Revolta dos Marinheiros – Um marco da luta contra o fascismo

 
 
Acto político de resistência
 
Há 70 anos, eclodiu nos navios Bartolomeu Dias, Afonso de Albuquerque e Dão, fundeados no Tejo, uma sublevação de marinheiros. Na sua preparação tiveram papel determinante os comunistas e a Organização Revolucionária da Armada (ORA), com intensa intervenção política, num momento em que o fascismo procurava consolidar-se e a resistência democrática ganhava ímpeto.
 
Era objectivo dos revoltosos passar a barra com os três navios e, uma vez ao largo, fazer ao Governo de Salazar, um ultimato, para que fossem libertados e reintegrados 17 camaradas, punidos após uma expedição do Afonso de Albuquerque a Espanha, em Agosto, pouco depois de ali ter eclodido a guerra civil. «Fomos a Málaga, Alicante e mais uns portos buscar emigrantes portugueses» e houve «problemas a bordo, porque havia ordens para não desembarcarmos, quando atracávamos em portos republicanos, ao passo que podíamos desembarcar nos portos fascistas. Aí, a malta decidiu que não descia em porto nenhum», contou ao Avante! (N.º 17, de 8 de Setembro de 1974) o camarada Joaquim Gomes Casquinha, que ia a bordo e mais tarde participou na revolta. Chegados a Lisboa, ocorreram as expulsões e as detenções.
 
Meses antes, tinham sido presos 30 marinheiros, entres os quais todos os dirigentes da ORA. Admitindo que o ultimato ao regime fascista falhasse, os revoltosos previam dirigir os navios para Angra do Heroísmo, onde aqueles seus camaradas estavam detidos, para os libertarem.
 
A revolta acabou por mostrar que uma forte resistência perturbava a consolidação do fascismo no País.
 
«Afonso de Albuquerque» encalhado na praia de Algés, após ter sido atingido
 
«Afonso de Albuquerque»
 
A situação e as circunstâncias
 
«Criava-se justificada esperança de fazer frente com êxito ao fascismo», afirmou Álvaro Cunhal na intervenção que em 1998 proferiu na sessão de homenagem aos marinheiros tarrafalistas, traçando primeiro o quadro em que a revolta teve lugar. Hitler tomara o poder em Janeiro de 1933 e preparava a guerra; a Itália fascista desencadeara a guerra na Abissínia. Em Portugal, o golpe militar de 1926, que se lançara na repressão do movimento operário, institucionalizara o regime fascista em 1933, ilegalizando logo depois os sindicatos – o que conduzira à insurreição de 18 de Janeiro de 1934 na Marinha Grande. Por seu lado, a Internacional Comunista, no seu VII Congresso realizado em 1935, «apontara como objectivo central do movimento comunista e de todas as forças democráticas a luta contra o fascismo e a ameaça que fazia pesar sobre o mundo».
 
«Na concretização desta orientação», afirmou Álvaro Cunhal, «uniram-se as forças democráticas, constituíram-se, ganharam as eleições e formaram governo Frentes Populares em França e Espanha. Criava-se justificada esperança de fazer frente com êxito ao fascismo.»
 
Em Portugal, cujo regime colaborava com Hitler e Mussolini e apoiava abertamente os fascistas espanhóis que preparavam o golpe contra a República, o PCP sofria um rude golpe. Bento Gonçalves, secretário-geral, que participara no VII Congresso da Internacional Comunista, fora preso após o seu regresso ao País, conjuntamente com todo o Secretariado, com graves repercussões a nível de direcção do Partido.
 
«No campo democrático», recordou Álvaro Cunhal, «fervilhavam, por influência das vitórias antifascistas em França e em Espanha, ideias de um golpe armado para derrubar o fascismo. Os camaradas consideravam estar em condições de desempenhar em tal caso um importantíssimo papel, tomando conta do Afonso de Albuquerque e de outros navios de guerra.»
 
O contratorpedeiro «Dão» onde se deu uma tentativa de revolta
 
A Organização Revolucionária da Armada
 
A Organização Revolucionária da Armada – ORA -, foi uma organização política do Partido Comunista Português. A sua criação e desenvolvimento tem origem no reforço do trabalho partidário que resultou da reorganização do Partido de 1929 e a sua influência na Armada ultrapassava largamente as fronteiras partidárias. Da ORA emergiram destacados dirigentes do PCP, tais como Manuel Guedes, que foi membro do Secretariado do Partido.
 
 
Manuel Guedes, que aderiu ao Partido em 1931, tornou-se, logo a seguir, um dos principais dinamizadores da constituição da ORA, pois era marinheiro da Armada, onde se alistara como voluntário quase ao mesmo tempo que o golpe militar de 1926 precipitava o País na ditadura fascista. No momento da Revolta, Manuel Guedes encontrava-se preso em Espanha, para onde fugira com Pires Jorge (também ele, mais tarde, membro do Secretariado do PCP), depois de se ter evadido a caminho do tribunal. Os fascistas espanhóis, ao tomarem Cáceres, onde os camaradas se encontravam presos, entregaram-nos à Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), e Manuel Guedes permaneceu preso até 1940, vindo depois a participar activamente na reorganização do Partido de 1940-41.
 
Nos tempos da ORA, Manuel Guedes foi um grande impulsionador do jornal O Marinheiro Vermelho, que chegou a difundir 1500 exemplares no seio da Armada.
 
A ORA desenvolveu um intenso trabalho de agitação na Marinha, que viria a culminar no 8 de Setembro. Na sequência das mortes, das prisões e das deportações a organização foi desmantelada pelo fascismo. Antes do seu final trágico, a Organização Revolucionária da Armada chegou a ser a mais forte organização do PCP e os seus membros atingiram a dada altura 20 por cento do total dos efectivos partidários.
 
O jornal «O Marinheiro Vermelho» teve tiragens de mil exemplares, chegou a ultrapassar os 1500 e, em média, 700 jornais eram integralmente pagos.
«O nosso jornal saiu com um dia de atraso porque, como a polícia proibiu a venda de tinta ao público, tivemos que a fabricar.» Nota no N.º 8 de «O Marinheiro Vermelho»
 
Repressão e solidariedade
 
Sobre os marinheiros envolvidos na revolta abateu-se a feroz repressão do fascismo.
 
Os bombardeamentos contra os navios sublevados e a perseguição dos revoltosos fizeram, no dia 8 de Setembro, doze mortos.
 
Na Marinha foi desencadeada uma limpeza contra elementos considerados de pouca confiança.
 
Foram presos e demitidos 208 marinheiros, dos quais 82 foram condenados; 44 foram enviados para a fortaleza-prisão de Angra do Heroísmo, 4 ficariam no forte de Peniche e 34 fizeram parte do primeiro contingente de 150 primeiros presos políticos enviados para o campo de concentração do Tarrafal. A maioria destes, com penas que iam de 16 a 20 anos, saiu apenas quando o Tarrafal foi encerrado, em 1954, mas cinco dos marinheiros acabaram por sucumbir ao «campo da morte lenta».
 
Por parte da população, houve comoventes manifestações de simpatia e solidariedade para com os marinheiros.
 
Álvaro Cunhal, ao relatar o seu encontro com o único camarada da ORA que, estando na revolta, conseguiu escapar à prisão, «o camarada Armindo, mais conhecido como o "Peru"», sendo «grande nadador, atravessara o Tejo a nado até perto do Porto Brandão e, como me contou, abordara um barco de pescadores», que «só o içaram para bordo quando lhes disse ser um marinheiro da revolta».
 
António Diniz Cabaço, que mais tarde seria preso, contou ao Avante! (N.º 17, de 8 de Setembro de 1974) como, depois de ir numa baleeira até ao Olho de Boi, foi ajudado por pescadores, que perceberam que «você é um dos barcos que se revoltaram, fique aqui que vamos fazer uma caldeirada». Na mesma entrevista, João Faria Borda relata que «até mesmo nos outros barcos, que receberam ordens para nos atacarem, o pessoal recusou-se a disparar».
 
Marinheiros da Revolta conduzidos à prisão
 
 Doca do Bom Sucesso.
Entrada dos marinheiros nas camionetas da polícia.
A foto correu mundo mas não apareceu em nenhum jornal português da época.
 
Um estímulo para a luta
 
«Como muitas vezes aconteceu na luta revolucionária, e certamente assim voltará a acontecer, o que perdura no longo historial do que ousaram "tomar o céu de assalto" não é o sentido e o amargo da derrota, mas o significado da ousadia, a abnegação, a entrega total à causa da liberdade dos que mais não aspiravam do que servir o povo, e os ensinamentos que se extraem desses acontecimentos para o prosseguimento da luta», escreveu Domingos Abrantes num artigo de O Militante deste mês de Setembro, passados 70 anos sobre a Revolta dos Marinheiros.
 
Com efeito, a revolta, preparada e decidida por um número significativo de militares da Armada – marinheiros, grumetes e cabos – estava destinada à derrota.
 
Mas os camaradas da ORA, que haviam exposto a situação à Direcção do Partido, «viam com impaciência estar o governo a tomar medidas que ameaçavam seriamente a ORA», conforme conta Álvaro Cunhal: «Encaravam mesmo a possibilidade de, na parada da Marinha de Guerra que costumava realizar-se na baía de Cascais e à qual Salazar e membros do governo assistiam a bordo do Afonso de Albuquerque, tomarem conta do navio e prenderem Salazar, os ministros e acompanhantes. Tal operação inserida numa revolta de outras unidades militares poderia ser determinante. Mas, sendo isolada, apresentava-se cheia de justificadas dúvidas. De qualquer forma, era muito arreigada nos camaradas a determinação de uma revolta, dando um ultimato ao governo antes que o governo conseguisse destruir a ORA.»
 
Ao recordarmos e saudarmos os participantes na Revolta dos Marinheiros – de que tão poucos sobrevivem hoje – lembramos também as palavras de Álvaro Cunhal quando se cumpria o 60.º aniversário do acontecimento:
 
«Lembrança e gratidão para aqueles que pela sua acção heróica foram presos, torturados, mortos no Tarrafal, Lembrança e gratidão para aqueles que não chegaram a viver no 25 de Abril a conquista da liberdade pela qual lutaram.»
 
Marinheiros da revolta de 1936
readmitidos nos quadros da Marinha
após o 25 de Abril de 1974