Aurélio Santos
O VI Congresso do PCP, realizado há 40 anos, em Agosto de 1965, merece um lugar de relevo na história do PCP por todo o contexto de acção política, elaboração ideológica e processos de trabalho em que se insere. Neles se configuram os traços basilares da actividade do PCP, que moldaram o papel específico por ele desempenhado na vida nacional.
Esse Congresso confirmou a maturidade e o conhecimento das realidades que o PCP acumulara na sua experiência política, e são expressão da sua própria existência e luta, cimentada nas convicções e na acção de muitas gerações de comunistas. Nele se consolidaram traços e valores que todo o desenvolvimento da actividade do Partido revela como basilares para o seu reforço e para o seu êxito. Pela importância que têm para o nosso Partido, vale a pena sublinhar alguns deles.
Uma sólida base ideológica
O PCP afirmou-se e continua a afirmar-se como marxista-leninista. E é com base nos princípios do marxismo-leninismo que temos encontrado as principais referências da nossa reflexão e da nossa actuação.
No marxismo-leninismo encontramos a base de um conhecimento racional da sociedade, uma análise e crítica da economia, uma teoria da História.
O marxismo-leninismo tem-nos permitido reconhecer, na sociedade capitalista, a essência dos fenómenos para além da sua aparência, a ligar a experiência adquirida ao conhecimento do presente, numa análise concreta de situações concretas.
A aplicação do marxismo-leninismo encontrou no VI Congresso formulações e desenvolvimentos que enriqueceram o património ideológico e político do Partido e permitiram uma condução mais segura da sua actividade no caminho que conduziu à Revolução de Abril.
No processo de debates que abrangeu todo o Partido, entre 1960 e 1965, e nos documentos que foram contribuindo para esse debate, elevou-se o nível político e ideológico do Partido, a sua coesão ideológica e o seu conhecimento da sociedade portuguesa. Esse avanço qualitativo deveu-se também ao reforço do trabalho de direcção, após as evasões, organizadas pelo Partido, de Álvaro Cunhal e outros destacados dirigentes que se encontravam presos em Caxias e Peniche.
Elemento fundamental nesse debate foi o «Rumo à Vitória», de Álvaro Cunhal, relatório aprovado pelo CC como base para o VI Congresso. Nele se faz uma análise das condições concretas, sociais, económicas e políticas da sociedade portuguesa nos anos 60, e se apontam caminhos para a saída da grave crise a que o regime fascista conduzira o país. E no Programa para a Revolução Democrática e Nacional, aprovado no Congresso, a culminar esse debate, não só foi aprovada a via do levantamento nacional para o derrubamento da ditadura, como também as transformações essenciais e necessárias para o estabelecimento e consolidação da democracia portuguesa. Esses documentos são exemplo de aplicação do marxismo-leninismo e ainda hoje dão valiosa contribuição para a formação ideológica dos militantes. E são também indispensáveis a quem queira conhecer e compreender a sociedade portuguesa do século XX e a sua história.
Para o PCP o marxismo-leninismo não é apenas uma bandeira para ser agitada como símbolo identitário, como muitas vezes se viu acontecer. É certo que isso também no PCP aconteceu, principalmente os seus primeiros anos de existência, quando era hábito no movimento comunista fundamentar as suas posições com o recurso abusivo e descontextualizado a citações de Marx e Lénine. Mas a sua própria experiência mostrou a necessidade do estudo e aplicação criativa do marxismo-leninismo para enfrentar eficazmente os problemas da luta revolucionária.
Valorizando o património ideológico do Partido, temos presente que o marxismo-leninismo não é estático, tem de procurar sempre a renovação das suas aquisições na base de novas experiências disponíveis e das sempre novas situações que a vida vai criando. Assim fez o PCP, aprovando no XII Congresso o seu novo Programa, para uma democracia avançada, e no XIII (Extraordinário) para analisar a crise dos países socialistas da Europa. E assim faz confrontando sempre o seu património ideológico com a evolução da realidade.
O colectivo partidário
A força do PCP e a importância da sua intervenção na sociedade portuguesa assenta no seu sólido colectivo partidário, designação que significativamente ganhou raízes na vida orgânica do Partido. Ter criado esse colectivo, e conseguido a sua renovação e continuidade em várias gerações de comunistas, atravessando as mais variadas condições, na clandestinidade e na revolução, na democracia e na contra-revolução, é sem dúvida uma das maiores realizações do Partido.
Na actividade do PCP criou-se e desenvolveu-se essa fulgurante cooperação, participação e partilha de ideias e de acção a que chamamos trabalho colectivo.
A própria experiência do PCP consolidou a ideia de que a diversidade de opiniões é essencial para um pensamento comum, e que este não pode dispensar a reflexão individual. A imposição burocrática ou autoritária não pode substituir a discussão política e ideológica.
O Partido é formado por muitos milhares de militantes com opiniões diferentes, com experiências diversas, com sensibilidades distintas. No centralismo democrático encontrámos uma forma orgânica de funcionamento que procura a unidade de acção e a coesão funcional para coordenar com coerência a acção do Partido. O centralismo democrático é indispensável para assegurar a coesão e capacidade de intervenção do Partido, assente numa direcção e uma orientação únicas. Ele tem permitido estabelecer no Partido, de forma estável, uma ligação desburocratizada e viva de milhares de militantes entre si e com a direcção do Partido, na definição da sua orientação e acção. E tem assegurado a ligação entre essa contribuição e a natureza de classe, os objectivos programáticos e os princípios orgânicos do Partido. Isto não quer dizer que tenhamos tido sempre a este respeito um percurso sem acidentes, sem hesitações, sem erros. Com base na nossa própria experiência e também das experiências, positivas e negativas, que a História tem registado na luta revolucionária e no movimento comunista, criámos os nossos próprios princípios orgânicos, com base na nossa própria concepção de centralismo democrático, tendo sempre presente a certeza de alterar o que se venha a revelar errado.
A participação dos militantes em todas as frentes onde é necessária a participação do Partido exige elevada consciência política, convicção, e não pode ser feita apenas em cumprimento de directivas e em resposta a apelos. A prática da democracia interna é a forma mais segura e adequada de o conseguir. A prática da democracia interna é também uma garantia da unidade política do Partido.
Esta concepção de centralismo democrático ganhou força estatutária no VI Congresso. Foi exercida com uma larga participação dos militantes, apesar das difíceis condições da clandestinidade, e ganhou plena aplicação após a conquista da liberdade, designadamente na preparação dos Congressos do Partido.
Identidade e natureza de classe
O VI Congresso sublinhou como elemento essencial da identidade do PCP a sua natureza de classe, afirmada no Programa e nos Estatutos como partido da classe operária.
Continuamos definindo a identidade do Partido como partido da classe operária e de todos os trabalhadores. Isso não significa que tenhamos um partido imóvel, cristalizado nas suas concepções políticas, na sua ideologia, nas suas soluções orgânicas. Podemos ver aspectos da identidade do Partido que ainda hoje confirmamos de forma criativa, renovadora.
O papel da classe operária como vanguarda da luta revolucionária, compreende, em regra, a necessidade de defender os interesses das outras classes suas aliadas, numa fase determinada da vida social.
Naturalmente, que há por vezes sérias contradições. Em muitas situações o pequeno patrão, em termos imediatos, explora mais um operário do que o grande patrão. Mas a nossa visão deve abranger todos os aspectos da arrumação das forças sociais e políticas.
A questão da identidade do Partido como partido da classe operária e de todos os trabalhadores, que se manifesta nas mais variadas formas, não tem a ver com aquilo a que se chama sectarismo proletário. Depois do 25 de Abril talvez não tenhamos olhado sempre com suficiente atenção, por exemplo, para os problemas dos quadros técnicos. Nos nossos Congressos após o 25 de Abril temos reconhecido também que, em relação aos intelectuais, o Partido não tem tido a iniciativa e o tratamento que corresponde à importância dessa camada social. Isto não resulta, entretanto, da natureza de classe do Partido.
Aparece agora uma nova teorização sobre o fim da classe operária, apresentando a natureza de classe do Partido como um arcaísmo. Há transformações sociais que se têm de ter em conta e que podem tender para uma diminuição relativa do peso da classe operária, mas também há uma nova composição da classe operária, num mundo em que as novas tecnologias alteram o sistema produtivo em aspectos importantes. Mas o valor social da classe operária, o seu papel na transformação revolucionária da sociedade, continua a justificar a natureza de classe do nosso Partido.
A definição do quadro político da luta
No VI Congresso teve expressão, com um alto nível de elaboração, um princípio fundamental do PCP decorrente da sua base ideológica marxista-leninista: definir a sua acção política a partir da análise concreta da situação em que ela decorre.
Salazar era a face visível, o orientador e o principal organizador do regime de opressão, repressão e exploração a que chamaram «Estado Novo». Mas o fascismo salazarista não se caracterizou somente pelos seus métodos de terror, repressão e cinismo, nem estes resultaram duma crueldade gratuita dos seus servidores. Tinha como objectivo principal permitir a aplicação de uma política que atingia cruelmente a esmagadora maioria do povo português, e só pelo terror podia ser imposta.
Seria deformar a natureza do regime considerá-lo como uma ditadura pessoal, sem ter em conta as forças sociais que dominavam o país, e ao serviço das quais actuava a ditadura. A este respeito, a análise do PCP distinguia-se da de outras forças políticas. Para o PCP, um aspecto essencial da política da ditadura, nomeadamente após a 2.ª Guerra Mundial, foi a rápida formação de grandes grupos monopolistas dominantes da economia nacional. Num país atrasado como era Portugal, isso não poderia ter acontecido apenas pela centralização e concentração de capitais decorrente da concorrência (como diz a lei do desenvolvimento do capitalismo). Só foi possível pela intervenção do Estado, na sua forma ditatorial, obrigando à concentração industrial e bancária, à formação do capital financeiro, ao domínio pelos grupos monopolistas dos sectores fundamentais da economia portuguesa. Foi assim que se constituíram grandes impérios económicos, dos Mellos da CUF, dos Espírito Santo da banca, dos Champalimaud dos cimentos, que alargaram o seu domínio aos mais variados sectores e empresas.
Os grupos monopolistas estavam intimamente associados ao capital estrangeiro e os proprietários dos latifúndios e os capitalistas na agricultura entrelaçavam-se e fundiam-se cada vez mais estreitamente com a banca e a indústria, tornando claro o fundamento do PCP quando definiu o regime fascista – uma ditadura terrorista dos monopolistas (associados ao imperialismo) e dos latifundiários.
Desta caracterização decorriam duas questões fundamentais: apontar o inimigo principal e em função disso definir as alianças possíveis e necessárias; e definir o carácter da revolução e as formas de luta a desenvolver para a realizar.
Objectivos de luta
Outro elemento basilar que definiu o perfil do PCP é a associação entre os objectivos políticos essenciais colocados numa determinada fase da sua vida e acção como Partido e os objectivos imediatos da luta e acção dos trabalhadores e do povo, de acordo com as suas necessidades e aspirações mais urgentes.
O Partido tem muito justamente considerado que o desenvolvimento da luta de massas no plano social e político não se pode alcançar só com objectivos a mais longo prazo, que é, entretanto, indispensável apontar para dar à luta uma perspectiva política correcta.
Será pelo desenvolvimento dessas acções com objectivos concretos e imediatos muito variados e através de muitas lutas parciais que se criarão as condições para passar à luta pelos objectivos programáticos fundamentais.
Pode, aliás, verificar-se que as posições assumidas pelo PCP e as lutas travadas com a sua intervenção se integram em grandes objectivos gerais unificadores, que marcam o seu perfil político: a luta pela liberdade e a democracia – eixo político central da luta do Partido ao longo de toda a sua existência; a luta em defesa dos interesses dos trabalhadores e do povo em geral pela melhoria das suas condições de vida; a luta pelo desenvolvimento do país, inseparável do progresso social; a luta em defesa da independência nacional e a solidariedade internacionalista para com as forças revolucionárias, os trabalhadores e os povos dos outros países.
Estes objectivos inseriram-se no património político do PCP como valores do seus Programa, tanto para a luta contra o fascismo e pela democracia, como também para o regime democrático e para a sociedade socialista e comunista que o PCP, como seu último objectivo, sempre teve no horizonte do Portugal futuro.
O Programa para a Revolução Democrática e Nacional, aprovado no VI Congresso, partindo de uma profunda análise das realidades portuguesas, das suas características económicas, sociais e políticas, da influência dos factores externos, demonstrou que não bastava derrubar o governo fascista e instaurar as liberdades para que a democracia portuguesa se tornasse viável. Tendo em conta a natureza do regime fascista, o PCP indicou ser indispensável liquidar não apenas o poder político mas também o poder económico dos monopólios e latifundiários, pôr fim não apenas às guerras coloniais mas também ao colonialismo, mudar não só o regime político mas também destruir as bases de apoio da reacção e do fascismo.
Perspectiva revolucionária
Apresentando a perspectiva do levantamento nacional ao povo português, o PCP indicou também o conteúdo das medidas a tomar no regime democrático para a realização de uma real revolução democrática e nacional. Muitos dos grandes objectivos do Programa do VI Congresso tornaram-se bandeiras da luta popular, em vitoriosas jornadas da Revolução de Abril. Uma revolução não se realiza com régua e esquadro. A Revolução de Abril teve o seu curso próprio, resultante das forças que nela intervieram e das condições da sua realização e, inevitavelmente, desenvolvimentos imprevistos e imprevisíveis. Um Programa de Partido não é um livro de receitas pré-fabricadas. É um guia para a acção. E, sem dúvida alguma, o Programa do PCP mostrou corresponder, nos seus aspectos fundamentais, às aspirações e à vontade das grandes massas populares e de numerosos sectores da população portuguesa e às necessidades objectivas de desenvolvimento e progresso social do país.
O projecto de sociedade socialista
Este é o tema em que as perspectivas apontadas no VI Congresso se revelaram mais desactualizadas. Durante muito tempo o nosso projecto fundamentava-se fundamentalmente nos textos em que Marx, Engels e Lénine definiam a sociedade socialista, e nas primeiras realizações da URSS. Não tínhamos então uma análise própria suficientemente aprofundada. Foi o que fizemos, nomeadamente no XIII e XIV Congressos, num processo de reflexão colectiva que é necessário prosseguir, levando também em conta a análise e reflexões dos comunistas e revolucionários de outros países.
Ao contrário de outros partidos comunistas que claudicaram, o PCP continua considerando que o socialismo, enriquecido com as experiências hoje disponíveis, é uma exigência que a História coloca como necessária para o povo português e para toda a humanidade.
O internacionalismo
A base de classe do nosso internacionalismo é a solidariedade dos trabalhadores de todo o mundo, em função dos seus interesses comuns e da luta comum pela libertação da humanidade de todas as formas de opressão e exploração. É assim que entendemos a bela exortação do Manifesto: «proletários de todo o mumdo, uni-vos!»
Durante a luta antifascista o PCP recebeu valiosas formas de solidariedade internacional, que demonstravam o prestígio ganho pela sua actividade e que aumemtou com a maior presença do Partido no plano internacional após a decisão do CC de colocar no estrangeiro, por motivos de segurança, Álvaro Cunhal e parte dos organismos de direcção do Partido.
Expressão do nosso internacionalismo são também os fortes laços de solidariedade e cooperação que o PCP sempre manteve com os movimentos de libertação das colónias portuguesas, considerando-os aliados na luta do povo português contra a ditadura fascista. Já no V Congresso (1957) o Partido apresentara como um dos seus objectivos de luta o reconhecimento do direito desses povos à independência. Essa posição encontrou sempre formas práticas de expressão.
O PCP mantém relações de solidariedade com partidos e forças diversas, mesmo tendo com alguns divergências de opinião quanto à avaliação dos acontecimento e às perspectivas para o futuro. Damos prioridade, na nossa avaliação, ao papel concreto que essas forças desempenham no seu país e no plano internacional.
A concepção de internacionalismo elaborada na nossa prática política inclui a autonomia e independência da nossa actividade, pela qual respondemos em primeiro lugar perante o povo português. E consideramos também que a melhor forma de um partido comunista dar expressão prática ao seu internacionalismo é desenvolver a luta revolucionária no seu próprio país. Estas posições tiveram clara expressão nas intervenções do Partido nas iniciativas do movimento comunista internacional na época em que se realizou o VI Congresso e reforçaram-se com o avanço do processo revolucionário em Portugal.
Uma contribuição decisiva
Falando do VI Congresso e do papel que a sua realização e a sua preparação tiveram na elevação do nível político e ideológico do Partido, não seria justo deixar de referir a contribuição decisiva, de valor inestimável, que a esse trabalho deu o camarada Álvaro Cunhal.
Não praticamos no PCP o culto da personalidade. Nem nunca praticámos. Mas também não somos igualitaristas e reconhecemos o papel desempenhado por certas personalidades no decurso da História, quando a sua acção se integra na acção das massas que fazem a História.
No quadro do trabalho colectivo, a que sempre prestou a maior atenção, a vida e a obra do camarada Álvaro Cunhal constituem um património que O Militante não deixará de valorizar.
«O Militante» – N.º 278 Setembro/ Outubro 2005