Rui Albuquerque, A “reforma global” e desvairada tem de ser parada

A "reforma global" e desvairada tem de ser parada

Rui Albuquerque
Lisboa, 17 de Maio de 2007

Nos tempos que correm a modernidade salta do espírito iluminado dos gabinetes ministeriais e, julgam estes, pouco mais se pode fazer.

O Governo de José Sócrates prepara-se para revogar um conjunto de leis essenciais, que ainda nem vinte anos têm: a Lei da Autonomia das Universidades de 1988, a Lei da Autonomia dos Institutos Politécnicos, o Estatuto do Ensino Superior Particular e Cooperativo, e o Regime Jurídico do Desenvolvimento e Qualidade do Ensino Superior — leis estruturantes do sistema de ensino superior do país.

Recordamos que estas quatro leis foram resultado de muito maior discussão e empenhamento do povo português (nomeadamente a avançada Lei da Autonomia Universitária), do que aqueles que se estão a possibilitar com a lei que se nos apresenta em substituição. Com efeito, estamos em face de uma discreta mas total reforma do ES, a "reforma global", que é omitida da discussão pública por completo. É negado o papel esclarecedor do debate, da participação de todos para fazer uma lei melhor. A sociedade não se apercebe nem é chamada a participar.

Mariano Gago há tempos abriu a universidade à OCDE, pedindo que esta confirmasse as políticas desejadas pela direita. Ouviu então que a abertura às políticas neo-liberais são a panaceia para os nossos males (o que já todos conhecíamos) e surgiu uma Lei de Avaliação do ES (substituta da quarta lei acima) que não tem em conta a realidade nacional e cujos fins seguem a mesma lógica neo-liberal. Isto depois de ter machadado a qualidade substantiva dos cursos com o Processo de Bolonha, que os reduz a um pequeno mundo de formato único e escorreito, hoje denominado "bolonhês". O ensino superior foi empobrecido em absoluto na qualidade. O seu valor social foi novamente renegado, os estudantes abandonados para situações de maior precariedade e auto-sustentação.

Eis que surge agora, substituindo as três primeiras das quatro leis acima, a «reforma global do regime jurídico das instituições de ensino superior» (anúncio posto em comunicado do Gabinete do MCTES na internet, não assinado e não datado, referindo a reunião de Conselho de Ministros de 5 de Maio).

A "reforma global", um golpe no sistema de ensino

A proposta de lei «Regime Jurídico das Instituições de Ensino superir» que surgiu agora, consiste numa descaracterização de muitos e diversos articulados, que numa teia amalgamada deitam por terra muito do que era específico, positivo e potenciador dos subsistemas de ensino superior. Uma reforma desvairada, portanto.

A intenção é claramente a de introduzir o ESPrivado como um subsistema com o mesmo perfil e interesse público que o ESPúblico. Trata-se de abrir o leito onde há-de caminhar o mundo dos negócios da educação, pondo o Estado ao serviço dos privados.

Tentam conciliar o inconciliável. Quer-se dar crédito aos interesses privados no seio do ensino público — que terá consequências de carácter político, administrativo e económico de alcance ainda não ponderado, mas que seguramente será o de maior subordinação do Estado Português ao capital, seja este nacional ou internacional, seja este mais conservador ou liberal, seja este mais dogmático ou inovador. Com esta lei o governo dá novo e seguro impulso às políticas de direita.

Assim, aparece a possibilidade de enquadramento das instituições públicas em fundações de direito privado, medida que levará à privatização das universidades (Art. 9).

Aparece a universidade como prestadora de serviços, mas já sem a «perspectiva de valorização recíproca» que a Lei da Autonomia preconiza. O enlace entre interesses públicos e privados aparece aliás em vários pontos (Art. 14, 17.3, 23).

Nos Art.s 25, 26 e 27 vemos que ao Estado caberá um papel mais fiscalizador das actividades de ensino (temendo os escândalos passados com as Modernas e as Independentes?). Um tal papel será um logro, quando os critérios que motivam o Estado para ensinar se diluem num sistema único e global de interesses que ultrapassam e encostam a uma margem subsidiária o papel desse mesmo ensino.

A desresponsabilização do Estado é um ponto em evidência e gravíssimo. No capítulo do financiamento, já não «cabe ao Estado garantir às universidades as verbas necessárias ao seu funcionamento» como está na Lei da Autonomia Universitária. O Estado deixa de garantir o financiamento por força da lei.

Isto significa ainda o desinteresse do investimento num sistema de ensino autónomo, livre nos seus programas pedagógicos e científicos. Acentuar-se-á então a dependência governamental das instuituições de ensino superior (IES) e a sua orientação para os mecanismos de mercado.

Bem ao contrário, quanto ao ES Privado não são pedidas garantias de que este se responsabilize pela qualidade da prestação do seu serviço. Somente que faça de conta que anda atrás do Público, em todas as matérias, das formais às materiais. Por exemplo, o Estatuto da Carreira Docente do ES Privado, matéria que essa sim os governos deviam governar, continua a ser adiada e disfarçada.

Em relação a processos de fusão, extinção e incorporação entre IES temos uma maior agilização. Com tanta legislação, fazendo temer consequências a curto prazo, põe-se as escolas ao arbítrio da vontade governamental.

A gestão democrática

«Os membros do conselho geral não representam grupos nem interesses sectoriais e são independentes no exercício das suas funções.» (Art. 79.8).

 
Nesta frase fica quase tudo explicado sobre a reforma Mariano Gago-José Sócrates e seus conceitos de representação democrática. A reforma contém o ataque mais retrógrado e reaccionário à gestão democrática, desde o 25 de Abril, a qual nunca nenhum governo defendeu, porque pura e simplesmente as universidades têm tido um papel progressista, contrário às suas políticas. Depois da actual reforma, temos muitas dúvidas que a universidade mantenha alguma capacidade de ligação às aspirações de todos por um ensino democrático, não corporativista, ao serviço das comunidades, das regiões e do país.

Com efeito, a nova lei prevê um conselho geral, um reitor, presidente ou director, e um conselho de gestão, impedindo formas superiores de organização da gestão escolar. Típico modelo estreito e empresarial, que se justifica como sendo o das "melhores práticas internacionais". É o modelo anglo-americano de entidades empresariais do ensino. Acabam-se a Assembleia da Universidade e o Senado, não distinguindo o papel que cabe aos orgãos actuais. A participação dos estudantes é reduzida a um máximo de 20% no conselho geral, enquanto a dos professores é alargada a mais de 50% e nenhum deve sequer representar os corpos de onde são eleitos, por que são «independentes»! Acresce que o corpo dos funcionários não-docentes não tem qualquer participação a inscrever nas futuras fórmulas estatutárias das escolas.

É um grande ataque à democracia nas escolas! Do governo dito socialista, note-se. Redução drástica da participação crítica, criativa ou cívica dos estudantes na sua responsabilização pela vida escolar. Fim do diálogo e entendimento entre todos os funcionários para o bem comum das escolas.

Aparte o facto desta lei ser liquidatária de formas mais profundas de representação e vivência democráticas, o que já não é pouco, este governo assume sem pudôr a regressão dos direitos e liberdades dos membros das academias.

Não precisamos da negação de um projecto que incentive a participação democrática, a qual assume sempre papel formativo e até de vanguarda nas instituições de ensino superior. O que se está a pôr em causa é por isso ainda mais grave; é um modelo que se vai querer reproduzir e aprofundar pelos restantes organismos do Estado. Os interesses capitalistas, por detrás deste governo, podem esfregar as mãos de contentes.

O modelo empresarial não democrático na gestão das escolas significa um modelo apagado, restrito, não participado. A caminhar para a atrofia, pondo as escolas em dura prova, de desgaste igual ao das empresas. O alargamento dos orgãos e da sua actividade representativa é que poria as universidades a pensar e seria uma medida para aumentar a qualidade das instituições. O governo mente quando fala em desejo de aumentar a qualidade no ensino.

Mas este ataque anti-democrático não se fica por aqui: pelo menos 30% dos membros do conselho geral não serão membros da instituição. Isto é um vulgar ultraje às IES Públicas, para forçar a infiltração de interesses privados.

Esquecem que a ligação das IES Públicas às comunidades dá-se pela abertura das escolas às populações, de modo a aumentar o sucesso escolar, calcanhar de Aquiles do sistema de ensino superior português. A ligação dá-se sim, afinal, pela malograda "massificação" do ensino. O modelo Mariano Gago-José Sócrates é o do elitismo, dos rankings das escolas, da competição pela sobrevivência, — em suma, para os governos irem fechando as instituições que lhes convier.

Na nova lei, na parte da gestão das unidades orgânicas, são de todo apagadas as famigeradas e perigosíssimas Assembleias de Representantes.

O conselho de gestão, que substitui o conselho administrativo de universidades e politécnicos, fica por imposição limitado a cinco membros, passando o Administrador a ter alguns papéis que cabiam anteriormente ao Senado. Eis outro absurdo, sem propósitos minimamente justos e racionais.

Fundações

Com a nova figura das "fundações" atira-se as universidades à avidez dos interesses privados. Simplesmente, estas estarão autorizadas a privatizarem-se, após consentimento governamental, que o mesmo é dizer organize-se um "lobbie" bem patrocinado. A privatização é o que está em jogo e negá-lo será chamar-se a si próprio de mentiroso.

Com financiamentos de colaborações de empresas privadas, abertura jurídica a essas relações, mais o subfinanciamento crónico por parte do Estado, será um passo curto até à privatização, por muito barato, das IESPúblico.

Com essa passagem a instituições públicas de direito privado vai tudo, desde a alienação do património do Estado (Art. 120) ao estatuto dos funcionários. Novos funcionários entrarão de imediato para o regime de «contrato de trabalho» (Art. 122.3). Como é sabido, tais contratos estão em fase de preparação e aprovação, visando aumentar a precariedade dos trabalhadores.

A luta é o caminho dos estudantes, funcionários e docentes

A "reforma global" aprofunda a crise que entrou recentemente nas universidades. As más condições de trabalho, estudo e investigação, a par de constantes provocações e desgaste dos recursos, não são mais toleráveis. Os professores mobilizam-se e já não é possível suster a luta que se iniciou pela defesa do ESPúblico.

Prepara-se sem dúvida a mais perigosa e fulminante transformação do ES em Portugal. Fruto de um estado de intimidação da função pública e de todos os trabalhadores. Prossegue o quadro geral das políticas neo-liberais ditada pelo grande capital transnacional, que vê nos serviços públicos o suporte de novos mercados, conducentes a novos lucros. Os governos das chamadas democracias ocidentais, como o de José Sócrates-Mariano Gago, são peças pequenas na compreensão do mal que fazem ao nosso país. Está na hora de lhes dar um fortíssimo basta! na greve geral de 30 de Maio. É possível parar já a desvairada "reforma global".