Prá frente, meu coração
José Cardoso Pires
Excertos da intervenção de José Cardoso Pires na homenagem a José Dias Coelho, na Sociedade Nacional de Belas Artes, a 19 de Junho de 1974
Agora que nos juntámos para reviver um Amigo, cada um de nós traz dele uma imagem sentida, quase privada. Vêmo-lo, eu, por exemplo, como companheiro de juventude; sonhamo-lo – alguns poderão até recordá-lo – na pátria da clandestinidade; repetimo-lo através dos versos e dos desenhos que nos deixou, traços da sua voz mais íntima. E todos, falando dele, pensamos na cruel, na terrível mancha de luto, que marca a sua ausência neste início de liberdade. Estaria aqui e mais além, no comício ou no atelier, não importa: mas connosco. Trabalhando à luz do dia o país que desponta.
[…] Os verdadeiros revolucionários amaram e defenderam a Vida com o risco do último sacrifício – e entre esses, Dias Coelho, o meu amigo de longe e para sempre. Poucos como ele tiveram tão saudável e empenhado gosto de viver, e raros, raríssimos, usaram de tão serena tolerância no desejo de compreender e lutar.
Uma simplicidade imediata fazia com que tudo nele, ideias, gestos, convívio, fosse um discorrer expontâneo – ou uma entrega confiante, se quiserem. Revejo-o em 1945 numa concentração na Faculdade de Ciências; ou em certas tardes à mesa do velho Chiado (o café e a “Pomba de Picasso” em cima do tampo de mármore); nos passeios do MUD Juvenil (outro roteiro de politização) – percorro, em suma, todo um passado activo de iniciação, de prisões e de alegrias, e encontro sempre aquele sorriso, tão dele, a perdurar sobre o eco e a recordação.
[…] Um espaço, uma reticência da memória, e retomo Dias Coelho, agora no Movimento da Paz – Paz, execução dos Rosenberg, milhões de assinaturas a dizer não à morte (a maior declaração por escrito de toda a humanidade, estou certo). Ehrenbert e Eluard, tanta coisa. Aqui, no país muralhado com juizes do Plenário sentados em torres sinistras, também a Paz era difícil. Contudo triunfava, e era nossa. Na grande leva de obreiros que a erguiam lá estava Dias Coelho desenhando cartazes, presente em reuniões, angariando fundos, e sempre com aquele sorriso de camponês citadino que lhe iluminava a voz e o olhar.
Assim fazíamos, ele, eu, toda uma geração, a aprendizagem da vida. Procurávamos, quer isto dizer, saboreá-la no mais simples e no mais denso que ela oferecia, e talvez por isso é que, muitos anos mais tarde, ao ler
Em toda a parte há
um pedaço de mim
que se quer dar
eu tenha reconhecido subitamente a assinatura do homem que fez esses versos: o José Coelho, o companheiro que se repartia e estava inteiro no bom e no difícil, no prazer e na coragem.
Esta capacidade de abranger o mundo e de tudo partilhar foi, tenho a certeza, a poderosa força de José Dias Coelho, aquilo que o impeliu para a tarefa de modificar e construir contra o errado e o desumano. A morte de um camponês ou um aceno de criança levantavam prontamente nele a indignação ou o amor, e, logo, o tal «pedaço de si que se quer dar». Respondia então com o desenho aberto e tranquilo, o traço limpo, urgente, uma necessidade de comunicar e de fazer testemunho. Ou lançava-se ao barro e esculpia, com aquelas suas mãos sólidas de terra a terra, o protesto vincado ou o instante de um amigo na sua expressão mais íntima, pessoalíssima. Aconteceu isso nas peças de escultura que nos deixou em desencontrados períodos de trabalho, na cabeça agreste de Redol, por exemplo, ou no busto de Margarida Tengarrinha, tão repassado de serenidade e de melancolia.
[…] Discutimos, horas e serões, os mil enredos da viabilidade da arte numa sociedade repressiva, a propósito dos desenhos que ele fazia na altura para a revista Vértice sobre textos meus, mas não acho que possa reproduzir agora com fidelidade o essencial dessas conversações. Do que me recordo é que me ficou a palavra Comunidade como tema geral de todos os seus trabalhos de então e daqueles que viria depois a produzir. Comunidade. Amor. Na realidade, toda a poesia, toda a arte, toda a vida de José Dias Coelho têm essa constante lírica que não é mais do que a exaltação do amor e do entendimento. As tais coisas partilhadas, torno a dizer.
Penso que um homem assim, que se procura através de todas as formas de comunicar ao seu alcance – a arte, a escrita, a militância comunista – penso que um homem destes só pede da vida (e com que entusiasmo!) a parte mais árdua e mais justa. Sabemos das prioridades que se lhe põem em certas encruzilhadas decisivas, e como escritores da grandeza de Soeiro Pereira Gomes se interromperam na sua tarefa criadora para se entregarem a uma outra, mais urgente e perigosa: a de arrancarem a pátria à servidão capitalista, restituindo-lhe a palavra livre, a mão e o olhar livres com que pudessem vir a descrever o mundo novo.
Com isto não me refiro apenas aos intelectuais, escritores ou artistas que se jogaram na luta total, no tudo ou nada, sobrepondo a acção política ao talento natural. Penso neles, de facto, pensando em Dias Coelho; sei que fizeram tal opção para libertar o homem e também a arte que tanto amavam, e para que outros a seguir, mais felizes, a pudessem retomar. Mas penso também que, a par destes, dezenas e dezenas de operários e camponeses dotados para contar em verso ou em imagem a vida deste País foram para sempre calados pela fome ou pela segregação cultural.
A luta política, aquela que vai às raízes, entenda-se, é uma técnica de construir a felicidade. O livro e a arte enriquecem o homem, é certo; mas não é menos certo que não se pode escrever ou desenhar a palavra Amor, indiferente às vítimas do ódio que nos rodeiam ou ignorando as desigualdades e os pavores. Se hoje o meu, o nosso orgulho de cidadãos é o de, pela primeira vez, podermos adormecer com a consciência de que ninguém neste país está a ser torturado, isso só exige que defendamos esse privilégio com vigilância dobrada e que escrevamos a tal palavra Amor com maior beleza e imaginação.
Foi exactamente para lutar por um momento assim – essa paz sem remorso, esse direito – que José Dias Coelho, há muitos, muitos anos, desabafou comigo à saída desta mesma sala onde nos encontramos: «Zé, eu não suporto mais isto!»
Escolheu, soube-o mais tarde, a via definitiva, a do comunista que se lança, inteiro e definitivo, contra um mundo velho e feroz. Ia, no fundo, em busca de uma outra expressão do homem e levava dentro de si um verso que um dia iria escrever: Vai para a frente, meu coração.
Foi. Para a frente e de cara voltada para a luz. E ele, que tanto adorava a cidade e o ar livre, caiu em plena rua, assassinado. Mesmo assim, quando o recordamos e o temos orgulhosamente connosco é à frente de nós que o sentimos – à frente, como o seu nobre coração.