A URSS faz falta ao mundo
Albano Nunes
Membro do Secretariado do CC do PCP
Celebrar cada aniversário da Revolução de Outubro é uma boa tradição do nosso Partido. Quanto mais não seja porque a própria fundação do PCP, sendo essencialmente produto do desenvolvimento do capitalismo em Portugal e do ascenso ao primeiro plano da classe operária e da sua luta, aconteceu sob a influência estimulante do Partido de Lénine e da primeira revolução socialista triunfante. Há aí uma marca de identidade que faz parte integrante da cultura do PCP como partido revolucionário. Celebramos a Revolução de Outubro, não como curiosa e nobre peça de museu, mas como algo de vivo, fecundo e inspirador para as tarefas que se colocam aos comunistas no tempo presente.
Ou seja: a actualidade da Revolução de Outubro, das suas experiências e ensinamentos, do seu valor e significado histórico, da importância das profundas transformações que induziu no plano mundial, é uma realidade que continua no centro da batalha ideológica e tenderá mesmo a assumir ainda maior importância no futuro, à medida que, frente ao pavoroso agravamento das contradições e iniquidades produzidas pela globalização capitalista, se torne mais evidente para as grandes massas que a alternativa à "barbárie" é o socialismo. E quando, vencida finalmente a crise em que, primeiro as deformações e depois as derrotas do socialismo mergulharam o movimento comunista internacional, se torne de novo evidente aquilo que de mais universal está associado à data histórica do 7 de Novembro: a exigência da revolução, da conquista do poder pela classe operária e seus aliados, da transformação da natureza de classe do Estado e da propriedade, do partido revolucionário de vanguarda.
Estas são na verdade questões que, articuladas com a indispensabilidade da ideologia revolucionária, o marxismo-leninismo, estão hoje no centro da luta política e ideológica. Incluindo dentro do chamado movimento anti-globalização, e mesmo – como sempre – no interior do próprio movimento comunista e revolucionário e de cada uma das suas componentes, o PCP incluído.
À boleia da desagregação da URSS e do fracasso do "modelo" de socialismo que aí se veio a configurar, as teses anti-revolucionárias, reformistas, social-democratizantes, movimentistas, anarquizantes e simplesmente contestatárias ganharam um alento vigoroso. Desde "acidente" e "erro histórico" até acontecimento "datado" e "tipicamente russo" tudo tem sido dito para minimizar o significado histórico universal da Revolução de Outubro e do leninismo triunfante.
A época da revolução, caricaturada em termos de "assalto ao Palácio de Inverno", teria definitivamente passado, e os tempos seriam hoje de mudanças menos bruscas, sem a intervenção revolucionária das massas, sem as descontinuidades e violentas roturas que os grandes mestres do marxismo-leninismo mostraram (e a vida confirma) serem traves mestras do difícil, doloroso mas exaltante processo de emancipação da humanidade.
Há quem vá mesmo ao ponto de não pôr em causa a lei e a ordem do sistema liberal-burguês capitalista, de preconizar uma via puramente eleitoral e até, considerando caduco o Estado-nação, aposte na União Europeia e no Parlamento Europeu como chave para a transformação progressista da sociedade.
A importância e significado histórico da Revolução de Outubro e do seu papel determinante nas grandes transformações revolucionárias do séc. XX constitui uma tese central do PCP, essencial para iluminar as suas perspectivas de intervenção, no plano nacional e internacional. As lições fundamentais retiradas pelo XIII e XIV Congressos do Partido quanto às derrotas do socialismo na URSS e no Leste da Europa, não só não põem em causa tal tese, como de modo aparentemente paradoxal a reforçam.
E porquê? Pela razão hoje evidente, que o estudo e a investigação histórica deverão aprofundar, de que o que fracassou na URSS não foi a dinâmica, os valores, os ideais proletários de Outubro, mas o afastamento deles e mesmo a sua perversão em várias vertentes.
Por isso na sua fase inicial comunista, a "perestroika", sob a palavra de ordem "mais socialismo, mais democracia" proclamou como linha rectora o "regresso a Outubro" e o "regresso a Lénine", e a uma interpretação viva, criativa, vinculada com a prática, do marxismo-leninismo.
Sabemos que o curso dos acontecimentos não foi o inicialmente preconizado, aquele que, nas suas linhas gerais, o PCP saudou com entusiasmo.
A profundidade das deformações burocráticas e anti-socialistas foi tão grande que possibilitou a ascensão às mais altas posições do Partido Comunista e do Estado soviético de pessoas sem convicções e sem escrúpulos que se tornaram ou revelaram traidores contra-revolucionários e instrumentos do imperialismo. Acabou por se deitar fora o menino com a água suja do banho. O sistema, em lugar de profundamente revolucionado, foi destruído. A URSS, como outros países do Leste europeu, foi tomada de assalto, as suas conquistas socialistas liquidadas, os seus povos lançados no desespero, na confusão e na mais negra miséria de um "capitalismo real" vingativo que, se puder, calcará aos pés toda e qualquer memória da Revolução. E que privou os comunistas e todas as forças progressistas de uma retaguarda segura e o mundo de uma força poderosa que mantinha em respeito o imperialismo e impedia a manifestação dos seus naturais impulsos exploradores e agressivos.
A URSS faz falta ao mundo. Pelo que representou, pela força das suas realizações e do seu povo, pela sua solidariedade internacionalista com os trabalhadores e povos em luta, pela sua activa política de paz e coexistência pacífica, pelo equilíbrio militar estratégico imposto ao imperialismo, factor de dissuasão capital de uma política de agressão e guerra.
O que marca a vitória de Outubro é o Decreto da Paz, o primeiro dos decretos da revolução. O que marca a derrota de Outubro em termos de uma sociedade nova, no início da década de 90, é a guerra do Golfo e a arrogante proclamação pelos EUA da tentativa de impor ao mundo uma "nova ordem" totalitária, contra os trabalhadores e contra os povos. É este processo que tem estado em marcha e que nestes dias ganha contornos particularmente sombrios no Médio Oriente com o terror de Estado contra os palestinianos e a preparação da guerra contra o Iraque.
Entretanto, se é verdade que já não existe aquela força poderosa que salvou o mundo da barbárie nazi-fascista, não é menos certo que os trabalhadores e os povos não querem a guerra e há forças poderosas que não deixarão de crescer, capazes de obrigar o imperialismo norte-americano a recuar nos seus propósitos de barbárie. A consciência dos perigos e dificuldades da hora actual não deve ser paralisante, antes deve levar a unir e a mobilizar contra o militarismo e a guerra tudo o que possa sê-lo, das fábricas às igrejas, passando sobretudo pela imensa massa da juventude.
Este é o caminho que urge percorrer com persistência e para o qual encontraremos na Revolução de Outubro, cujo 85º aniversário celebramos, inesgotável fonte de inspiração e ensinamentos.
"O Militante" – N.º 261 Novembro/Dezembro de 2002