Rui Albuquerque, Ensino Superior em desordem

Ensino Superior em desordem


Rui Albuquerque
Lisboa, 17 de Abril de 2008.

No seu profundo compromisso com as políticas neoliberais, que são a da
hegemonia dos mercados capitalistas, os últimos governos não têm feito
de conta que mudam alguma coisa para ficar tudo na mesma. Legislam hoje
a tal velocidade que o mundo parece que acaba amanhã. E julgam muitas
vezes que instituições como as de ensino superior avalizam e suportam,
por algum científico preceito, as suas estratégias e leis. Pois, caso
contrário, dir-se-ía, do alto das suas cátedras surgiriam os senhores
professores de verbo plasmado nos mais nobres princípios, opinando
sobre a reforma aqui, denunciando a má decisão estratégica acoli ou
aconselhando a correcção do n-ésimo decreto-lei acolá. Às vezes os
governos julgam só que os outros julgam que isto é assim e que, não se
vendo essa contradição com o `pensamento’, está assegurada e bem
suportada a sua `acção’. Que bem soez tem sido para a grande maioria!

Tentam, sem conseguirem, submergir com eles as escolas nas suas
submissas ilusões sobre a economia de mercado. A este apelo surdo
assiste-se, tanto nas ciências humanas e sociais, como nas ciências
ditas exactas. Mas não são os aspectos gerais destes (des)governos que
nos trazem.

Detenhamo-nos sobre a situação concreta do próprio Ensino Superior. É a
compreensão do estado a que chegou um qualquer dos sectores
fundamentais da sociedade como este, que nos levará à discussão sobre
sob que outra forma de existência nos devemos organizar.

No plano da ligação ao ensino, função básica e primordial do ES,
verifica-se que o sistema está em rotura. Bem pode a propaganda oficial
congratular-se com os 6000 novos ingressos a mais comparados com o ano
anterior. A inversão da queda está por justificar, já que o logro
criado pelo Processo de Bolonha e pela mudança tida como positiva fez
com que viessem mais estudantes: porém fazendo plano de estudos para
três anos e não para 4 ou 5.

Portugal distanciou-se fortemente dos países da OCDE. Do recente relatório apresentado em Lisboa, o Gabinete do Ministro destacou a seguinte
análise referente a Portugal: «Vol. 1, pgs. 153, 154 e 155: Portugal é
identificado como um dos países (juntamente com a República Checa,
Hungria, Polónia, Suécia e Reino Unido) onde a despesa por aluno
diminuiu entre 1995 e 2004. Contudo, é também referido que Portugal foi
capaz de não deteriorar significativamente os recursos disponibilizados
às instituições, apesar da expansão do sistema, devido ao aumento do
financiamento privado e das famílias [o qual aumentou de 4% para 14%, entre 1995 e 2004 (vol. 1., pg. 36)]». Claro
que as famílias serão ainda mais capazes do mesmo de 2005 a 2014, e por
aí adiante…

O capitalismo em países como Portugal afasta os jovens do ensino e da
ciência. Estamos em 4º lugar a contar do fim na lista da OCDE em
percentagem do financiamento do ES afecta a Acção Social.

Os estudantes não aguentam mais os custos brutais do ES. As propinas
afastam muitos e muitos jovens do seu direito ao ensino e do direito de
todos a fazer andar um país para a frente. Os governos de direita
calam-se, recusam a realidade e lançam a destruturação dos seus Estados
proposta pelos países ricos. A OCDE, por exemplo, faz vivas à
privatização do ensino à moda de Sócrates-Gago.

Aumenta por outro lado o desemprego entre os licenciados, efeito da
crise social que o país enfrenta e da estrutura da política de direita
que há muito se arrasta. Crescer e estudar assim não é possível, numa
sociedade cada vez mais desigual, sem trabalho e sem sentido, amarrada
pelas doutrinas dominantes do individualismo, do preconceito contra o
trabalho, da desvalorização/privatização das funções públicas e logo
intelectuais, como sejam professores, médicos, enfermeiros, artistas,
profissões ligadas às letras e até `liberais’. A desestruturação do
Estado Social traz a desestabilização da organização do trabalho, da
produção, da economia, da vida colectiva. "Menos Estado" funciona em
favor da classe burguesa.

Nas escolas superiores, o Processo de Bolonha não consegue impôr-se
como «novo paradigma de ensino», invento ou advento de uma nova era, à
boleia da construção europeia. Graça de Carvalho e Mariano Gago
conluiaram(-se) num mesmo processo alterações administrativas e
pedagógicas, tudo para parecer mais drástica e convincente a mudança.

Julgaram que os alunos queriam aumentar a sua autonomia a expensas da
ligação aos docentes nos trabalhos e no estudo. O que impuseram foi a
diminuição dos horários, para libertar serviço docente, e a
desqualificação do ensino em geral. Puseram os estudantes a pagar mais
por menos ensino. Despromoveu-se o grau de licenciado. Os programas
aligeiraram-se com reflexos inevitáveis e graves, em particular, nos
segundos e terceiros ciclos em breve.

A formação até doutoramento poderá vir a ser, em muitas áreas, o que
era quando havia licenciaturas de 5 e 6 anos. Mas as propinas
progressivas fazendo um filtro "de excelência e rigor". Induzindo nova
elitização, não tarda que voltemos ao "país de doutores".

O Ministério de Mariano Gago MCTES tem agora uma comissão para avaliar
e acentuar o Processo de Bolonha nas escolas: são mais excelências que
procuram, como "inglês" ou "empreendedorismo" em troca de conteúdos
muito sérios que se davam antes. Necessário é descaracterizar a
universidade pública e portuguesa, ao serviço do país. A senda da
federalização política dos ensinos europeus tem os seus responsáveis.
Mas, como é costume, quando os efeitos se fazem sentir já eles deixaram
o poleiro…

No plano das instituições aí vimos deitar por terra, com este governo
PS, o modelo mais democrático saído das leis de Autonomia
Universitária, de 1988, e de Autonomia do Ensino Politécnico, de 1990.
O RJIES já começou a desfigurar a gestão democrática. Preconiza um
modelo favorável à privatização. Impõe um novo alheado dos estudantes e
seus problemas, essencialmente elitista, ao serviço do mercado e das
empresas, matando as ideias livres portadoras ou indutoras do progresso
científico e cultural. Quer pôr as universidades a dar lucro ou mesmo
levá-las para patamares de despesa em que o mecenato poderá bem tomar
conta delas, mesmo ao abrigo de financiamento estatal, em regime tipo
empresarial, enfeudado, e sempre a servir o ensino dos ricos, contra o
ensino para todos.

Os objectivos do RJIES são também o de destruir as universidades e
politécnicos que se rejem pelos objectivos de progresso social ou de
desenvolvimento regional que servem. Levar as universidades do interior
e os politécnicos para a formação meramente técnica, é o objectivo
deste governo que já afirmou explicitamente querer acentuar o sistema
binário.

Mas também aqui o governo tem levado com o repúdio e lutas de docentes
e estudantes das instituições públicas, que se recusaram a entregar as
universidades às fundações e a aplicar os mais restritivos impedimentos
que o RJIES permitia de participação democrática a estudantes e
funcionários não docentes. O Governo e o Presidente da República foram
surdos para o abaixo-assinado dos 1556 professores do ES que
contestaram o RJIES. Estes professores expressaram «com toda a força»
uma série de princípios democráticos insubmissos à lei.

O RJIES aí está a fazer o seu papel destrutivo. Com a força de um
trovão, caíram ao mesmo tempo os 30 estatutos das universidades e
politécnicos, fez-se tábua rasa de uma experiência largamente positiva
que vinha desde o 25 de Abril: o ES Público. Para isso, culparam-no dos
males do subfinanciamento que PS e PSD fizeram. Exigiram-lhe as
prestações das "melhores" universidades do mundo ocidental e a cópia
das famigeradas "boas práticas", que na realidade nunca passam da
teoria. Não há vergonha para este PS ignorante e arrogante.

No plano da investigação científica temos o desastre que se hão-de
mostrar os acordos com as universidades americanas MIT, CM e Texas.
Para lá está a ser dirigido o financiamento dos cientistas portugueses.
Na verdade este governo não acredita em financiamento dos trabalhadores
científicos. Só em competição e retaliação nos sectores que não têm
interesse material directo. Assim se assiste à formação de painéis de
avaliação dominados por pragmáticos, largamente participados por amigos
americanos. Por exemplo, nas ciências exactas predomina a visão das
aplicações e não do seu estudo como disciplina. (Há-de ser o ensino
dessas grandes áreas em que davamos os primeiros passos numa escala
histórica e nacional, com todos os contratempos e problemas inerentes,
a perder e a ser de novo adiada…)

O MCTES exige cada vez mais rigor, resultados e avaliação aos docentes
e cada vez lhes dá piores condições. São de prever o agravamento das
condições de trabalho com uma muito próxima alteração do ECDU. Além dos
quadros nas universidade estarem em estagnação há anos, ameaça-se os
mais jovens com um futuro inimaginável de perda de direitos e de novas
formas de trabalho intelectual verdadeiramente esgotantes.