Peniche – 1950
Lembranças de uma fuga
O Militante dá a conhecer um texto inédito do camarada José Vitoriano escrito em Outubro de 1998 e cuja publicação se reveste de grande actualidade, não só pelo facto de abordar aspectos da vida prisional e da luta dos presos políticos, mas também pelo facto de termos acabado de comemorar os 45 anos da fuga de Caxias, a fuga no carro blindado de Salazar (4 de Dezembro de 1961) e os 47 anos da fuga de Peniche, que restituiu à liberdade o camarada Álvaro Cunhal e outros destacados dirigentes do Partido (3 de Janeiro de 1960).
O texto do camarada José Vitoriano recorda-nos que o fascismo existiu e que a repressão era parte integrante do regime. Nele sobressai, como prática corrente, o esforço dos carcereiros para tentar desarticular a luta organizada dos presos e como, apesar disso, estes e suas famílias jamais deixaram de resistir e organizar lutas que se inscrevem na luta geral contra o fascismo.
Tentar fugir das cadeias fascistas era uma tarefa para os comunistas presos. O texto do camarada José Vitoriano, relatando-nos a experiência concreta de uma fuga de Peniche – a fuga dos camaradas Francisco Miguel e Jaime Serra (Novembro de 1950) –, ajuda-nos a melhor compreender o que isso quer dizer.
Várias foram as fugas, individuais e colectivas, protagonizadas por membros do Partido, fugas determinadas pelo desejo de reocupar o seu posto de combate na luta pela liberdade e pelo socialismo e que se tornaram património da luta do PCP contra o fascismo.
Numas linhas que há meses escrevemos para esta página fazíamos referência às lutas que, em Peniche, os presos políticos eram com frequência forçados a travar pela melhoria das condições da vida prisional. Naturalmente que isto não acontecia só em Peniche mas, no caso, é de Peniche que estamos a falar.
Uma das preocupações dos carcereiros para tentarem contrariar, tanto quanto possível, tais acções dos presos consistia em, de vez em quando, fazerem mudanças de presos de umas salas para outras, particularmente dos camaradas mais responsáveis, que eles consideravam e apelidavam de «cabecilhas». Estamos a referir-nos a uma fase em que ainda não havia celas na cadeia de Peniche.
No entanto, havia nisto uma grande desorientação dos carcereiros, talvez até porque nenhum processo provava dar resultado. Umas vezes separavam e dispersavam os tais «cabecilhas» por várias salas (ou casernas, como neste tempo ainda se designavam em Peniche as habitações dos presos), outras vezes juntavam-nos todos numa só sala, separados da massa dos presos.
No primeiro caso, pretendiam impedir que pudessem combinar entre si e organizar qualquer acção, visto estarem separados e impossibilitados de comunicar devido ao total isolamento dumas salas em relação às outras. No segundo, estando juntos mas isolados dos restantes presos, não poderiam exercer a sua influência «nociva» sobre eles e «arrastá-los» para a luta. Estas eram as concepções dos carcereiros, cujos métodos, contudo, não demonstravam grande eficácia.
Condições favoráveis à fuga
Foi numa destas mudanças que se criaram condições muito favoráveis à organização e preparação de uma fuga. Alguns dos presos mais responsáveis então em Peniche, nomeadamente Jaime Serra (isto passa-se em 1950), foram transferidos para uma sala (antes desactivada), onde já se encontrava isolado, havia algum tempo, Francisco Miguel, uma sala afastada da zona central do Forte onde estavam a população prisional e os serviços da cadeia. Com Jaime Serra foram vários presos de um processo do Algarve, vários outros do Porto e Gabriel Gomes – este condenado a longos anos de prisão por ter sabotado alguns aviões, numa tentativa putchista de Abril de 1947. Totalizavam cerca de vinte presos.
Esta sala, conhecida pela sala 5, situava-se no extremo sul do Forte, encostada à muralha exterior, ao lado das instalações do destacamento da GNR que ali fazia serviço de vigilância e que era rendido mensalmente.
Como nesse tempo o corpo de guardas prisionais em Peniche não era ainda muito grande, os carcereiros tinham dificuldade em manter lá um guarda permanente. E como a sala estava ali mesmo nas barbas da GNR, o guarda prisional só lá ia nos momentos da rendição para contar os presos, às horas da refeição para que fossem buscar a comida à cozinha, às horas do recreio, e pouco mais.
O facto da sala ficar encostada à muralha que dava para o mar e a pouca vigilância dos guardas da cadeia criavam boas condições para a preparação de uma fuga. Nesse sentido, começou-se a trabalhar. Duas hipóteses foram consideradas, uma delas como alternativa à outra e para o caso de essa ter que ser abandonada.
A primeira, por ser a que oferecia melhores condições de êxito e possibilidades para a saída de mais camaradas, era abrir um buraco na muralha, por onde sairiam directamente para o mar os presos interessados em fugir. Previa-se que chegariam ao molhe do porto sem muita dificuldade e sem grande perigo de serem detectados visto a distância ser relativamente curta.
A segunda, consistia em serrar a grade de uma janela que dava para o interior da fortaleza, subir umas escadas em pedra à face da muralha que levavam ao terraço da mesma, saltar para aí e, pelo lado oposto, descer depois para o mar através de uma escada de corda previamente preparada.
Esta última hipótese era bastante mais perigosa, visto que todo o percurso até ao início da descida para o mar (mais concretamente, sobre as pedras que existiam encostadas à muralha) era feito debaixo do ângulo de visão da sentinela da GNR que, ali próximo, sobre o terraço das muralhas, fazia vigilância, andando de um lado para o outro. Era necessário aproveitar os momentos em que o guarda marchava de costas para nós.
Era também a mais limitada, decidindo-se que por ali não poderiam sair mais do que dois camaradas, exactamente pelos perigos que oferecia de sermos detectados.
Era ainda bastante perigosa no que se referia ao risco de acidente, dado que a escada tinha que ser fixada no topo da muralha e existia o perigo de, na descida, com o peso e os balanços do corpo, a escada se desprender ou mesmo partir. As cordas eram feitas com pontas de fio unidas e entrelaçadas, igual ao das redes dos pescadores, a que se ligavam depois bocados de pau de vassoura, dando-lhe a forma de escada.
Mãos à obra
Lançámo-nos, pois, ao trabalho na preparação da fuga através da muralha e, nas horas vagas, confeccionávamos corda para a hipótese de termos que recorrer a esta alternativa.
Demarcado o sítio na muralha onde se iria abrir o buraco, logo se adquiriram umas folhas de papel de embalagem (papel ferro) com que se forrou a parede naquela zona, se colocaram uns cabides e se começou a dependurar ali algumas roupas, como sobretudos e casacos. Isto tinha o objectivo de habituar os carcereiros a verem aquele sítio como o lugar onde os presos penduravam a roupa e que aquelas folhas de papel se justificavam para a preservar da humidade da parede. Isto até era verdade, mas havia outra justificação, e esta só para nós, que era termos o buraco sempre tapado.
De posse de algumas ferramentas que, precavidamente, se tinha ido reunindo iniciou-se o trabalho. A tarefa não era fácil. Para além de desconhecermos a espessura da muralha e dos meios muito rudimentares que tínhamos para trabalhar, tínhamos ainda de resolver outro problema não menos complicado: onde esconder tudo quanto dali se tirava, como pedras e terra, todo aquele entulho.
Embora não houvesse guarda permanente no sítio, iam lá algumas vezes ao dia. À quinta-feira de cada semana tínhamos que pôr as camas na rua deixando tudo a descoberto e guardas da GNR rondavam sempre por ali próximo.
Alguma terra conseguíamos deitá-la ao mar, quando vazávamos o caixote do lixo através de uma ameia na parte baixa da muralha próximo da porta da sala, o que geralmente se fazia sob os olhares do guarda. Mas isto era uma gota de água no oceano – no caso, uma gota de terra! E a outra? E as pedras – algumas bastante grandes?!
A solução foi rasgarem-se algumas mantas e lençóis, com eles fazerem-se sacos, enchê-los e metê-los debaixo das camas. Com algumas pedras fizeram-se bonitos embrulhos, com papel apropriado, que se colocaram sobre prateleiras (bastante resistentes) que havia à volta da sala onde se punham malas e outras coisas. Outras ficaram no chão, mas devidamente acondicionadas.
A greve da fome
Estavam as coisas a andar normalmente – a normalidade possível nestas situações – quando estalou uma greve da fome espontânea, por parte dos restantes presos do Forte que se encontravam na zona de que estávamos isolados. O buraco já tinha cinco metros de profundidade a caminho do exterior.
Tínhamos furado a parede interior da muralha com cerca de dois metros de espessura, atravessado depois uma zona de entulho com cerca de três metros e chegado à parede exterior, que calculávamos tivesse pelo menos outros dois metros. Era um túnel que íamos escorando como podíamos.
Não estávamos nada interessados numa greve da fome naquele momento devido à tarefa que tínhamos em mãos. Mas ela surgia e não tínhamos nada a fazer senão participar. A greve da fome surgia como resposta dos presos à acção repressiva e provocatória dos carcereiros, ambiente que aliás estava na origem do nosso isolamento na sala 5. Era nosso dever não apenas entrar nela mas procurar intervir, por todos os meios possíveis, na sua orientação e direcção, pois ali estavam os presos politicamente mais responsáveis. Foram sete dias sem ingerir qualquer alimento, acompanhados de outras formas de protesto, como recusa de tratamentos e visitas das famílias depois de estas saberem o que se passava.
Ao fim de uma semana de greve da fome era bastante grave a situação dos presos políticos no Forte de Peniche. A sua repercussão no exterior, devido à grande pressão das famílias e de muitas outras pessoas solidárias com a sua luta, começava a preocupar os fascistas. Foi neste quadro, que enviaram à cadeia dois inspectores da Direcção Geral dos Serviços Prisionais, acompanhados de um médico, para tentarem resolver a situação.
Estes ouviram os presos sobre as razões da greve da fome, prometeram que alguns dos problemas que tinham levado à greve seriam resolvidos, sobre outros prometeram intervir, insistiram para que a terminássemos, permitiram finalmente que uma delegação da nossa sala fosse às outras salas encontrar-se com os outros presos para, em conjunto, se decidir da atitude a tomar. Dos contactos havidos, e perante as promessas feitas, saiu a decisão de se pôr fim à greve. De imediato não estávamos em condições de prosseguir a tarefa que tínhamos em curso e que suspenderamos por causa da greve da fome. Bastante enfraquecidos, cada um de nós com vários quilos a menos, necessitávamos de um período de recuperação até que se pudesse continuar.
Entretanto, passados alguns dias, talvez semanas, tomou-se conhecimento de que iam ser transferidos presos para a cadeia de Setúbal para serem iniciadas obras na de Peniche. Uma das nossas reivindicações, no conjunto das que tinham levado à greve, era exactamente a melhoria das instalações prisionais. Seguiu-se a saída de dois da nossa própria sala.
Execução da fuga
Certos de que mais se seguiriam e podíamos sair todos dali, decidiu-se pôr imediatamente em execução o plano alternativo. O plano da muralha foi abandonado. Nestas condições, a fuga tinha de limitar-se aos dois camaradas mais responsáveis que ali se encontravam, Francisco Miguel e Jaime Serra. Mais, seria aumentar consideravelmente o risco de ser detectada pelas sentinelas.
Tudo correu bem. Cortada a grade até ao fim, montada a vigilância necessária e possível para controlar os movimentos da sentinela mais próxima, distribuídas as tarefas que cada um tinha de realizar no momento, próximo das três horas da manhã do dia 3 de Novembro de 1950 os nossos dois camaradas saíram como previsto, e com êxito, da Fortaleza de Peniche. O ferro cortado da grade voltou a ser colocado no sítio, colado com uma massa feita de sabão e limalha da serradura, o que lhe dava um disfarce quase perfeito, e uns bonecos feitos com roupa foram colocados nas duas camas vazias a imitar os corpos, pois às cinco horas o guarda vinha contar e era necessário certificar-se de que estavam todos. E assim foi!
O que aconteceu depois
Quando a partir das 7 da manhã nos levantámos sem que nada de anormal tivesse ocorrido, a nossa sensação de alívio e bem estar era enorme. Àquela hora, mais de quatro horas passadas, os nossos camaradas estariam certamente a salvo de qualquer perseguição consequente à fuga, pensávamos nós.
Só já muito próximo das nove horas a fuga foi detectada. Alguém da cadeia terá visto a escada a balançar na muralha. Imediatamente um guarda se dirigiu à sala a correr, abriu a porta, apitou para formarmos, contou, identificou um nome dos que faltavam e perguntou, quem era o outro. Mudos estávamos, mudos continuámos. Insistiu, voltou a contar, descobriu ele próprio quem era, fechou a porta, foi embora a correr como tinha vindo.
Tínhamos connosco uma garrafa de vinho do Porto que não me recordo como tinha entrado.
Bebemo-la, fizemos a festa. Os carcereiros estavam ainda sem saber como é que os presos tinham saído da sala para fugir. Tudo parecia intacto.
Em dado momento, o chefe dos guardas da cadeia mais o sargento da GNR aproximaram-se da janela.
Enquanto aquele olha fixamente para a grade, o sargento, apercebendo-se, diz com toda a convicção.
Por aqui não foi. A sentinela teria visto. Deve ter sido lá por trás!
Lá por trás era impossível! – diz o outro.
De repente estende a mão e arranca o bocado de ferro cortado. Vê?
Atrapalhado, o sargento desculpa-se com a lâmpada que ilumina o sítio e que às vezes se apaga. E lá se foram embora, um contente por ter descoberto, o outro nem tanto.
A meio da manhã, o Director da cadeia manda chamar à sua presença Gabriel Gomes. Quer saber como foi, como é que os presos fugiram, a que horas, e por aí adiante: Ameaçou, provocou. Desistiu. E nós presos, vivíamos um momento de felicidade. Bastante fugaz, como veremos.
Um balde de água fria
Quando, pelas duas horas da tarde aproximadamente, vimos, através das grades da janela da nossa sala, passar Francisco Miguel que, entre dois guardas, acabava de reentrar na cadeia, foi como se um enorme balde de água gelada nos tivesse encharcado da cabeça aos pés. Contudo, o facto de vir só, deixava-nos a esperança de que Jaime Serra tivesse conseguido escapar à perseguição, o que felizmente acontecera.
O que é que sucedera então? Como a fuga teve que ser antecipada sem possibilidade de contacto prévio com os apoios com que contavam no exterior, estes não funcionaram e a alternativa foi saírem da vila (que é uma península) pelos seus próprios meios e a pé.
Quando se fez dia não estavam muito longe. Sabendo que os carcereiros logo que dessem pela sua falta se poriam em campo à sua procura, decidiram parar e descansar em sítio preservado das vistas de qualquer passante, esperando que voltasse a ser noite.
Aconteceu que uns caçadores que por ali andavam, atraídos pelo ladrar dos cães, foram ver o que era e depararam-se com os nossos dois camaradas que, entretanto, se tinham levantado e vindo ao seu encontro e a quem deram uma explicação que pareceu ser entendida como natural.
Lutar até ao fim
De qualquer modo, depois disto, não podiam continuar ali, até porque, provavelmente, não tardaria muito tempo os caçadores viriam a saber que tinham fugido dois presos da Fortaleza e não lhes seria difícil identificá-los com os sujeitos que tinham encontrado.
Os camaradas resolveram então, nesta situação muito complicada, separar-se e ir cada um para seu lado, pois assim sempre haveria mais possibilidades de que, pelo menos um, se salvasse.
Foi o que aconteceu. Francisco Miguel teve o azar de, ao atravessar uma estrada, dar de caras com um guarda da cadeia que, de bicicleta, ia para o Forte entrar de serviço e que nem sequer sabia ainda da fuga. Percebeu imediatamente o que se passava, voltou à aldeia buscar a ajuda de familiares, e o nosso Chico foi apanhado.
Jaime Serra conseguiu com enorme esforço, apesar de bastante mais resistente, chegar a porto seguro a várias dezenas de quilómetros dali e ao fim de muitas e longas horas de caminhada.
Francisco Miguel voltaria a ser enviado para o Campo de Concentração do Tarrafal, onde permaneceria mais cinco ou seis anos.
Entretanto, como o fascismo, infelizmente para o nosso povo, ainda se manteria no poder por mais cerca de um quarto de século, isso deu tempo a que Francisco Miguel voltasse a fugir de Peniche (3/1/60) depois de regressado do Tarrafal, voltasse a ser preso e voltasse de novo a fugir, desta vez de Caxias (4/12/61), encontrando-se em liberdade aquando do 25 de Abril e no desempenho da sua actividade revolucionária.
Igualmente Jaime Serra, que na altura conseguira escapar aos perseguidores, voltaria a ser preso alguns anos depois (8/12/54), voltaria a fugir da prisão (3/3/56), voltaria de novo a ser preso (27/12/58) e novamente a fugir (3/1/60), encontrando-se também, aquando do 25 de Abril, no exercício pleno da sua actividade revolucionária. Era assim a luta dos comunistas contra o fascismo.
Isto dá razão ao que me dizia um dia um camarada. Um combatente pela liberdade, quando entra numa prisão, a primeira coisa a pensar deve ser: como é que eu vou sair daqui?