O lixo e a reforma administrativa de Lisboa – um debate necessário


Artigo de opinião no jornal «Público» de João Ferreira, Vereador do PCP na CML, 25/01/2025

O lixo e a reforma administrativa de Lisboa – um debate necessário
A repartição de competências entre o município e as freguesias de Lisboa não existe em nenhum dos outros 307 concelhos do país. Negociada entre PS e PSD, não melhorou a limpeza e a higiene urbana.

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A lei da reorganização administrativa de Lisboa (Lei 53/2012), negociada entre PS e PSD, é uma singularidade no plano nacional. Estabelece uma repartição de competências entre o município e as freguesias lisboetas que não existe em nenhum dos restantes 307 concelhos do país. A discussão sobre os impactos desta reforma administrativa na área da higiene e limpeza urbana é um debate em curso, útil e necessário.

A reforma administrativa repartiu competências que anteriormente eram da câmara municipal por 25 entidades – a câmara municipal e as 24 novas freguesias. Continuou a caber aos serviços camarários fazer a recolha do lixo, mas passou a caber às freguesias “a limpeza das vias e espaços públicos, sarjetas e sumidouros” da respetiva área territorial. Ou seja, criou-se uma necessidade de articulação entre entidades diferentes, até então inexistente. Os sinais de desarticulação tornam-se visíveis.

O quotidiano da cidade é hoje marcado pela acumulação de lixo na via pública. Um problema particularmente visível nas imediações de contentores, ecopontos e ecoílhas. Seja por insuficiente número e/ou capacidade destes, seja por insuficiente frequência da recolha, seja ainda por falta de sensibilização da população ou mesmo de civismo.

Frequentemente, o lixo não está corretamente depositado e confinado nos locais de recolha (responsabilidade da câmara), mas depositado e (por vezes) espalhado pela via pública (responsabilidade das juntas).
Reconhecendo esta realidade, já depois da reforma administrativa, arranjou-se um expediente: a câmara passou a pagar
( https://www.publico.pt/2024/10/16/local/noticia/camara-lisboa-pretende-atribuir-24- juntas-quatro-milhoes-euros-higiene-urbana-2108162) e a ceder meios materiais às juntas, através de contratos de delegação de competências, para estas recolherem o lixo depositado ou espalhado na via pública, junto aos pontos de recolha. A questão substantiva, porém, permanece: antes tudo dependia de uma única entidade, estivesse o lixo correta ou incorretamente depositado; agora é requerida a intervenção (desejavelmente articulada, o que frequentemente não acontece) de pelo menos duas entidades.

Menos limpeza, limpeza mais cara
Se a reforma administrativa não tornou melhor a limpeza e higiene urbana, pelo contrário, tornou-a, pelo menos, certamente mais cara.

A reforma administrativa eliminou óbvias economias de escala. Logo à partida, exigiu uma multiplicação de equipamentos – carrinhas, lavadoras, aspiradores, etc. –, para que cada uma das 24 freguesias pudesse dispor do material (próprio) adequado ao exercício das novas competências.

Quando algum deste equipamento se avaria, fica indisponível. Se houver disponibilidade imediata de tesouraria, o equipamento vai para arranjar (em contratação externa). A freguesia fica privada do mesmo até o arranjo ser efetuado.

Quando estas competências estavam na câmara, a utilização dos equipamentos não tinha de se confinar aos limites desta ou daquela freguesia. Quando um equipamento avariava, existia outro, de imediato disponível, que o substituía enquanto o outro estava a ser arranjado.

É fácil perceber as economias de escala que se geravam. Em termos globais, era possível gastar menos em compras e em manutenção e minimizar o impacto de indisponibilidades temporárias no serviço prestado.

Além disso, parte substancial da manutenção e da reparação dos equipamentos podia ser assegurada pelas oficinas municipais, reduzindo-se o recurso à contratação externa e, também por esta via, poupando-se e reduzindo-se o tempo de indisponibilidade.
O custo decorrente da quebra das economias de escala só parcialmente tem sido suportado pelo acréscimo dos orçamentos das freguesias. Este é reconhecidamente insuficiente face às novas competências que passaram a ter.

E os trabalhadores?
A reforma administrativa implicou a transferência de cerca de mil trabalhadores do município para as juntas de freguesia, na sua grande maioria cantoneiros de limpeza (mais de 800). O processo foi traumático para muitos deles, empurrados à força para os novos locais de trabalho, contrariados e desmotivados, diminuídos nos seus direitos (ao contrário das promessas então feitas), muitos deles fragilizados na sua posição perante as novas entidades patronais.

Por razões diferentes, a reforma viria a ser também traumática para os trabalhadores que ficaram no município. Vejamos porquê.

A higiene e limpeza urbana comporta tarefas diversas: da varredura à lavagem das ruas, passando pela recolha do lixo, entre outras. A segmentação de competências repartiu estas tarefas por trabalhadores diferentes. Se antes da reforma administrativa, um mesmo trabalhador podia exercer as várias tarefas em regime rotativo, após a mesma, os trabalhadores da câmara passaram a fazer unicamente a tarefa de recolha ou de apoio à remoção do lixo.

Sucede que estas tarefas têm graus de exigência física e de penosidade diversos. A recolha do lixo é, de longe, a mais penosa, insalubre e fisicamente desgastante das tarefas nesta área. Ora, se antes, uma semana na recolha do lixo podia ser seguida de uma semana na varredura e/ou na lavagem, antes do regresso à recolha, agora a recolha é tarefa única e sistemática. Resultado prático: uma muito elevada incidência de acidentes de trabalho e doenças profissionais entre os trabalhadores da câmara, elevado absentismo, elevado número de cantoneiros que se encontram a trabalhar diminuídos nas suas capacidades, alguns pressionados para o fazerem após acidentes de trabalho e antes de um completo restabelecimento.

Só quem desconhece a realidade atual dos locais de trabalho não estará em condições de testemunhar este profundo e negativo impacto da reforma administrativa.
Reforma e “descentralização” – os mesmos responsáveis: PS e PSD
A segmentação dos serviços de higiene e limpeza urbana, a desarticulação entre o município e as juntas e a amputação de meios da câmara são consequências da reforma administrativa impossíveis de ignorar.

Leia também: “A guerra do lixo e a reforma administrativa de Lisboa
( https://www.publico.pt/2025/01/14/opiniao/opiniao/guerra-lixo-reforma- administrativa-lisboa-2118671)”, por Pedro Cegonho

Os impactos da reforma administrativa justificam seguramente uma reparação corretora dos seus aspetos mais perniciosos. A CDU desde sempre se mostrou disponível para essa reflexão e intervenção. Mas mesmo perante os constrangimentos criados pela reforma administrativa, é possível e necessário fazer muito mais, muito melhor. Nada justifica ou desculpa a incapacidade e incompetência demonstradas ao longo dos últimos três anos e meio. Nesta como noutras frentes, Carlos Moedas não resolveu
( https://www.publico.pt/2024/09/22/local/noticia/joao-ferreira-acusa-moedas- incapacidade-ps-desistir-oposicao-lisboa-2105100) nenhum dos grandes problemas que Lisboa enfrenta. Pelo contrário, agravou-os a todos. Só não seria justo supor que todos os problemas começaram em 2021.