel Bernardino

No 50º aniversário de Moncada
Resistir para vencer!

Manuela Bernardino

O assalto a Moncada, de que se assinala o 50º aniversário a 26 de Julho, fracassou, como acção revolucionária, nos seus objectivos imediatos(1) . Contudo tal não impediu que o 26 de Julho seja considerado um marco na história revolucionária cubana dos nossos dias. E isso porque, como considerou o 1º Congresso do Partido Comunista de Cuba, “nem sempre na História os reveses tácticos são sinónimos de derrota”(2).

Com efeito, os preparativos para Moncada – escolha e mobilização dos quadros e organização do plano de acção em torno dum Programa(3), bem como a própria experiência do assalto ao quartel e ocupação doutros edifícios que o circundavam(4) – encerram um extraordinário conjunto de ensinamentos de enorme valor para a luta libertadora do povo cubano. “O importante para abrir o caminho para o futuro em determinadas circunstâncias é a vontade inquebrantável de luta e a própria acção revolucionária. Sem Moncada não teria existido o Granma, a luta da Sierra Maestra e a vitória do Primeiro de Janeiro de 1959”(5).

Moncada foi “um grito, um apelo à consciência social cubana”(6) contra a ditadura de Fulgêncio Batista que o golpe militar de 10 de Março de 1952 implantara. Apoiando-se no exército ao serviço da oligarquia e do imperialismo norte-americano, Batista criou um feroz regime repressivo, caracterizado e reconhecido no plano internacional pela corrupção, o jogo e a prostituição, enquanto do outro lado grassava o analfabetismo, a miséria, o desemprego em massa. É contra esta situação e o clima de terror que se insurgem os jovens revolucionários que, com o assalto a Moncada, concentraram sobre si a perspectiva da resistência e da possibilidade de um outro caminho, que a sua acção – por muito contraditório que possa parecer – efectivamente poten-ciou. Por isso se considera que Moncada “assinalou o caminho”7 para a libertação e a verdadeira independência de Cuba.

“Cinco anos, cinco meses e cinco dias depois do assalto a Moncada triunfou a Revolução em Cuba”.(8) De facto, a 1 de Janeiro de 1959 os guerrilheiros da Sierra Maestra entraram em Santiago de Cuba. Para trás ficaram centenas de mortos, a prisão, o exílio, a luta armada. Mas também a luta insurreccional nas cidades, com o ataque ao Palácio Presidencial em Março de 1957, a greve geral de 58 e a tentativa desesperada dum golpe militar e do governo provisório que travasse o curso, já irreversível, da revolução. A conjugação da luta de guerrilha com a luta social e política, mesmo sem coordenação estruturada, foi determinante para o avanço do processo revolucionário e para o seu êxito. A vitória sobre a ditadura foi possível não apenas pela acção do Movimento 26 de Julho, conduzido por Fidel Castro, mas também pela actividade dos comunistas, dos combatentes do Directório Revolucionário, pela luta da classe operária e de muitos outros trabalhadores e democratas sem filiação político-partidária.

A revolução cubana, com a sua inegável originalidade e múltiplas particularidades – aliás como qualquer autêntica revolução –, projectou-se como estímulo para a luta revolucionária em todos os cantos do mundo, nomeadamente, pelo seu rápido avanço e profunda confiança num futuro mais justo.

O entusiasmo da vitória não iludiu, contudo, os jovens revolucio-nários quanto às dificuldades que iriam encontrar para diante. Essa preocupação ficou bem evidente na declaração que, a 8 de Janeiro, fizeram quando chegaram a Havana: “Estamos num momento decisivo da nossa história. A tirania foi derrotada. A alegria é imensa. E, no entanto, há ainda muito para fazer. Não nos enganamos a nós próprios acreditando que para a frente tudo será fácil. Talvez no futuro tudo seja mais difícil”(9).

Abriu-se então, de facto, uma fase nova na história de Cuba e do seu povo. Um período empolgante, não só de destruição da velha ordem – com o castigo dos principais responsáveis dos crimes cometidos durante a ditadura, a confiscação dos bens obtidos indevidamente por altos funcionários do regime ou a dissolução do exército – mas essencialmente um tempo de justiça social e de grandes avanços revolucionários que se confrontou, desde logo, com ferozes campanhas na imprensa internacional. A revolução democrático-popular, beneficiando dum quadro internacional favorável, ao consolidar-se, atinge profundamente, num curto espaço de poucos meses, a oligarquia industrial, os latifundiários e os próprios interesses imperialistas dos EUA que dominavam a atrasada economia cubana de monocultura açucareira. Com a Reforma Agrária(10) são afectadas “muitas empresas norte-americanas que possuíam consideráveis extensões das terras mais férteis do país”(11).

“O imperialismo não podia tolerar sequer uma revolução nacional libertadora em Cuba. Logo que foi promulgada a Lei da Reforma Agrária, os Estados Unidos começaram a dar os primeiros passos para organizar uma operação militar contra Cuba.”12 À campanha mediática, que visava neutralizar o enorme impacto que a revolução estava a ter junto dos povos de todos os continentes, entre todos os que lutavam pelo progresso social e a emancipação nacional dos povos, juntou-se a acção diplomática, a sabotagem e a subversão – nada era fácil – como tinham previsto e prevenido os principais dirigentes da Revolução, e como se viria a verificar com a tentaiva de invasão em Playa Girón e com a crise dos mísseis de Outubro de 1962. Mas a mais desumana e permanente ingerência do imperialismo norte-americano – o bloqueio – surgiu como resposta à opção socialista que a revolução adoptou quando se tornou evidente que a luta de libertação nacional e social estavam indissoluvelmente associadas.

O bloqueio tem sido, ao longo de mais de 40 anos, um instrumento implacável na estratégia dos EUA para liquidar a revolução cubana. Aliás, o próprio documento oficial do Departamento de Estado, ao decretar sanções económicas contra Cuba aponta para que elas devem produzir “a fome, o desespero, a derrocada do governo”. Mesmo com o seu reforço e as tentativas de internacionalização do bloqueio, através das Leis Torricelli e Helms-Burton, já num quadro de profunda alteração da correlação mundial de forças decorrente das derrotas dos socialismo nos países do leste da Europa e da desagregação da URSS, – Cuba não desistiu de defender a sua soberania e as principais conquistas revolucionárias, a começar pela saúde e a educação. Só assim foi possível, nesse período extraordinariamente complexo e contraditório que foi o “Período Especial” – de completa reformulação das relações económicas externas, antes orientadas em 80% para o campo socialista –, Cuba poder iniciar a recuperação económica e criar assim condições para um novo impulso no seu processo revolucionário. A criatividade e a prontidão na busca de soluções, estimuladas pelo carácter participativo da democracia cubana, foram fundamentais para ultrapassar as dificuldades de então. Mas, para isso, também contou o elevado nível cultural e patriótico do povo cubano, a sua consciência social e a solidariedade internacional.

Ao carácter contínuo do bloqueio, têm-se associado, consoante a fase interna do processo revolucionário e a conjuntura internacional, outras formas de ingerência e agressão a Cuba. Intervenção militar directa(13), violações do espaço aéreo, guerra bactereológica, actos de terrorismo de diverso tipo, tentativas de assassinato de Fidel, ocupação de embaixadas, instigação de emigração ilegal destabilizadora (“balseros”), motins, rádio e TVs piratas, apoio e financiamento da “oposição”, sequestro de aviões e embarcações, como aconteceu ainda recentemente, constituem uma enorme multiplicidade de intromissões que provam à saciedade que o imperialismo norte-americano não tolera que um pequeno país, às suas portas, decida do seu futuro de forma independente e soberana. Os claros e prolongados propósitos de ingerência do imperialismo norte-americano em Cuba são agora agravados com a tese da “guerra preventiva” e o seu propósito de instaurar uma “nova ordem mundial” totalitária contra os trabalhadores e os povos.

Cuba necessita hoje, mais do que nunca, da nossa solidariedade. Duma solidariedade que denuncie e condene o bloqueio e todas as outras formas de ingerência. E que reafirme o direito inalienável do povo cubano em prosseguir o caminho que escolheu, sem intromissões externas. Uma solidariedade que esteja à altura do carácter internacionalista da própria Revolução Cubana.

Quando, no início da década 90, os arautos do "pensamento único" anunciaram que Cuba não resistiria, nem sequer um ano, à derrocada da URSS, o Partido Comunista de Cuba, enfrentando a nova situação internacional e os reflexos que teria no seu país, desenvolveu e tomou uma série de iniciativas. Profundas alterações e novas orientações foram introduzidas no plano económico – reestruturação do aparelho produtivo, reorientação do comércio externo, abertura ao capital estrangeiro, modificações na estrutura agrária, liberalização de algumas actividades, despenalização da posse de divisas – constituíram um vasto leque de iniciativas que os comunistas cubanos implementaram, associadas a uma intensa batalha ideológica dirigida pelo PC de Cuba que se reafirmou, de novo, como vanguarda insubstituível e garante da unidade do povo perante os novos desafios. Tal atitude granjeou uma crescente onda de solidariedade porque possibilitou, num quadro de extraordinária complexidade, o reforço da unidade e determinação dos trabalhadores e do povo cubano em defender aspectos essenciais da sua revolução socialista – enormes e significativas conquistas sociais, a sua independência e soberania nacionais.

O “sí, se puede”, lançado e demonstrado na prática pelos camaradas cubanos, ganhou força de exemplo na América Latina e em todo o mundo. O slogan de Porto Alegre “um outro mundo é possível”, que hoje é bandeira do movimento “antiglobalização”, deve muito ao “sim é possível” da revolução cubana.

Estamos convictos que o espírito de Moncada, caracterizado pela “vontade inquebrantável de luta”, se mantém vivo. São inequívocas expressões desse espírito a manifestação do 1º de Maio, em Havana, e o ânimo dos cinco patriotas cubanos presos nos EUA, cujos ecos nos vão chegando.

Notas:

(1) O objectivo era obter armas para a luta revolucionária, mas a acção da centena e meia de jovens saldou-se por dezenas de mortos, alguns feridos e várias prisões, ficando o Movimento, no final, com menos armas do que as utilizou no assalto, segundo El grito del Moncada, de Mario Mencia.
(2) Do relatório do CC, apresentado por Fidel Castro, ao 1º Congresso do PC de Cuba, Dezº 1975, edições “Avante!”, pág. 27.
(3) Conhecido por “Programa de Moncada”. Esta declaração foi lida perante os intervenientes no assalto a Moncada, na quinta Villa Blanca, em Siboney (17km de Santiago de Cuba), local que funcionou como quartel general para a acção, segundo descrição em El grito del Moncada.
(4) Palácio da Justiça, Hospital Militar e Hospital Saturnino Lora, este último com o objectivo de possibilitar a fuga ou de socorrer quem eventualmente necessitasse de cuidados médicos, segundo El grito del Moncada.
(5) Do relatório ao 1º Congresso do PC de Cuba, edições “Avante!”, pág. 28.
(6) El grito del Moncada, vol. II, pg. 588.
(7) Do relatório ao 1º Congresso do PC de Cuba, edições “Avante!”, pág. 27.(8) Idem, pág. 28.
(9) Idem, pág. 29.
(10) A lei da Reforma Agrária foi aprovada logo a 17 de Maio de 1959.
(11) Do relatório ao 1º Congressso do PC de Cuba, edições “Avante!”, pág. 30.
(12) Idem, pág. 33.
(13) A 17 de Abril de 1961 um barco desembarcava mercenários na Baía dos Porcos, numa tentativa de invadir Cuba, como já atrás se referiu. Os planos de invasão foram frustrados e a acção terrorista foi derrotada em 72 horas.

 

«O Militante» – N.º 265 Julho/Agosto de 2003