Acontecimento de importância universal
Domingos Abrantes
Assinala-se este ano o centenário da revolução russa de 1905, acontecimento que, passados tantos anos e apesar dos seus objectivos não se terem então materializado, continua a ser uma fonte de valiosos ensinamentos e a assumir uma importância histórica para todos os que se identificam com a luta contra a exploração e a opressão dos trabalhadores e dos povos, com os ideais de profundas transformações democráticas e do socialismo.
A revolução russa de 1905, pelo contexto em que decorreu – já se desenhava uma aguda luta inter-imperialista pela divisão do mundo e se acentuavam os fenómenos de crise económica e social -, pelas suas repercussões, nomeadamente no impulso dado à luta das massas populares e pelos ensinamentos que permitiu extrair para o desenvolvimento da luta da classe operária, teve uma enorme influência na evolução do processo revolucionário que marcou o século XX.
Eclodindo quando o desenvolvimento do capitalismo era já marcado pelo capital monopolista, conservando embora fortes marcas do feudalismo, nomeadamente na agricultura e no regime político, a revolução russa de 1905 foi a primeira grande revolução popular da época imperialista, a primeira revolução em que a classe operária interveio como força autónoma – com reivindicações e formas de luta próprias – e sob a direcção do seu partido político, neste caso o Partido Operário Social-Democrata da Rússia, dirigido por Lénine, factos que, só por si, a tornaram um acontecimento de significado mundial.
Sendo, pelo seu conteúdo, uma revolução democrática burguesa, ela assumiu, e essa foi a sua originalidade, um carácter profundamente popular e proletário pelas formas de luta, pelo sistema de alianças objectivas que se estabeleceu, nomeadamente a aliança operária-camponesa e pelas profundas transformações políticas, económicas e sociais operadas na realidade russa num curto espaço de tempo.
Como salientaria Lénine, "no ano de 1905, ele (o proletariado russo) conseguiu em poucos meses regalias que os operários, durante decénios, em vão tinham esperado das "autoridades"".
No início do século XX, confirmando a genial previsão de Marx, o centro do movimento operário revolucionário tinha-se deslocado para a Rússia, país que se havia tornado, igualmente, num dos principais centros das contradições inter-imperialistas e no elo mais débil de todo o sistema. Com a revolução de 1905 o proletariado da Rússia, pela dimensão e natureza da sua luta, tornou-se na vanguarda do movimento revolucionário mundial, realidade que não é separável do facto de se ter criado na Rússia um partido revolucionário de novo tipo, cuja acção assegurou a hegemonia do proletariado na vasta movimentação de massas que se desenvolveu (só em Janeiro, o primeiro mês do começo da revolução, o número de greves aumentou dez vezes), pondo em movimento milhões de operários e camponeses, aproximando a luta por transformações de carácter democrático-burguês da luta por transformações de carácter socialista.
O "Domingo Sangrento"
Para Lénine, ainda que tenham sido os acontecimentos de Outubro (greve geral que paralizou praticamente toda a Rússia, mobilizando mais de 2 milhões de trabalhadores), com os quais, no seu dizer, "a classe operária da Rússia desferiu o primeiro golpe poderoso na autocracia tsarista", e a insurreição da classe operária de Moscovo, em Dezembro, os aspectos mais marcantes da revolução, de tal forma que os classificou de "um passo memorável na luta histórica mundial da classe operária", a revolução começou no dia 22 de Janeiro de 1905, com o "Domingo Sangrento", nome pelo qual ficou conhecido o massacre de operários perpetrado pelas tropas tsaristas, quando "milhares de operários – não social democratas, mas crentes, súbditos fiéis – conduzidos pelo padre Gapone" se dirigiam pacificamente para o Palácio de Inverno para implorar junto do Tsar, "seu senhor", uma vida melhor e mais liberdade.
A petição que os operários pretendiam entregar ao tsar, e que havia sido discutida e aprovada em reuniões de massas, revelava, por um lado, ingenuidade e mesmo ignorância política ao imaginar que o papel do senhor todo poderoso da Rússia se distinguia das classes dominantes, mas, por outro lado, reflectia o ambiente da luta reivindicativa da classe operária que varria na altura a velha Rússia. Dizia a petição: "Nós, operários, habitantes de Petersburgo, vimos junto de ti. Nós – escravos miseráveis e humilhados – somos esmagados pelo despotismo e pela arbitrariedade (…) Nós, os milhares aqui presentes, assim como todo o povo russo, estamos privados de qualquer espécie de direitos humanos. Os Teus funcionários reduziram-nos à situação de escravos".
A petição enumerava todo um conjunto de reivindicações económicas, sociais e políticas que, pela sua natureza, punham em causa o sistema e não poderiam nunca ser alcançadas pacificamente. Mas essa foi a amarga experiência que milhares de operários aprenderam por experiência própria após o massacre do "Domingo Sangrento".
No conjunto das reivindicações destaca-se: amnistia, liberdades cívicas, salário razoável, entrega progressiva da terra ao povo, convocação de uma Assembleia Constituinte por sufrágio universal e igual, terminando com o seguinte apelo: "Senhor! Não Te recuses a ajudar o Teu povo! Destrói a muralha que Te separa do Teu povo! Providencia para que seja dada satisfação aos nossos pedidos, faz esse juramento, e Tu tornarás a Rússia feliz; se não, nós estamos prontos a morrer aqui mesmo. Só temos dois caminhos: a liberdade e a felicidade ou o túmulo."
O aviso ao tsar e às classes dominantes estava feito. É possível que os massacrados frente ao Palácio de Inverno, nesse trágico dia 22 de Janeiro de 1905, não imaginassem que iriam encontrar aí o seu túmulo, mas o sacrifício das suas vidas não foi em vão. Doze anos mais tarde, a classe operária russa dirigiu-se novamente ao Palácio de Inverno. Mas dessa vez já não para implorar às classes dominantes uma vida melhor, mas para tomarem o poder, criando a possibilidade de construir pelas suas próprias mãos uma vida digna e de liberdade, confirmando-se as previsões de Marx e Engels que, avaliando o desenvolvimento revolucionário na Rússia, concluíram que a futura revolução a realizar-se aí teria uma enorme ressonância e seria "um ponto de viragem na história universal".
Lénine estudou atentamente, ao longo dos anos, as experiências da revolução de 1905, enriquecendo o arsenal teórico do movimento revolucionário. A análise feita por si dos acontecimentos do "Domingo Sangrento" é um trabalho notável, exemplificativo do seu método de trabalho, da análise concreta das situações concretas, da busca do essencial e determinante no emaranhado dos factos, por vezes contraditórios. Onde alguns pseudo-revolucionários e pessoas "altamente cultas" só viam na acção da classe operária nesse acontecimento, desespero, religiosidade e ignorância, Lénine via nos "operários incultos da Rússia pré-revolucionária" um enorme potencial de luta, o despertar da consciência política, sendo precisamente neste despertar de uma quantidade colossal de massas populares para a consciência política e para a luta revolucionária que, segundo ele, residia "o significado histórico do 22 de Janeiro de 1905".
A solidariedade internacional
A revolução russa de 1905, coroando um poderoso e prolongado movimento reivindicativo das massas populares e em particular da classe operária, inaugurou uma nova era na história mundial, uma época de revoluções populares, no Ocidente e no Oriente, a época do papel determinante da luta de massas, incluindo a greve geral política da classe operária, como forma de luta por grandes transformações sociais.
Sob o seu impulso desenvolveram-se por toda a Europa amplas acções de massas, por vezes de dimensão gigantesca, em que, a par de reivindicações económicas e sociais, foram colocadas reivindicações políticas, como as liberdades políticas, o sufrágio universal, reivindicações de independência nacional, obrigando as classes dominantes de vários países a significativas concessões para "acalmar" as massas.
Foi igualmente sob o seu impulso que se pôs "em marcha" o movimento de libertação nacional e se desenvolveram as revoluções na Turquia, na Pérsia e na China.
Não menos relevante, há que registar o impulso dado à consolidação e ao desenvolvimento das organizações operárias em diversos países. Aliás, foi com a revolução de 1905 que o internacionalismo proletário em acção ganhou corpo e forma ao suscitar o apoio e a solidariedade dos trabalhadores e dos homens e mulheres progressistas em todo o mundo. Tornou-se claro que na Rússia se travava uma batalha de importância mundial e que os destinos da revolução russa era uma questão do proletariado de todo o mundo.
Sob a palavra de ordem de "Abaixo o Tsar", "Abaixo a exploração", "Viva a revolução social", desenvolveram-se grandes acções de solidariedade para com o proletariado russo e contra a repressão. Foi a pressão internacional que obrigou o tsarismo a libertar M. Gorki, preso na altura.
A revolução russa de 1905 foi derrotada por acção conjugada da reacção interna e externa. Sobre a classe operária e as massas populares abateu-se uma feroz repressão. Entretanto as classes dominantes enganaram-se redondamente ao pensarem que, com o recurso à repressão, tinham enterrado definitivamente as aspirações das massas populares, e em particular da classe operária, a uma vida liberta da exploração.
A revolução, embora derrotada, permitiu importantes avanços na definição da teoria e das soluções práticas concretas para as batalhas seguintes: elucidou importantes questões sobre o processo complexo da aquisição da experiência revolucionária pelas massas; sobre a espontaneidade das massas e a necessidade da luta organizada; sobre o papel da classe operária e do seu partido político; sobre o entrelaçamento entre a luta económica e a luta política; sobre a combinação entre a luta parlamentar e extra parlamentar; sobre a correlação entre as tarefas democráticas e a luta pelo socialismo e o carácter criativo que a intervenção das massas introduz no desenrolar da revolução. O intenso debate ideológico que se seguiu permitiu acelerar o separar "das águas" entre a corrente revolucionária e o oportunismo no seio do movimento operário russo e internacional. A revolução revelou a extraordinária importância da solidariedade internacional para conter a intervenção da burguesia internacional em socorro da burguesia russa, bem como a confirmação da importante tese de Marx de que os avanços da revolução fazem suscitar uma contra-revolução forte e unida, disposta a recorrer a meios extremos, ensinamento aliás confirmado por mais de um século de luta revolucionária e que nos nossos dias assume uma acuidade particular.
Foi na base de um muito amplo movimento de massas (greves da classe operária nas cidades e luta do campesinato nos campos) que se produziram fracturas nas forças armadas russas, "o mais sólido" apoio do tsarismo, gerando numerosas revoltas militares, a mais célebre das quais foi a do couraçado "Princípe Potemkine".
O desenrolar da revolução de 1905, por intervenção criativa das massas, tal como anteriormente com a Comuna de Paris, forneceu preciosos ensinamentos quanto à forma que deveria assumir o poder popular que se propunha "demolir" o poder autocrático.
Foi no decurso da revolução de 1905 que teve lugar o processo de criação, em dezenas e dezenas de cidades, dos Sovietes de operários, camponeses e soldados, os quais, como forma de poder popular, substituindo a administração tsarista, dirigiram a luta armada ou o movimento grevista, asseguraram o controlo dos serviços públicos, estabeleceram o horário de 8 horas de trabalho nas fábricas e outras regalias sociais.
Não sem razão, o Soviete de Moscovo avaliando a sua acção declarava: "Demonstramos com o nosso governo que a vida social se desenvolverá de modo mais correcta, a liberdade e o direito de cada um melhor protegidos do que agora".
Foram precisamente os traços específicos revelados pela revolução de 1905 que, no dizer de Lénine, "determinaram o carácter do poder de Estado susceptível de substituir o regime burguês e dos proprietários agrários" – os Sovietes, cuja consagração se verificou com a Revolução Socialista de Outubro de 1917.
Estudando as particularidades da revolução democrático-burguesa na época imperialista, fazendo a síntese de algumas das experiências dessa grande tempestade revolucionária que foi a revolução de 1905, por ele considerada como uma espécie de "ensaio geral" das gloriosas batalhas revolucionárias de 1917, Lénine, na sua obra "Duas Tácticas da Social-Democracia na Revolução Democrática", define os aspectos essenciais da estratégia e da táctica vitoriosas dos bolcheviques na revolução.
A revolução de 1905 e a actualidade
Cada país é uma realidade concreta e por isso mesmo o desenvolvimento dos processos sociais requer soluções próprias que cabe às forças revolucionárias, em cada caso, as encontrar. Entretanto, os clássicos do marxismo-leninismo, que não se cansaram de alertar para a necessidade de não se incorrer no erro da cópia mecânica de experiências alheias e para a necessidade de verificação e reverificação das experiências acumuladas e sua correlação com as condições históricas, salientaram igualmente a necessidade de prestar atenção às experiências que assumiam um carácter universal.
A situação e as tarefas que se colocam hoje às forças revolucionárias são obviamente diferentes das que se colocaram à classe operária e aos revolucionários russos naquela altura. Mas a realidade de hoje confirma a validade de todo um conjunto de teses, submetidas à prova de mais de um século de luta revolucionária, na qual se inclui a nossa Revolução de Abril de 1974, nomeadamente o papel determinante da classe operária e dos trabalhadores na luta por profundas transformações democráticas, o entrelaçamento entre estas e a luta pelo socialismo, a necessidade da aliança da classe operária com as camadas vítimas da política ao serviço dos monopólios e, questão incontornável, a necessidade de um partido revolucionário que, com o seu programa e a sua organização, esteja em condições de impulsionar a luta de massas e o sistema de alianças das forças objectivamente interessadas em profundas transformações, um partido que assegure a sua organização e acção próprias, aliás condição essencial para a solidez de qualquer sistema de alianças.
Finalmente hoje (como o confirmou a Revolução de Abril) como ontem, as forças revolucionárias não podem esquecer que a revolução gera a contra-revolução, que na luta contra os trabalhadores "a burguesia actua como força social única".
Dada a importância deste acontecimento, é intenção de O Militante voltar a este tema. Mas, para já, para assinalar o centenário da revolução russa de 1905, publica-se um artigo de Lénine, "As lições da Revolução", datado de 1910 e no qual são salientadas importantes lições da revolução, algumas das quais se confirmaram como regularidades universais em todas as revoluções, incluindo a revolução portuguesa de 1974, o que dá a este artigo, apesar de sintético, uma grande actualidade e importância para a luta revolucionária nos nossos dias.
"O Militante" – N.º 279 Novembro/Dezembro 2005