Manuel Gouveia
"O Governo está a impôr sacrifícios a todos os portugueses, para superar a crise e o deficit e reequilibrar a economia, enfrentando a resistência dos sectores detentores de privilégios."
Creio ser esta a síntese da campanha de promoção da actual política do Governo.
Cada frase, quase cada palavra, é uma falsidade. Este artigo pretende fazer essa demonstração.
I – "Enfrentando a resistência dos sectores detentores de privilégios"
Antes de tentarmos perceber se esta frase corresponde à realidade, impõe-se determinar quem são os detentores de privilégios em Portugal.
Vejamos a riqueza nacional e a sua distribuição. De acordo com o Banco de Portugal, apenas 35,9% do PIB é entregue ao conjunto dos assalariados em remuneração(1) , que representam a esmagadora maioria da população activa, cujo rendimento médio é inferior a 11.500 Euros anuais. Por contraponto, 50% do PIB é afecto à remuneração do capital, concentrado nas mãos de uma ínfima parcela da população.
Só este exemplo já deixa claro onde se podem encontrar os privilegiados: nos detentores do capital.
Mas vamos mais longe. Nos 36% que são entregues aos assalariados, existem seguramente diferenças. Há aqui privilegiados? É evidente que sim. Portugal pratica dos salários mais elevados da União Europeia no pagamento aos gestores do capital, aos quadros superiores da Administração Pública, aos eleitos políticos, aos jornalistas "de referência". Algumas dezenas de milhares de quadros assalariados, que no essencial asseguram a gestão dos grandes grupos económicos e financeiros e do aparelho de dominação político e cultural, são de facto privilegiados em relação aos restantes assalariados, recebendo entre 5 e 20 vezes o salário médio nacional.
No restante conjunto dos assalariados, que são a esmagadora maioria, encontramos situações muito diversas, onde os salários são por norma inferiores ao salário médio nacional, onde a tendência tem sido para a perda de poder de compra, mas onde existem sectores com remunerações superiores à média.
É só esta última realidade que o Governo finge ver. Mas antes de a tentarmos entender, vamos deixar já sublinhada a primeira conclusão: Os grandes privilegiados em Portugal são a Grande Burguesia, os detentores do Capital, um restrito número de famílias (2) . À sua sombra, e ao seu serviço, situa-se um segundo grupo de privilegiados, que de forma assalariada ou detendo partes residuais do capital, asseguram a gestão da máquina económica, política, cultural e ideológica da grande burguesia.(3)
Para esconder esta realidade, o Governo tenta apresentar como privilegiados a camada de assalariados com alguns direitos, e como privilégio, cada direito.
Esta "forma de ver" já deixa claro o objectivo do Governo: eliminar cada direito, impondo um progressivo nivelamento "por baixo" de salários e direitos. E isto não é mais que uma expressão da luta entre capital e trabalho que acompanha o capitalismo desde o seu surgimento.
Os direitos dos trabalhadores – também em Portugal – foram conquistados pela luta, e só pela luta. Ainda durante o fascismo se arrancaram importantes direitos como as 8 horas de trabalho. O 25 de Abril e a sua Constituição permitiram conquistar e consagrar enormes avanços. A contra-revolução, logo a partir do 1º Governo Constitucional, tem vindo a representar ondas sucessivas de ataques aos direitos dos trabalhadores.
Neste processo de avanços e recuos, naturalmente houve sectores de trabalhadores que conseguiram ir mais longe na conquista de direitos, ou resistir melhor à ofensiva para os destruir. Um exemplo são os sectores que conseguiram conquistar o direito à contratação colectiva e ainda o conseguem manter.
Estas diferenças são fruto de diferentes condições de luta nos diferentes sectores, mas também é fruto da táctica com que a grande burguesia e os seus governos foram obrigados a abordar esta ofensiva. Eles não atacaram, ao mesmo tempo, todos os trabalhadores e todos os direitos. Eles sabem que só dividindo os trabalhadores é possível derrotá-los. E assim, ao longo de 30 anos, atacaram primeiro um direito, ou uma camada, procurando afastar da luta, neutralizar ou mesmo ganhar o apoio dos restantes para essa batalha. Dado esse passo, outro ataque, tocando outra camada, mas o mesmo processo. Um exemplo que o ilustra, foi que sempre que se lançou os maiores ataques contra os direitos dos trabalhadores do privado, teve o Governo o cuidado de sublinhar "que a administração pública não é afectada". Para logo a seguir avançar sobre os direitos dos trabalhadores da Administração Pública e os "seus privilégios". Um processo que apenas se acelerou com a alteração na correlação de forças no plano internacional nos anos 90.
Nesta batalha, desde sempre os comunistas alertaram para o carácter global da ofensiva. Que se mantém.
A compreensão do carácter global deste processo é fundamental. A grande burguesia vai continuar a atacar todos e cada um dos direitos dos trabalhadores. Cada avanço nesta sua ofensiva representa uma acréscimo da riqueza nacional de que se apropria. Cada avanço representa ainda um novo patamar para lançar novos ataques. Pelo capitalista, o salário tende para o valor mínimo necessário à mera sobrevivência da força de trabalho.
À escala internacional, a luta do movimento operário e os avanços do socialismo, ao mesmo tempo que libertavam uma parte da humanidade da exploração capitalista, foram impondo regras à exploração capitalista que se mantinha na restante, ou seja, foram conquistando direitos. Tal processo assumiu maior significado nos países do Centro Imperialista, onde os superlucros da exploração colonial e neocolonial permitiu uma maior margem de manobra às burguesias nacionais. Com as derrotas do socialismo na década de 90, e o enfraquecimento do movimento operário e anti-imperialista, todos esses direitos ficaram sobre ataque.
Sublinhemos pois uma segunda conclusão: O conjunto dos assalariados que não se ocupam da gestão da máquina económica, política, cultural e ideológica da grande burguesia, o proletariado, está sob uma ofensiva global contra os seus direitos. A defesa de cada direito ainda não destruído interessa a todos os trabalhadores, e é o ponto de partida para a conquista de novos direitos pelos trabalhadores.
Terminemos agora este capítulo, recolocando a questão inicial, mas após as duas conclusões já tiradas: Está o Governo a enfrentar a resistência dos privilegiados?
Tem a Grande Burguesia resistido ao Governo? Ou antes esta classe se tem multiplicado em elogios à política do Governo e ao 1º Ministro?
Então quem resiste ao Governo? Quem eram os 100.000 que em 12 Outubro se manifestaram em Lisboa? E os que a 2 de Março inundaram Lisboa? Os sectores mais conscientes dos trabalhadores portugueses e do conjunto da população. Dos NÃO privilegiados!
II – "O Governo está a impor sacrifícios a todos os portugueses”
Comecemos pelo "todos os portugueses", e vamos a seguir tentar perceber se se pode falar de "sacrifícios" quando se fala da política do actual Governo.
Há uma realidade objectiva por detrás desta frase: a qualidade de vida da esmagadora maioria da população está a ser seriamente afectada. Mas o que ela pretende esconder é exactamente a diferença abissal entre "a esmagadora maioria" e "todos".
Vejamos alguns exemplos, entre muitos possíveis.
A inflação real tem sido sucessivamente maior que o valor dos aumentos salariais. Esta realidade significa duas coisas: que os trabalhadores têm que trabalhar cada vez mais horas para pagar os mesmos produtos, mas também que os produzem cada vez gerando maiores lucros. E ainda, que os ganhos de produtividade têm sido apropriados pelo patronato.
A banca tem registado valores recorde de lucros (mais 30%de lucros em 2006), a bolsa bate todos os recordes (34% aumento de capitalização bolsista, 30% de valorização do índice PSI 20, em 2006), as grandes empresas multiplicam lucros.
Todos os anos, fatias do património colectivo, empresas públicas ou propriedades públicas, são privatizadas, ou seja, transfere-se ou inicia-se o processo de transferência para a Grande Burguesia.
Os Micro, Pequenos e Médios Empresários vivem numa permanente dependência da banca, enfrentam crescentes dificuldades económicas, e sofrem um acelerado processo de proletarização.
Assim, também aqui se reflecte a realidade social anteriormente apontada: as consequências da política do Governo afectam todas as camadas, menos a Grande Burguesia (e os que se encontram ao seu directo serviço). Esta, não apenas vê os seus rendimentos crescerem incessantemente, como se apropria crescentemente do património colectivo.
E esta primeira conclusão vai-nos ajudar a perceber se podemos falar de "sacrifícios" impostos em nome do interesse nacional.
Numa situação de crise económica, as classes dominantes impõe às restantes as consequências dessa mesma crise. E então pode-se falar de sacrifícios, impostos pela minoria à maioria, mas sacrifícios.
E sendo certo que existem traços desta realidade na situação portuguesa, ela vai mais longe do que isso. Nenhuma crise económica dura 30 anos. E as políticas mantém-se inalteradas em Portugal há 30 anos. E a política dessas políticas é a da reconstrução do capitalismo monopolista em Portugal. Apesar de nenhum Governo se ter atrevido a dizer a verdade aos portugueses, esse foi o objectivo e o resultado de 30 anos de Governos PS, PSD e CDS, de governos contra-revolucionários.
E o cerne das políticas foi sempre a expropriação das amplas massas por parte das classes dominantes. Um processo que acontece não porque a economia o exige, mas porque as classes dominantes o podem fazer, e podendo-o fazer, fazem-no. O facto deste processo levar já 30 anos, e não estar ainda concluído, atesta o carácter profundamente democrático da Revolução de Abril, e profundamente anti-democrático da contra-revolução.
A demonstrar este facto está aí a política de saúde. De um serviço nacional de saúde extremamente avançado para o nível de desenvolvimento económico do país, construído pelo 25 Abril, vamos transitando para um serviço cada vez mais degradado, cada vez mais caro aos utentes, cada vez engolindo maiores fatias do Orçamento de Estado, cada vez mais privatizado e a gerar mais lucros aos capital privado.
Hoje, o capital privado reapropriou-se das empresas estratégicas, da banca, dos seguros, da energia, das auto-estradas, de parte dos transportes colectivos, da educação e da saúde, e prepara o assalto ao restante.
Não se pode assim falar em sacrifícios. Mas antes em exploração e expropriação. Do povo português por uma minoria de privilegiados.
Até porque é neste processo que vamos também encontrar as principais causas para a situação económica do país.
III – Está o Governo a agir devido à crise e ao déficit? E está a reequilibrar a economia?
A primeira questão que se coloca é: em que medida se pode falar de crise económica? E a segunda: o déficit das contas públicas (que é ao que se referem as classes dominantes quando falam de déficit) existe? E se existe, o que o cria?
A crise – ou estagnação – da economia portuguesa tem uma base material muito objectiva: o enfraquecimento do aparelho produtivo nacional.
Da agricultura às pescas, todo o sector primário da economia está quase demolido. Não porque os salários dos trabalhadores não sejam competitivos, não porque Portugal não disponha de vastas riquezas para serem exploradas e rentabilizadas, mas porque não se investiu no aumento de produtividade destes sectores, e se apostou numa liberalização que o colocou em concorrência directa com economias com grandes vantagens competitivas.
A indústria nacional seguiu o mesmo caminho. Uma excepção, e que perde peso, são as empresas subsidiárias das multinacionais, mas que como o recente exemplo da OPEL veio sublinhar, não representam um desenvolvimento sustentado do aparelho produtivo.
E se de facto encontramos – à dimensão da economia nacional – um sector terciário altamente desenvolvido, esse sector apoia-se não apenas em pés de barro, mas ainda num tronco de gelatina – os destruídos sectores produtivos da economia. E apesar do seu elevado grau de desenvolvimento comparado com os outros sectores da economia, a sua crescente dependência do capital financeiro estrangeiro, falta de capacidade de qualquer competitividade com os grandes grupos multinacionais, e papel dominante na economia nacional, apenas agrava a situação estrutural da economia portuguesa.
O déficit nas transações comerciais com o estrangeiro agiganta-se, e se não cresce mais é, de facto, pela restrição ao consumo da esmagadora maioria da população. Mas os problemas resolvem-se atacando as causas e não as consequências. Ao restringir-se o consumo da “esmagadora maioria da população”, criam-se novos problemas (enfraquecimento do mercado interno, perda de qualidade de vida, etc.), mas porque nada se faz para enfrentar as causas do crescimento deste deficit, este crescimento apenas se atenua pontualmente.
Em que medida as políticas do Governo contribuem para alterar este cenário de fundo? Em nenhum. O caminho seguido há 30 anos apenas tem um desfecho possível: Uma economia totalmente dependente do Grande Burguesia Europeia, onde algumas (poucas) famílias portuguesas vão conseguir encaixar-se numa segunda linha, graças à apropriação da riqueza colectiva do país. Um país de mão de obra barata e altamente explorada (4) .
Mas então, o déficit orçamental onde se encaixa? Ele consegue ser, simultaneamente, o resultado e um instrumento desta política.
O déficit orçamental é o resultado desta política por três caminhos essenciais: porque a estagnação económica tem consequências evidentes no déficit, porque o Estado transferiu fatias crescentes da riqueza nacional para a Grande Burguesia, à custa do Orçamento de Estado e porque o Estado se coloca como intermediário dos lucros privados. Quando se privatizam empresas estratégicas, a troco de um encaixe conjuntural, privatizam-se os seus lucros e capacidade de endividamento, lucros e capacidade de endividamento que propiciarão novos encaixes conjunturais para nova privatização. Quando se decide pagar uma renda aos privados pela construção de uma auto-estrada, em vez de a construir, está-se a agravar o déficit, e a pagar juros de agiota sobre o capital necessário. Quando se abandona a indústria farmacêutica aos privados, mas se é o consumidor central dos seus produtos, essa prática também traz um acréscimo de custos. Quando se cúmula de perdões e isenções fiscais a grande burguesia, e se pactua mesmo com a fraude fiscal que por norma exerce, está-se a atacar o Orçamento de Estado.
Mas o déficit orçamental é também, desde há anos, uns instrumento desta política. Um instrumento da sua propaganda. Sobrevalorizando a importância do déficit orçamental sobre outras realidades económicas, e apresentando-o como resultado do excesso de direitos dos portugueses, tem dado cobertura – cientifica, digamos – à mesma política que já vinha sendo praticada. Política essa que não resolve o "problema do déficit", e não podia resolver, porque pretende atacar as consequências e não as causas do problema, mas engrossa o processo de concentração da riqueza. Em nome do combate ao déficit, reduz as reformas, o subsídio de desemprego, e os salários dos trabalhadores da função pública. Em nome do combate ao déficit, aumenta-se os custos com a saúde e a educação, transfere-se património para a grande burguesia, aumenta-se os impostos directos e indirectos da tal "esmagadora maioria da população".(5)
Ou seja, a política do Governo não combate o “déficit”, nem sequer tem esse objectivo. Usa-o como instrumento para prosseguir e intensificar o processo de concentração capitalista, à custa da "esmagadora maioria da população". Pode, pontualmente, fazer reduzir o déficit, à custa de enormes "sacrifícios" da "esmagadora maioria da população". Mas só com mais "sacrifícios" ele não voltará a subir. Porque não se atacam as suas causas.
IV – Conclusão
Todo este texto – longo – tem de ter uma conclusão. Demonstrada a falsidade da frase com que o iniciámos, proponho uma outra síntese: Prosseguindo o processo de recuperação capitalista, o Governo está a conduzir à expropriação dos trabalhadores e da esmagadora maioria da população, aumentando os privilégios das classes dominantes, hipotecando a economia nacional, e enfrentando uma forte resistência dos sectores mais esclarecidos dos explorados.
O prosseguimento da actual política, implicará o crescimento das assimetrias sociais e das debilidades da economia nacional. E temos que ter consciência que o actual processo só poderá aprofundar-se com a progressiva destruição das liberdades do povo português e a intensificação da opressão e exploração de outros povos. Este é o futuro que Sócrates nos tem reservado.
Na barbárie capitalista, Portugal só tem um lugar para ocupar – onde Salazar se sentou: um regime autoritário, uma Grande Burguesia dominante, uma massa enorme de explorados, a guerra imperialista.
Na luta contra esta realidade constrói-se o FUTURO. É preciso resistir ainda mais. Aumentar a unidade de todo o proletariado, e deste com as restantes camadas cujos interesses se opõe à politica de recuperação monopolista. Acumular força. Até provocar uma ruptura democrática, que parta à expropriação dos expropriadores.
À política de direita, só o 25 de Abril construiu alternativas. E a maior das portas que Abril abriu é o único caminho para a construção de um Portugal Democrático, Independente e Próspero: O do Socialismo.
1. Ver Eugénio Rosa em http://www.lisboa.pcp.pt/images/EugenioRosa/2007/eugeniorosa2007_06.pdf
2. A título de exemplo, cabe aqui lembrar que as 10 famílias mais ricas tinham, em 2006, uma fortuna acumulada de 7552 milhões de Euros.
3. Esta realidade assimétrica, é igualmente reflectida no conjunto dos pensionistas e dos trabalhadores por conta própria.
4. E foi isto que assumiu Manuel Pinho na China, imediatamente criticado por dito a verdade que, na opinião da burguesia, é preciso esconder aos portugueses.
5. Este processo nem sequer é novo. A máquina de propaganda salazarista, usou-o desde o ínicio. E à sombra do “equlíbrio das contas públicas” deixou-nos um país na miséria e em guerra, enquanto engordou a grande burguesia.