Costa Feijão
A recuperação do pensamento e acção de Bento Gonçalves como Secretário-Geral do PCP desde Abril de 1929 é sempre oportuna, apesar de invariavelmente produzida em sintonia com as datas comemorativas do nascimento e óbito do dirigente comunista, tendo como tónica a biografia, aqui e além complementada com citações das monografias que produziu ou dos artigos publicados na imprensa operária e sindical desde Abril de 1928. E na memória comum perduram, entre outros títulos, a Contestação à Secretaria do Tribunal Militar Especial, o Relatório ao VII Congresso da Internacional Comunista, as Palavras Necessárias e as Duas Palavras. Mas é nos artigos produzidos no “Eco do Arsenal” e “O Proletário” que a sua acerada pena mais acutilante se torna no combate ideológico, tendo como destacado alvo a falência e as perversões do anarco-sindicalismo no movimento operário da época.
Contudo, Bento Gonçalves, no quadro da luta ideológica do seu tempo, não descurou outras influências que procuravam traçar “novos rumos” ao movimento operário e, em 1929, no n.º 6 de “O Proletário” desfere contundentes ataques ao reformismo social democrata, denunciando os desvios e traições dos seus mentores, afirmando:”…a ideologia da corrente predominante do socialismo contemporâneo é a ideologia da pequena burguesia citadina, a qual em virtude dos interesses essenciais da classe que os propaga substitui o princípio da luta de classes pelo da colaboração de classes, já porque é na pequena burguesia ou por entre os indivíduos ao serviço dela, que os partidos socialistas recrutam os seus efectivos”.
Ao assumir um proeminente papel no combate ideológico como comunista, Bento Gonçalves não foi apenas um teórico, mas um grande e destacado quadro político dirigente, cuja capacidade de análise, de estudo e de organização não são de somenos. Assim, entre os seus escritos, seleccionamos o último relatório endereçado à Secção Latino-Europeia da Internacional Comunista, o qual já não expediu por ter sido preso, pela primeira vez, em 29 de Setembro de 1930.
Trata-se dum documento rico de conteúdos, com um atribulado processo de gestação e encaminhamento.
Cezar Esteves (pseudónimo de Abílio Lima) assina um relatório pelo Comité Central Executivo do PCP – Secção Portuguesa da Internacional Comunista – na qualidade de Secretário-Geral (interino), em 30 de Novembro de 1930, cujo teor fora elaborado por Gabriel Baptista (pseudónimo de Bento Gonçalves). Abílio Lima encontrara o documento sob a forma de minuta, entre os papéis que Bento deixara no rasto do célere processo de prisão e deportação para os Açores, e dá conta à Internacional Comunista dos motivos da tardia expedição, por atraso na tradução do referido relatório.
O documento é uma peça relevante pela qualidade, rigor e finura da análise de Bento Gonçalves quanto à situação política e económica portuguesa no primeiro semestre de 1930, onde são arrolados como aspectos mais importantes: a crise económica geral; o agravamento da crise no comércio externo; a intensificação dos monopólios e concessões à grande propriedade; o prolongamento da jornada de trabalho; a promoção da mão-de-obra juvenil e feminina nos principais ramos da produção; o crescimento do desemprego na indústria; e o crescimento da concorrência estrangeira de produtos manufacturados que batem a indústria nacional, apesar da extrema desvalorização do preço da mão-de-obra indígena.
Observando sector por sector, Bento Gonçalves detém-se na indústria e explicita: a indústria manufactureira apresenta uma depressão de 23% entre 1924 e 1929; a situação não é mais grave devido ao aumento da jornada de trabalho, redução dos salários, despedimento em massa de operários (sobretudo os mais qualificados); a indústria metalúrgica está transformada em indústria de reparações; a construção civil regista 20% de desemprego; a indústria têxtil (fundamental no país) com jornadas de trabalho de 12/14 horas, exibe desemprego de 60% nas Beiras, nos operários mais qualificados; a indústria de conservas está em crise pela concorrência espanhola, canadiana, americana e norueguesa, agravada pela queda do pescado devido à exploração não-científica e brutal dos recursos, e ao afunilamento das exportações para o mercado francês.
Detendo-se na agricultura, Bento destaca o comportamento dos patrões, que aproveitando-se do exército de reserva dos trabalhadores desempregados, fazem contratos de trabalho ao dia, contratos individuais, contratando ao preço que querem, procurando obter uma produção cada vez maior.
E, prosseguindo nos seus comentários não generalistas, o Secretário-Geral do PCP acusa a política de aumento de impostos como base de política económica, da qual resultou: o aumento extraordinário do custo de vida; a crise de retracção do mercado interno, com ruína de algumas indústrias e destruição do pequeno comércio; a forte baixa da cotação dos títulos na bolsa; o crescimento de 28% no valor de letras protestadas; e o déficit do comércio externo a disparar de 60% para 67%, em 1929.
É num contexto de profunda crise que Bento se detém, uma vez mais, na análise crítica ao comportamento dos outros partidos, dedicando especial atenção aos reformistas:
“O Partido Socialista oscila entre o apoio à ditadura e a democracia, mas democracia da inteligência, da intelectualidade e nada mais – tem pouca influência nas massas operárias, só uma pequena elite operária bem remunerada o segue e o representa nos sindicatos. O jornal «O Povo», órgão da pequena burguesia já aconselhou os operários a entrarem para o Partido Socialista – Esta situação é perfeitamente compreensível (…) vêem que o melhor é aconselhá-los a entrar no PS, visto tratar-se dum partido acima de tudo colaboracionista, da entrada no PS não vem perigo para o regime burguês”.
Contudo, para Bento Gonçalves havia algo mais preocupante na crise que os compadrios e convergências do Partido Socialista. As massas manifestavam uma mentalidade de passividade completa e, entre alguns elementos “operários” com pretensões a “chefes” políticos de base, a falta de fé na acção revolucionária independente do proletariado, tornara-os propagandistas das virtudes da democracia capitalista entre os trabalhadores.
O PCP defrontava desafios ciclópicos, e a luta a empreender pela direcção do movimento de massas contra as velhas tácticas anarquistas e reformistas exigia um Partido bem mais forte. É certo que dos 50 militantes em Abril de 1929, se tinha evoluído para 145 membros organizados em 21 células: Lisboa, Porto, Braga, Guimarães, Beja, Setúbal, Armada e Polícia, encontrando-se em constituição as de Coimbra, Gouveia e Algarve. Mas, era ainda uma estrutura débil, com grandes dificuldades, internas e externas, incapaz de dar adequada resposta à depressão e amplitude da organização operária nacional.
Bento Gonçalves, deportado nos Açores, já não participou nalguns dos momentos decisivos do projecto que acalentava (e que retomaria em 1933), mas lançara as sementes de um Partido de novo tipo, e os genes de um Programa de Acção Sindical, que veria a luz do dia em Outubro de 1930.
Se é certo que a dialéctica materialista condena de forma determinante toda a modernização da história que altere a diferença qualitativa entre o passado e o presente, não é menos correcto afirmar-se que aquilo que nos antecede está indissimulavelmente ligado ao Hoje.
E por tal motivo, Bento Gonçalves avulta na consciência dos comunistas não só como um dirigente e combatente tenaz dos oportunismos e reformismos, que em cada momento procuram anestesiar a luta popular de massas, como ainda pelo papel decisivo que imprimiu à linha e à acção política do PCP, como partido marxista-leninista e partido da classe operária.
«O Militante» – N.º 263 Março/Abril de 2003