A "obra" de Pinochet – O Outro 11 Setembro
Manuel Gouveia
(publicado em Jornal da Voz do Operário)
No momento em que escrevo este artigo, está a ser anunciado na televisão que Augusto Pinochet recebeu a extrema-unção. Um familiar aparece a dizer que "Pinochet só espera que a sua obra seja reconhecida pela história".
Não podia estar mais de acordo. A "obra" de Pinochet, que é a obra do grande capital chileno e do imperialismo norte-americano, não pode ser esquecida. Para mais num momento em que se procura reescrever a história do século XX, criminalizando os que nele lutaram pela liberdade e legitimando os assassinos e criminosos.
Golpe de Estado
O Chile vivia em 1973 sob o Governo de Salvador Allende, um socialista. O Governo da Unidade Popular, que reunia socialistas, comunistas e outros democratas, implementava uma política económica socialista, sufragada nas urnas, e enfrentava uma feroz resistência por parte da burguesia chilena. As sabotagens e os boicotes sucediam-se, com o patronato a sabotar as suas próprias empresas para criar dificuldades económicas ao país. Só que o apoio do proletariado (cuja percentagem da renda nacional crescera 9%) ao Governo mantinha-o com um apoio popular maioritário.
O Chile era uma democracia burguesa multipartidária. Mas tinha um Governo que governava para a maioria, e colocava em causa os previlégios da minoria. Tal bastou para que essa minoria abandonasse "a defesa da democracia" e utilizasse os instrumentos de que dispunha para recuperar o poder político, custasse o que custasse. Os EUA, cujo "direito" de colonizar o povo chileno estava igualmente a ser posto em causa pelo Governo democrático do Chile, também deixaram cair a máscara de defensores da democracia, e apoiaram activamente a conspiração.
O instrumento que ambos encontraram para servir os seus interesses foi Augusto Pinochet, nomeado pelo próprio Salvador Allende para a chefia das forças armadas. A 11 de Setembro de 1973 o palácio presidencial é bombardeado e Salvador Allende é morto. O exército abate-se sobre o povo chileno, totalmente desarmado, e milhares de dirigentes operários, de comunistas e socialistas são mortos. Muitos mais são presos e torturados.
Instala-se no Chile um Governo Fascista, apoiado na burguesia nacional e internacional. Augusto Pinochet começara a sua "obra": traindo o juramento de defesa da Constituição Chilena, traindo e assassinando o Homem a quem havia jurado fidelidade poucos meses antes, e banhando-se no sangue do seu próprio povo.
15 anos de Ditadura
Os 15 anos durante os quais Augusto Pinochet encabeçou formalmente o fascismo chileno foram um longo calvário para o povo chileno e um autêntico festim para a grande burguesia chilena e para as multinacionais made in USA.
A brutal repressão sobre o povo chileno assentou na prática sistemática da tortura, da prisão e dos desaparecimentos. A repressão incidiu essencialmente sobre a classe operária e os militantes de esquerda, mas chegou mesmo ao próprio exército onde foram assassinadas figuras menos acomodadas com os crimes que estavam a ser praticados.
O Chile torna-se o laboratório para as teses económicas ultra-liberais de Milton Freedman. A renda é novamente concentrada na grande burguesia e as multinacionais vêm crescer os seus lucros.
A "obra" de Pinochet prossegue. Uma maioria do seu povo afunda-se na miséria, e os que se revoltam contra essa miséria são torturados, violados, presos, assassinados.
9 anos de democracia "tutelada"
O desenvolvimento da luta popular – e a alteração da situação internacional – tornam cada vez mais díficil a manutenção do fascismo no Chile. Pinochet é forçado a organizar um plesbecito sobre a sua manutenção no poder – e perde.
O Chile regressa a uma democracia multipartidária, mas sob a tutela formal dos militares. Augusto Pinochet vai manter-se como Comandante das Forças Armadas, ao mesmo tempo que o poder político formal é escolhido através de eleições.
Esta situação, que se manterá por 9 anos, tem dois objectivos. A nível pessoal, o bando de criminosos fascistas procura impedir a sua própria punição judicial. Mas mais importante, a grande burguesia nacional e internacional continua a vê-los como o garante de que as urnas não falarão mais alto que os seus próprios interesses e previlégios.
O fim da impunidade
Nos últimos anos a democracia chilena libertou-se da tutela formal de Augusto Pinochet. E os criminosos começaram a ser julgados – ainda que muito lentamente. As revelações tem permitido conhecer melhor a "obra" de Pinochet.
A sua família acumulou uma colossal fortuna durante os 15 anos de fascismo. Parte dela resultado do dízimo alegremente pago por uma grande burguesia satisfeita e a engordar. Mas uma parte significativa resultado de práticas criminosas directas. Soube-se, por exemplo, que instalações do Exército Chileno foram utilizadas para a produção de Cocaina, e que o resultado da venda no mercado internacional desse produto foi desviado pelo próprio Pinochet. Numerosos fundos governamentais foram igualmente desviados pelo ditador e seus familiares.
Assim, as qualidades de ladrão e traficante de droga vêm somar-se a quem já ostentava as de traidor, assassino, violador, torturador, raptor de crianças e genocida.
Uma "obra" de facto impressionante.
Que os povos não podem esquecer. Nem podem esquecer quem a apoiou, legitimou e tornou possível: a grande burguesia.