Álvaro Cunhal e a reorganização de 1940-41
Aurélio Santos
O PCP atravessou no período de 1939-1941 um dos períodos mais difíceis da sua história. A violência da repressão destroçara os seus organismos de direcção e atingira os quadros mais responsáveis, entre os quais Bento Gonçalves e os outros membros do secretariado, lançados para o campo da morte lenta do Tarrafal, criado nos moldes dos campos de extermínio nazis. A tipografia do «Avante!» foi assaltada e o jornal do Partido deixou de se publicar. O Partido estava praticamente paralisado, numa situação internacional dominada pela 2.ª Guerra mundial. Os exércitos hitlerianos chegavam aos Pirinéus e em Espanha instalava-se o fascismo franquista. O PCP estava sem qualquer ligação com o movimento comunista internacional.
Os militantes que se lançaram no difícil empreendimento de reactivar o Partido, tinham como objectivo principal reorganizar as suas bases orgânicas, a sua direcção, os seus processos de actuação e defesa nas condições da ditadura fascista. Todos eles se tinham forjado nas duras lutas travadas pelo partido nos difíceis anos 30 e tinham passado pelo Tarrafal ou pelas diversas cadeias que a ditadura criava.
Entre eles encontrava-se Álvaro Cunhal. Acompanhavam-no outros destacados militantes do Partido, como Militão Ribeiro, Manuel Guedes, Sérgio Vilarigues, Pires Jorge, Pedro Soares, Júlio Fogaça.
O seu objectivo era darem ao Partido uma organização capaz de resistir e fazer frente à repressão, assegurando-lhe condições de mobilizar as massas trabalhadoras e dar continuidade à luta antifascista.
Fizeram-no orientando-se de forma criativa pelos princípios do marxismo-leninismo.
Nos primeiros anos da sua existência, nos anos 20, podia dizer-se que o PCP era um partido marxista mas sem marxistas. Nas duras lutas dos difíceis anos 30, com a maré negra do fascismo a invadir a Europa e o regime fascista a institucionalizar-se em Portugal, o PCP sob a orientação de Bento Gonçalves, forjara-se como um partido marxista, na sua orientação e na sua acção. Os militantes que meteram ombros à reorganização de 40-41 tomaram criativamente nas suas mãos essa herança e aplicaram, para a acção prática e a reflexão teórica, os instrumentos do marxismo-leninismo na análise da sociedade portuguesa e da luta de classes em Portugal.
No núcleo de militantes que dirigiu o esforço da reorganização havia militantes com perfis políticos, experiências partidárias e pessoais muito diferentes, e personalidade próprias bem vincada. O êxito da sua acção deveu-se em grande medida à coesão, à sua profunda dedicação ao partido, ao espírito de solidariedade com que actuaram.
Entre eles destacou-se rapidamente Álvaro Cunhal. Mas o reconhecimento da sua capacidade política, preparação ideológica e cultural, reconhecidas pelos outros camaradas, não levou a qualquer posição de privilégio no colectivo da reorganização. Álvaro Cunhal desenvolveu sempre a sua actividade como parte integrante do colectivo, respeitando e cumprindo rigorosamente as regras do trabalho colectivo.
Mesmo após a morte de Bento Gonçalves no Tarrafal, em 1942, manteve-se no quadro dos organismos dirigentes do Partido (nessa época o Secretariado assumia essa responsabilidade), o princípio do trabalho colectivo e da responsabilidade colectiva manteve-se. Álvaro Cunhal só foi eleito Secretário-Geral em 1962, depois da sua prisão e da fuga de Peniche.
A elaboração da linha política, da estratégia do Partido e dos seus objectivos para as condições concretas da sociedade portuguesa beneficiaram da estabilidade de direcção e organização alcançadas após a reorganização. No III e no IV Congresso (1943 e 46) que constituíram uma espécie de culminar das grandes linhas do processo iniciado com a reorganização, essa orientação tem uma concretização que define objectivos próprios (até aí só parcialmente formulados), dando outra projecção e dimensão ao papel e influência do PCP.
O ponto de viragem na situação regista-se em 1942, com a vaga de greves na região de Lisboa e arredores. Em Julho/Agosto de 1942 sob a direcção do PCP participam na luta 50 mil trabalhadores, a quase totalidade dos operários industriais da região de Lisboa e da Margem Sul. Apesar da repressão as lutas não pararam. Respondendo a apelos directos do PCP a classe operária de Lisboa e do Baixo Ribatejo trava grandes lutas em Maio de 1944.
Nessa data o PCP já emergia como um grande partido nacional e força decisiva no quadro da luta antifascista, com uma projecção e um prestígio que marcou a sociedade portuguesa no plano político, social e cultural em toda a segunda metade do século XX.
O processo de desenvolvimento do PCP que teve a sua origem na reorganização de 40-41 é uma fase marcante da sua história, na sua definição como força política, na sua orgânica e no seu estilo de funcionamento. Importa pois recordar algumas das contribuições que, no decorrer desse processo asseguraram o seu êxito e passaram a fazer parte do património político, ideológico e histórico do Partido.
Justifica- se também abordar, neste número do Avante!que assinala o primeiro aniversário da morte de Álvaro Cunhal, a importância da sua contribuição para a formação desse património.
Defesa do Partido preocupação prioritária
A definição das regras que na clandestinidade eram designadas como «medidas de defesa conspirativa »e permitiram ao PCP desenvolver a sua actividade nas difíceis condições impostas pelo fascismo, foi uma das primeiras preocupações da reorganização. E para a sua elaboração deu AC uma grande contribuição, com imaginação. Inteligência e criatividade.
Essas medidas permitiram a criação de condições para defender o funcionamento estável de uma direcção e de uma organização estruturada e dotada dos elementos logísticos clandestinos essenciais para uma intervenção continuada, com instalações clandestinas, tipografias, imprensa clandestina, sistemas de ligação e transportes.
Mas a definição desses métodos e a utilização desses meios não teriam sido possíveis, como sempre destacava AC, sem a existência a existência de um colectivo de homens e mulheres firmemente decididos a travar a luta contra o fascismo nas condições de acção clandestina e de vida clandestina e dispostos a todas as provas, incluindo dar a vida se tal se impusesse, como em muitos casos de facto se impôs.
E essa disposição existia porque se baseava em objectivos correspondendo a aspirações profundas do povo português e na convicção de serem objectivos justos e merecedores de todos os sacrifícios.
Características orgânicas do Partido
Na clandestinidade o Partido era forçado à centralização de tarefas essenciais e a medidas de cuidadosa defesa. Mas no próprio processo da reorganização AC e os seus camaradas aplicaram e defenderam soluções de trabalho colectivo e de participação democrática dos militantes na vida do Partido.
Tal como praticamente todos os partidos comunistas do mundo, por influência do PCUS e da Internacional Comunista, o PCP sempre afirmou ter uma estrutura e um funcionamento fundamentados no centralismo democrático. Mantendo esta expressão, AC, expressando os pontos de vista do PCP, desenvolveu, nos conceitos e na prática a aplicação desses princípios, integrando-os na democracia interna do PCP.
Em qualquer dos Congressos realizados nessa época (III em 1943, IV em 1946) e mais largamente nos relatórios nele apresentados por Álvaro Cunhal, a par de competências centralizadas, de disciplina, de unidade, foram sublinhados princípios democráticos como a eleição de todos os organismos de direcção (embora de impossível generalização nas condições de clandestinidade) a prestação de contas e direitos fundamentais dos membros do Partido: de defenderem as suas opiniões, de discordarem dos organismos superiores, de crítica, de participação na discussão ampla e democrática de toda a actividade partidária e na elaboração das directrizes gerais do Partido.
No IV Congresso do Partido AC, apresentando o relatório sobre os princípios orgânicos do Partido, sublinhava a necessidade e o dever de adoptar formas democráticas «sempre que não colidam com o trabalho conspirativo». Tanto concepções centralistas como outras depois caracterizadas como «anarco-liberais» foram ultrapassadas.
A contribuição de AC foi decisiva para que, no PCP, além de um crescente respeito pelas opiniões diferenciadas, a democracia interna tenha adquirido novos valores e se tenha aprofundado progressivamente através do conceito e da prática do trabalho colectivo.
Uma linha de ligação às massas
AC não resumia a luta do PCP ao desmascaramento da política fascista e ao protesto contra ela. A mobilização das massas era conduzida de forma a suscitar, promover e organizar a luta popular com objectivos concretos e imediatos. Sublinhava que a experiência mostra que o interesse directo numa luta que se trava (e o êxito alcançado ou possível) é um factor que pode ser determinante para o esclarecimento e consciencialização das pessoas.
Como meio indispensável para chegar às massas, informá-las, influenciá-las, esclarecê-las, estimulá-las, organizá-las para a luta, AC defendia e desenvolveu, na sua elaboração teórica e política,
não só o aproveitamento das possibilidades de acção legal e semi-legal que se pudessem oferecer, como a iniciativa do partido para as criar. Exemplo de particular significado dessa orientação foi a linha de actuação nos Sindicatos Nacionais integrados na organização corporativa, de forma a usá-los como instrumentos de defesa dos interesses dos trabalhadores, bem como a criação e acção das Comissões de Unidade nas empresas, que com o apoio dos trabalhadores acabaram em muitos casos por ser reconhecidas. Também a acção da juventude nas Associações de Estudantes, em que se apoiaram grandes movimentações, como, naquela época, as de 1942.
A íntima ligação com a classe operária, os trabalhadores em geral, os intelectuais, a juventude, e o aproveitamento ou criação de formas de organização legal e semi-legal, eram indissociáveis, para AC, de uma concepção fundamental do PCP: a de que a luta popular de massas constituía o motor do processo que conduziria à revolução antifascista.
A natureza de classe da ditadura
A definição da natureza de classe do regime salazarista foi uma das mais importantes contribuições que o PCP deu para apontar de forma segura o desenvolvimento da luta antifascista. O papel de AC para essa definição foi fundamental.
Partindo da análise da base económica e da arrumação das forças sociais em Portugal, AC deu uma definição rigorosa da natureza de classe da ditadura salazarista como ditadura terrorista do capital financeiro associado aos agrários, numa formulação assumida por ele no III e no IV Congresso, que permitiu identificar o inimigo principal com maior exactidão e, nessa base, definir os objectivos da etapa revolucionária que se colocava aos trabalhadores e ao povo português.
Unidade contra a ditadura fascista
Quando se iniciou a guerra de 1939/45 as forças antifascistas encontravam-se divididas, dispersas, sem acordos nem acção comum.
A caracterização da natureza de classe da ditadura salazarista permitiu ao PCP definir em bases marxistas seguras uma política de unidade.
Por outro lado, pela sua própria experiência, largas camadas da população trabalhadora tomaram consciência da natureza opressora e de classe da ditadura salazarista e da necessidade de lutar para defender os seus interesses mais imediatos, Essa base de apoio, potenciada pela acção organizadora do PCP, criou condições para o desenvolvimento de uma larga dinâmica antifascista.
Mas para AC não bastava definir orientações, era preciso levá-las à prática.
Tendo em conta a diferenciação e a conflitualidade de interesses registada nos vários sectores da burguesia perante a dominação económica e política do capital monopolista, AC definiu nos seus relatórios ao III e IV Congressos uma política de alianças sociais abrangendo camadas da pequena e média burguesia, numa linha que marcou a actuação do PCP durante toda a luta antifascista (e teve também expressão no processo da revolução de Abril).
Foi por iniciativa do PCP e com o empenhamento directo de AC que, sob o impacto das grandes greves operárias de Julho/Agosto de 1942 e Outubro/Novembro de 1943, forte expressão da unidade e combatividade da classe operária e da influência do PCP nelas reveladas, que se constituiu em Dezembro de 1943 na clandestinidade o Conselho Nacional de Unidade Anti-Fascista. O Conselho Nacional, conseguiu unir à sua volta praticamente todos os sectores da oposição antifascista, esteve aberto a grupos militares e a correntes católicas e formou Comités de Unidade Nacional por todo o país.
O PCP assegurava a capacidade operacional do MUNAF (Movimento Nacional de Unidade Anti-fascista) mas entre quarenta membros tinha apenas dois representantes, um dos quais era o próprio AC. Mas estava em condições de ter um papel determinante nesse Conselho. E no seu programa, o Conselho propunha as principais questões que o PCP defendia, já então, como fundamentais para a democratização do País: «a instauração da liberdade de palavra, de imprensa, de reunião, de associação, de crenças e cultos religiosos, a legalização das organizações operárias e progressistas» e a constituição de um Governo Provisório até que o povo português escolhesse os seus governantes através de eleições em sufrágio directo e em escrutínio secreto de uma Assembleia Constituinte.
Como derrubar a ditadura?
Esta era uma das questões centrais que se levantava nos anos da reorganização e sobre a qual havia mais diferenças de opinião entre a oposição.
Tinham nessa época colhimento em alguns sectores da Oposição a ideia ilusória de que o fim da ditadura e a instauração da democracia viria de factores externos (por pressão da Inglaterra quando da derrota da Alemanha, por exemplo).
No fim da 2.ª Guerra Mundial, numa errada interpretação do significado da aliança dos Estados Unidos e Inglaterra com a União Soviética, generalizou-se em largos círculos a crença de que a aliança no tempo de guerra poderia ter nova e duradoura expressão no tempo de paz. No PCP, tais concepções não vingaram, mas não deixaram de manifestar-se nos que defenderam a então chamada «política de transição».
Havia também a não menos ilusória ideia, que renascia constantemente, de que a democracia poderia ser alcançada por uma hipotética vitória nas farsas eleitorais fascistas.
Álvaro Cunhal deu combate político e ideológico a estas tendências ilusórias mas só após a reorganização, quando o PCP adquiriu força e capacidade para promover e dirigir a luta política e social de massas, começaram a surgir outras perspectivas na Oposição.
O caminho insurreccional, o levantamento nacional armado foi definido e defendido por Álvaro Cunhal no III Congresso realizado em Novembro de 1943 e confirmada no IV Congresso em 1946.
O levantamento nacional, definido no Programa do PCP (aprovado no VI Congresso) como uma insurreição popular, luta armada do povo e de militares revolucionários, foi apontado pelo PCP, não como um acto voluntarista, como consequência de apelos ou de iniciativa de uma vanguarda empreendendo isolada o combate, mas exigindo a existência de uma situação revolucionária, em que à crise do regime se somasse a preparação, disposição e determinação das forças revolucionárias. Como aconteceu no 25 de Abril.
Confiança no futuro
Álvaro Cunhal dizia ser particularmente significativo que a reorganização do PCP tenha sido empreendida num momento em que parecia que o terror fascista ia ganhar todo o mundo e a ditadura em Portugal, terminada a fascização do Estado, estava no aparente apogeu do seu poder. Os exércitos nazis tinham varrido e ocupado a Europa continental, chegavam aos Pirinéus e avançavam até às portas de Moscovo, de Leninegrado e de Stalinegrado. O Japão militarista conquistava o Oriente.
O que então apregoavam os fascistas, faz lembrar o que hoje apregoam alguns: que o comunismo tinha morrido. O governo declarava que o PCP estava definitivamente liquidado e que com a derrota da URSS na guerra o comunismo seria uma causa definitivamente perdida.
Empreendendo a reorganização em tais circunstâncias – observou Álvaro Cunhal -, «o PCP mostrava como os comunistas compreendem os seus deveres para com o povo e para com o país, como não recuam ante obstáculos e dificuldades, como não se deixam intimidar pela mais brutal repressão e como a sua visão da história e da sociedade não lhes faz perder a confiança no futuro».
Artigo publicado na Edição Nº1697 do Avante!