João Ferreira, Jovens Quadros Técnicos Científicos no Desenvolvimento

Os Jovens Quadros Técnicos e Científicos no Desenvolvimento do País

João Ferreira

Excerto da intervenção produzida no Encontro “Os jovens quadros técnicos e científicos no desenvolvimento do país”, organizado pela Confederação Portuguesa dos Quadros Técnicos e Científicos

O papel da ciência e da técnica na promoção do desenvolvimento económico, social e cultural, alcançou indiscutivelmente um mais amplo reconhecimento na sociedade portuguesa. Não obstante, persistem e nalguns casos agravam-se os problemas que enfrentam os quadros técnicos e científicos, em especial as mais novas gerações.

Relativamente à evolução da situação dos quadros técnicos e científicos, que determina a situação em que hoje se encontram os jovens quadros, resumidamente, ela é marcada por 3 factores:

1. O aumento do número de jovens cuja formação superior (a níveis diversos) os coloca enquadrados na condição de quadros técnicos e científicos;
2. A diminuição das oportunidades de emprego, com o consequente aumento do desemprego e o surgimento de fenómenos de sub-emprego;
3. Depreciação do estatuto social dos quadros técnicos e científicos.

Falemos um pouco de cada um deles e posteriormente de um factor que com estes se relaciona: o sistema educativo – uma vez que é a ele compete formar os quadros; tirando, a cada momento, do retrato da situação as necessárias implicações para aquilo que aqui nos interessa discutir, ou seja, a necessidade de desenvolvimento do país.

1. Aumento do número de quadros técnicos e científicos

Em 1991, a percentagem da população portuguesa com ensino superior completo era de 4%. Em 2001, essa mesma percentagem é de 8,6% (i) .

De um modo geral, com evoluções específicas para cada uma das áreas científicas, nos últimos anos aumentou o número de licenciados, o número de mestres e o número de doutores, estes últimos com uma evolução particularmente acentuada ao longo da última década.

De 1987 a 2001, o número de doutorados em Portugal mais do que quadriplicou (ii) . No período de 1998-99, por exemplo, Portugal teve o maior crescimento de novos doutorados em C&T dos países da UE, 12% em comparação com a média europeia de 0,4%.

Não se pense no entanto que este crescimento nos deixa numa posição confortável no contexto dos países com os quais habitualmente estabelecemos comparações. Temos o problema de ter partido do quase-nada, pelo que não é preciso chegarmos a ter muitos (licenciados, mestres e doutores), ou sequer os suficientes, para os aumentos, as taxas de crescimento, serem elevadas.

Em 2002, a percentagem da população activa com Ensino Superior em Portugal, rondava, como já vimos, os 9%. No mesmo ano, a mesma percentagem, em média, para o conjunto dos países da OCDE era de 29%.

Em 2001, em Portugal, a percentagem da população com habilitação superior com formação nas áreas da ciência e engenharia rondava os 17%. Na UE, esse valor rondava os 26%.

Em relação aos novos doutorados, o seu número, em permilagem da população activa entre os 25 e os 34 anos permanece como um dos mais baixos de toda a UE. O número de investigadores, por exemplo, em permilagem da população activa é em Portugal, inferior a 2/3 da média da UE.

Mas poderíamos pensar que o crescimento ocorrido – sendo embora insuficiente – teria uma correspondência, pelo menos na devida proporção, no crescimento e desenvolvimento económico do país… Será que assim é? Assim seria, provavelmente, não fosse o segundo factor, ou seja, a

2. Diminuição das oportunidades de emprego

As áreas científicas e tecnológicas – onde frequentemente detectamos a maior insuficiência de quadros qualificados – são disso exemplo paradigmático. As oportunidades de emprego diminuíram em termos relativos, nalguns casos, mesmo em termos absolutos.

Carreiras que tradicionalmente absorviam uma parte significativa dos quadros mais qualificados nestas áreas – como a carreira docente e a carreira de investigação – foram progressivamente fechando-lhes as portas. Instituições como os Laboratórios do Estado sobrevivem há largos anos com pesadas restrições à contratação de novos efectivos. Nem sequer as vagas dos quadros de pessoal que vão abrindo por reforma de efectivos, são preenchidas. Estes quadros de pessoal encontram-se depauperados, envelhecidos, desajustados face à dimensão e relevância das tarefas que as instituições são chamadas a cumprir. Por outro lado, o tecido empresarial nacional insiste num perfil de especialização assente na baixa qualificação (logo, baixos salários também) resistindo à integração de quadros qualificados. O encerramento e deslocalização de importantes indústrias, algumas delas com forte componente técnica e científica, fecha também portas a quadros técnicos e científicos. O mesmo acontece com a política de abdicação que vem sendo seguida relativamente a outras importantes parcelas da nossa economia – e da nossa soberania! – como a agricultura e pescas.

Em resultado de tudo isto, o desemprego entre os quadros técnicos deixou de constituir uma ocorrência individual e de carácter passageiro, para passar a constituir um fenómeno cada vez mais geral e permanente.

O desemprego entre os habilitados com formação superior, 5,5% em 2004, embora inferior à taxa de desemprego geral, 6,8%, foi a que mais cresceu (era de 3,5% em 1998) e é relativamente elevada no quadro da UE25. De registar é o facto de 74% dos desempregados com formação superior terem menos de 35 anos.

A par do aumento do desemprego, há uma outra tendência – que não exclusiva de Portugal, mas que tem no nosso país uma dimensão e consequências particularmente graves – que é a precarização das relações de trabalho entre os quadros técnicos e científicos. Esta precarização é visível no surgimento e generalização de fenómenos de sub-emprego e de pseudo-carreiras. Os bolseiros de investigação científica, pelo seu peso numérico, serão hoje talvez um dos mais claros exemplos desta tendência. Mas não o único: o crescimento do número de profissionais liberais (“recibos verdes”) entre os quadros técnicos e científicos, por exemplo, esconde verdadeiros trabalhadores por conta de outrém, forçados ao trabalho à hora ou à peça, por falta de outro enquadramento laboral.

O próprio Estado tem sido o responsável por esta realidade, promovendo-a – vejam-se os exemplos dos bolseiros, da proliferação de avençados na administração pública (e estamos a falar, em ambos os casos, sobretudo de jovens trabalhadores com formação superior), etc. – e demitindo-se, neste como noutros domínios, do seu papel organizador, promotor do emprego e do desenvolvimento; transferindo o problema do emprego – e esta é uma alteração qualitativa substancial, que ocorre de há uns anos a esta parte, e não terá talvez ainda recebido a atenção e o combate necessários – da sua esfera, da esfera do Estado, do colectivo, para a esfera do indivíduo, com claras implicações na visão do emprego como um direito de todos os indivíduos. O termo empregabilidade foi entrando no discurso oficial, introduzindo uma importante alteração de conceitos: o indivíduo tem um emprego consoante é mais ou menos “empregável”. O emprego – ou a falta dele – passam a ser um problema individual, que o indivíduo tem que resolver.

Podemos (e devemo-nos) perguntar:

Porquê este desfasamento? Porquê esta contradição, em que, num país carente de quadros, por um lado aumenta o número de quadros técnicos e científicos qualificados (deixemos por agora de lado a quantidade e sobretudo a qualidade e a adequação às necessidades do país da formação obtida) e por outro lado diminuem as oportunidades de emprego?

Julgo que tal tem a ver, essencialmente, com o que chamaria a política de abdicação nacional que vem sendo prosseguida pelos sucessivos governos. Ao longo dos últimos anos, o nosso país abdicou de importantes parcelas da sua soberania e com elas da capacidade de pensar, de programar, o nosso desenvolvimento – não isoladamente, uma vez que tal hoje não seria possível, nem, sobretudo, desejável em circunstância alguma – mas tendo em conta, em primeiro lugar, as características do nosso território, da nossa economia, da nossa sociedade, as suas especificidades e os caminhos próprios que estas nos aconselham a trilhar.

Com a internacionalização crescente dos processos produtivos e a acentuação da divisão internacional do trabalho, a nossa economia foi-se concentrando nas fases dos processos produtivos que exigem menor incorporação de conhecimento técnico e científico, de mão-de-obra qualificada, e que são aquelas das quais resulta também um menor valor acrescentado. Daí, em larga medida, a tão falada míngua de produtividade, muitas vezes empurrada para as costas largas dos trabalhadores, mas que tem muita da sua razão de ser nesta opção económica e política dos nossos governantes. A responsabilidade de promoção do desenvolvimento nacional tem sido entendida pelos sucessivos governos como a facilitação de boas oportunidades de negócios (para alguns).

A quantidade e a qualidade de emprego, e particularmente de emprego de quadros técnicos e científicos, depende essencialmente do crescimento e do desenvolvimento económico do país. Demitindo-se de ter um papel activo nestes últimos, o Estado demite-se igualmente do primeiro.

A formação de um “stock” de trabalhadores qualificados desempregados, o seu afastamento forçado do mundo do trabalho, ou a sua sub-utilização, são fenómenos que se correlacionam com a precarização das condições de prestação de trabalho técnico e científico de que falava. Pela pressão social que criam, objectivamente contribuem para uma ainda maior desvalorização da força de trabalho qualificada, debilitando ainda mais as condições de trabalho dos que o têm.

Isto conduz-nos ao terceiro factor de que falava, que é a

3. Depreciação do estatuto social dos quadros técnicos e científicos

A condição social dos jovens quadros, o seu estatuto profissional e as suas condições de trabalho, degradaram-se. Esbateu-se, de alguma forma, a diferença de estatuto e de condições de trabalho, que separava os quadros técnicos e científicos de outros trabalhadores menos qualificados.

O fenómeno não é exclusivo de Portugal. Passa-se noutros países, mesmo mais desenvolvidos.

Tudo isto terá consequências, algumas delas já hoje visíveis: a diminuição do número de jovens que procuram a C&T como percurso de estudos e como perspectiva de carreira é uma delas (que naturalmente resulta não apenas deste factor mas também de outros, igualmente complexos).

Um exemplo interessante, pela clareza com que se constata esta degradação, neste caso concreto, da situação dos investigadores científicos, merece ser aqui referido: o objectivo nuclear da tão badalada Estratégia de Lisboa, consistia em tornar a Europa na economia mais competitiva do mundo, baseada no conhecimento. Tal implicaria, entre outras coisas, a necessidade de aumento do investimento em actividades de investigação e desenvolvimento (I&D) e o incremento do número de pessoal afecto a actividades de I&D, em particular do número de investigadores. Estabeleceu-se (isto, recordo, em 2000) a meta ambiciosa de termos 700 mil novos investigadores até 2006. Ora, estamos em 2005 e a avaliação intermédia do cumprimento dos objectivos da Estratégia de Lisboa que tem vindo a ser feita, constatou que não apenas estamos muito longe dessa meta, como a tendência não é para uma aproximação mas sim para um afastamento. E as causas são apontadas, pela própria Comissão Europeia. Entre elas, destaca-se a degradação da condição social dos investigadores ou, nas palavras da comissão, a diminuição da “atractividade das carreiras científicas”. Começa-se a dar conta dos limites que impõe ao desenvolvimento económico uma política de desvalorização da força de trabalho científica qualificada.

O sistema que conduz à exaustão dos recursos de que necessita para a sua própria manutenção é um sistema irracional. É a esta irracionalidade que temos – quadros técnicos e científicos, jovens e menos jovens – que fazer face.

Nos mês passado, é lançado pela Comissão um conjunto de recomendações, que constam da chamada Carta Europeia do Investigador, que visam inverter a tendência e “aumentar a atractividade das carreiras científicas”, garantindo aos investigadores condições de vida e de trabalho que hoje não possuem, garantindo-lhes – em todos os estádios da carreira, inclusivé nos de formação – um conjunto de direitos sociais básicos, por exemplo.

Este exemplo, recente, da Carta Europeia do Investigador – pese embora as reservas que nos possa, apesar de tudo, suscitar – vem mostrar como é falsa a oposição entre a necessidade de crescimento e desenvolvimento económico e as condições laborais dos trabalhadores que o promovem. Segundo os defensores desta oposição, os primeiros teriam que ser garantidos à custa do sacrifício destas últimas. Nada mais falso, como se constata.

Sistema educativo – A formação de novos quadros técnicos e científicos

Poucos assuntos recolhem hoje tão amplo consenso a nível nacional quanto o da importância do sistema educativo no crescimento e desenvolvimento económico. O consenso relativamente ao princípio, assim genericamente enunciado – até suportado no conhecimento, nem sempre pleno e rigoroso, das experiências de outros países – não tem contudo sido suficiente para nos retirar de posições muito pouco honrosas no que toca às comparações internacionais relativas a indicadores do sucesso e eficiência dos sistemas educativos, nem sobretudo tem servido para colocar o nosso sistema educativo efectivamente ao serviço do desenvolvimento individual e colectivo dos portugueses.

Duas grandes questões se colocam como duas grandes necessidades para alterar a situação neste domínio: A adequação da formação às necessidades do país e a democratização do acesso e frequência de todos (sublinho, de todos) os graus de ensino.

Em relação à primeira – a adequação da formação às necessidades do país -, não podemos dizer que ao longo dos anos tenham sido as necessidades do país a determinar a organização do nosso sistema educativo. Temos algumas distorções, que resultam em particular da proliferação, sobretudo a partir dos anos 80, de cursos em determinadas áreas, proliferação essa associada ao surgimento das universidades privadas, e por outro lado a imposição de numerus clausus enquanto restrição global de acesso em áreas fundamentais para o país. Não foram as necessidades do país a determinar a organização do sistema educativo, mas antes as boas oportunidades de negócio na área da educação.

Não será tarefa simples determinar as necessidades do país. É um processo complexo, mas que tem de ser empreendido. Sobretudo é um processo que requer uma aferição ao longo do tempo. Também a identificação destas necessidades não pode significar o abandono de algumas áreas do conhecimento cuja utilidade possa não ser tão imediata e tão evidente. O conhecimento não evolui de forma segmentada, isoladamente em determinadas áreas científicas, tem que avançar como um todo, tem que se garantir um investimento base em todos os ramos do conhecimento que permita o avanço prioritário naqueles que definamos como mais necessários.

Aqui surge uma outra questão: o que muitas vezes se diz é que o sistema educativo se deve adaptar ao mercado de trabalho. Não é a mesma coisa. As necessidades do país não são coincidentes com as necessidades do mercado de trabalho. O mercado de trabalho tem carências muito próprias, comandadas por interesses particulares (no sentido da sua manutenção), nem sempre coincidentes com o interesse geral, colectivo. Importa desmistificar esta ideia de que o sistema educativo tem de se adaptar ao mercado de trabalho. Tem de se adaptar, sim, às efectivas necessidades do país.

Em relação ao outro ponto – a garantia de democratização do acesso e frequência de todos os graus de ensino – é fácil de ver que o caminho que tem sido prosseguido nos últimos anos é exactamente o contrário. Não há maneira de alterar substantivamente o nosso grau de desenvolvimento económico e social não alterando a nossa situação neste domínio. Não cabe aqui desenvolver este assunto, mas as questões relacionadas com Bolonha, o chamado Processo de Bolonha, a restruturação que vai implicar e a forma como tem vindo a ser conduzido, levantam fundadas preocupações e ameaças ao nosso sistema educativo, por conseguinte ao nosso desenvolvimento, que importava analisar.

O caminho: a luta

É importante que designadamente as estruturas sindicais tenham cada vez mais em conta na sua intervenção a situação particular dos jovens quadros, procurando respostas – nem sempre fáceis, é certo, mas necessárias e urgentes – às dificuldades objectivas de realização de trabalho junto deles e com eles. Dificuldades que passam pela realidade actual do mercado de trabalho: a precariedade, a mobilidade e a insegurança.

A experiência recente de associação de jovens quadros técnicos e científicos em torno da defesa dos seus direitos e interesses, parece tornar razoavelmente claro o seguinte: dada a actual situação, há uma grande disponibilidade para intervir, assim se saibam organizar e aproveitar todas as vontades. Mesmo algumas dificuldades subjectivas que por vezes surgem, que se prendem com algum individualismo, algum conformismo e alguma descrença na acção colectiva, podem ser superadas, mais rapidamente do que se possa pensar, com as primeiras conquistas, ainda que incipientes, dessa mesma acção colectiva.

09/04/05

i Dados da Confederação Portuguesa dos Quadros Técnicos e Científicos, 2005.

ii O Emprego Científico em Portugal, Conselho dos Laboratórios Associados, 2004.