João Ferreira, Notas sobre o Sistema Científico e Tecnológico Nacional

Algumas notas sobre o Sistema Científico e Tecnológico Nacional

João Ferreira

O Sistema Científico e Tecnológico Nacional (SCTN), definido como o conjunto dos recursos científicos e tecnológicos nacionais – humanos, financeiros e institucionais – e das actividades envolvendo a criação, a difusão e a aplicação de conhecimento novo, constitui reconhecidamente um instrumento de cuja vitalidade depende, em larga medida, o desenvolvimento do país.

A par deste reconhecimento, a Ciência, a Tecnologia e a Inovação (C&T&I) adquiriram, de alguns anos a esta parte, uma centralidade no discurso político e económico, que até então não conheciam. Mas, contraditoriamente, o relevo atribuído à C&T&I no plano das palavras, dos discursos, das sucessivas declarações de intenções, tarda a ser acompanhado de resultados práticos, palpáveis, que nos permitam supor poder ser ultrapassado – mesmo que a médio-longo prazo – o atraso estrutural que apresentamos nestas áreas.

Anúncios recentes, como o do crescimento sem precedentes do orçamento para Ciência em 2007, encontram paralelo noutros que no passado foram feitos: recordemos, a título de exemplo, o Conselho de Ministros especial, de Óbidos, no início de 2004, no qual o então primeiro-ministro Durão Barroso anunciou “o maior investimento de sempre em ciência alguma vez feito em Portugal”. Os resultados são conhecidos. É pois com avisada prudência que os anúncios agora feitos devem ser recebidos.

A acção sobre cada uma das componentes do SCTN – recursos e actividades – e a sua articulação, deverá constituir o objecto de uma dada política científica e tecnológica. Para lá da propaganda, a eficácia ou ineficácia desta política deverá ser avaliada pelos seus resultados práticos.

Os Recursos Humanos e o SCTN

A avaliação feita ao SCTN, com base em indicadores habitualmente utilizados em comparações internacionais, relativos à componente “recursos” (despesa em investigação e desenvolvimento, I&D, em percentagem do PIB; número de investigadores em permilagem da população activa; pessoal total em I&D em permilagem da população activa), revela um atraso considerável no contexto europeu e uma posição relativa, ainda que com flutuações ligeiras, inalterada ao longo dos últimos anos.

Sem espaço para aqui desenvolver aspectos relativos ao conjunto dos recursos do SCTN (também designado de Potencial Científico e Tecnológico Nacional), centrar-me-ei em seguida num deles: as pessoas.

Será razoável admitirmos que os recursos humanos – como eixo fundamental que são do SCTN – deverão constituir um dos eixos fundamentais de qualquer política científica e tecnológica. Como razoável será também admitirmos que o investimento que se faz em Ciência se poderá medir, em boa medida, pelo investimento feito naqueles que nela trabalham, pelas condições de vida e de trabalho que se lhes proporcionam.

Em Portugal, contrariando as mais recentes recomendações internacionais, de que é exemplo a Carta Europeia do Investigador (i) , alguns traços sobressaem da política de recursos humanos vigente no SCTN: a instabilidade, a insegurança, a falta de perspectivas sólidas de futuro e a privação de direitos fundamentais, afectando muitos dos que trabalham em ciência, em especial as novas gerações de investigadores e demais quadros técnicos e científicos.

Com efeito, uma parte muito significativa da investigação que hoje se faz em Portugal, bem como uma série de actividades conexas na esfera da C&T, é assegurada pelos chamados bolseiros de investigação. No seu conjunto – desempenhando tarefas de índole científica, técnica e de gestão – os bolseiros de investigação representavam em 2003 uma porção não inferior a um terço do total da força de trabalho disponível no SCTN (ii) .

Não obstante a sua importância, hoje unanimemente reconhecida, persistem, e nalguns casos agravam-se, os problemas e dificuldades que os bolseiros de investigação enfrentam: a falta de perspectivas de inserção profissional uma vez terminadas as bolsas; a ausência de protecção social digna, com a manutenção à margem do regime geral de segurança social; a ausência de assistência na doença e a falta de qualquer assistência na eventualidade de desemprego; o incumprimento do Estatuto do Bolseiro de Investigação, nomeadamente nas situações de doença, maternidade e quanto ao pagamento pontual das bolsas, entre outros aspectos.

Em suma, a situação hoje vivida por uma parte significativa daqueles que trabalham em Ciência poderá ser entendida como o mais cabal desmentido das sucessivas declarações de aposta na Ciência a que temos vindo a assistir.

Formação Avançada e Política de Emprego Científico

O significativo incremento na formação avançada de recursos humanos, registado ao longo da década de 90, bem patente numa das mais altas taxas de crescimento do número de doutorados ao nível da União Europeia (senão mesmo a mais alta), não é contudo suficiente para apagar a nossa prestação relativamente a um outro indicador: o número de novos doutorados em permilagem da população activa entre os 25 e os 34 anos permanece, apesar do crescimento, um dos mais baixos da UE. Com efeito, não é difícil, tampouco justifica exageradas posturas de auto-satisfação, obter taxas de crescimento elevadas quando o número de doutorados de que partimos é ínfimo. Do mesmo modo, as elevadas taxas de crescimento não podem servir para justificar um abrandamento no esforço de formação avançada de recursos humanos, ainda insuficiente.

Mas, paradoxalmente, é do incremento dos recursos humanos qualificados em C&T que decorre um dos dramas maiores, senão mesmo o maior, com que o SCTN hoje se depara: o enorme potencial que estes recursos constituem é desaproveitado por ausência de uma adequada inserção profissional dos recursos formados. As políticas de formação avançada prosseguidas ao longo da última década foram conduzidas de forma desconcertada, não acompanhadas de políticas de emprego científico, a jusante. A maioria dos jovens investigadores foi abandonada ao seu destino, sem emprego científico, alguns forçados a mudar de vida ou a emigrar – dando significativa expressão nacional ao fenómeno conhecido como fuga de cérebros; o investimento na formação é, em grande parte dos casos, feito cá, a mais-valia é aproveitada lá fora.

Assim poderá suceder com o tão badalado acordo assinado entre o MIT e o Estado Português. Na ausência de políticas de emprego científico consequentes – naturalmente que indissociáveis de uma alteração do perfil de especialização da economia portuguesa, hoje assente nas baixas qualificações e com fraca capacidade de inovação; alteração para a qual o sector privado se tem mostrado pouco motivado – a formação avançada de recursos humanos que os acordos estabelecidos entre as universidades nacionais e o MIT irão proporcionar, poderá beneficiar sobretudo este último – que poderá ver escapar para o seu reduto alguns dos nossos melhores cérebros, forçados à emigração por falta de alternativas aliciantes (ou, no mínimo, dignas, de subsistência) no seu país de origem.

Que futuro?

No seu Plano Tecnológico (iii) , o Governo assumiu o compromisso de promover a criação e o preenchimento progressivo, a partir de 2007, de 1000 lugares adicionais de investigadores até ao final da legislatura. Face ao sério atraso de que dispomos a este nível (iv) e face também ao enorme potencial que constituem os milhares de bolseiros de investigação que se doutoraram nos últimos anos, esta não pode deixar de ser considerada uma proposta pouco ambiciosa. Tendo em conta as necessidades hoje identificadas, tanto nas unidades de I&D universitárias como, sobretudo, nos Laboratórios do Estado, seria razoável considerar, pelo menos, a duplicação deste número, o que ainda assim nos deixará longe da média da UE-25, relativamente ao número de investigadores em permilagem da população activa. Por outro lado, de forma a não agravar o desequilíbrio existente entre os efectivos de investigadores e os efectivos de técnicos, seria imprescindível considerar, a par do aumento do número de investigadores, um crescimento, pelo menos em igual número, dos técnicos e outro pessoal afecto a actividades de I&D.

Recentemente, esclareceram-se os moldes em que irá ocorrer a contratação dos investigadores: a termo, por um período de cinco anos. Sem qualquer garantia de prosseguimento de carreira terminado o período de 5 anos, independentemente do mérito do desempenho do investigador. Quanto à atractividade das carreiras científicas, recomendação feita pela Comissão Europeia aos Estados-membros, estamos pois conversados.

No ano de 2004, mais de dois milhares de membros da comunidade científica nacional, entre os quais se contam alguns actuais destacados responsáveis pela política científica nacional, subscreveram um manifesto em defesa do emprego científico (v) . Pleno de actualidade, vale a pena recordar algumas das propostas que contém:

"De entre as medidas necessárias – nas quais se incluem algumas das recomendações constantes de inúmeros estudos e pareceres, quer globais quer sectoriais, nacionais e internacionais, realizados nos últimos anos, – destacamos:

    – A criação de mecanismos de financiamento que permitam a contratação de pessoal pelas unidades de I&D; as necessidades de pessoal inerentes ao desenvolvimento dos projectos de investigação, sempre que de natureza temporária, deverão ser preenchidas com recurso à figura do contrato de trabalho e não utilizando abusivamente bolseiros de investigação, como hoje sucede;

    – A integração de jovens investigadores, docentes e técnicos nos quadros de pessoal das Universidades e demais instituições de ensino superior e Laboratórios do Estado, com o descongelamento de novas admissões e o preenchimento de vagas existentes e a criar (na sequência, sublinhe-se, das recomendações feitas pelos painéis externos de avaliação destas instituições);

    – O reforço do papel destas instituições no apoio ao delinear de políticas públicas, nomeadamente ao nível sectorial, e a criação de “interfaces” com o sector produtivo, a indústria e o tecido empresarial, promovendo a transferência do conhecimento produzido nestas instituições, demonstrando a utilidade da sua integração na actividade das empresas, despertando as necessidades hoje não sentidas pela generalidade dos empresários;

    – A continuação e o reforço do apoio à inserção profissional de pós-graduados nas empresas, nomeadamente financiando os custos de pessoal numa fase inicial e a concessão de outros incentivos financeiros, incluindo incentivos fiscais, às empresas que empreguem mestres e doutores; O reforço do apoio e incentivo à criação de empresas, que contribuam para o lançamento de novos produtos processos ou serviços, por licenciados, mestres e doutores;

    – A promoção de emprego científico em associação a áreas de grandes investimentos públicos, em grandes empresas públicas ou com participação estatal;

    – A abertura da administração pública à inovação, com integração de pessoal qualificado (e não apenas de mais bolseiros), incluindo mestres e doutores, nos vários organismos e entidades da administração central e local."

Agora, como então, a situação de bloqueio que enfrentamos, exige a definição de uma estratégia de desenvolvimento nacional que se apoie e articule, entre outras, com uma verdadeira política científica. Esta, por sua vez, não será possível senão sustentada por políticas de emprego científico consequentes e pela dignificação das condições de prestação do trabalho científico.

29/10/06

i http://europa.eu.int/eracareers/pdf/eur_21620_en-pt.pdf

ii http://www.bolseiros.org/pdfs/ABIC_no_simposio_federacao_mundial_trabalhadores_cientificos.pdf

iii http://www.planotecnologico.pt

iv Segundo dados do Observatório da Ciência e do Ensino Superior, de 2005, em Portugal, em permilagem da população activa, o pessoal total afecto a actividades de I&D representa 4,7%; na UE-25, em média, este número situa-se nos 10,2%

v http://www.bolseiros.org/peticao_1.html