As chaves
José Pessoa
(in Caderno Vermelho, Setembro 2006)
Sempre gostei de chaves. A capacidade de abrir o que alguém fechou confere-lhes, no meu imaginário, um carácter mágico. Como fotógrafo de obras de arte, passaram-me pelas mãos os mais variados molhos, capazes de abrir palácios e museus, abadias e conventos, ruínas e campos arqueológicos, dando-me a temporária soberania de abrir e fechar, de entrar, estar e sair, com a certeza de poder regressar. De noite e de dia lutei contra portas enormes que davam acesso a estreitos corredores e fiz ranger portas pequenas que desvendavam enormes espaços. Para meu privilégio, com forças diversas, com mais ou menos óleo, em suados verões ou gélidos invernos, tenho sido actor e espectador das chaves, fechaduras e portas que o tempo fez rodar para mim, dando-me acesso a trabalhar nos mais fantásticos locais que o meu povo criou, no território onde mora a minha cultura.
Nunca esqueci, jamais esquecerei, como poderia esquecer?, a mais bonita chave que até hoje fui obrigado a usar.
Decorria o ano de 1992, quando fui empurrado para o aeroporto, de urgência, para uma viagem relâmpago à Madeira, com a minha assistente Sofia e cento e vinte quilos de excesso de bagagem, (para além daqueles que naturalmente possuo), repartidos por malas, caixas e sacos difíceis de controlar, cheias de etiquetas avisadoras da fragilidade de câmaras, lâmpadas, vidros, tripés e tudo mais que faz a bateria da fotografia de grande formato. Que angústias, que cuidados me inspiram sempre os preciosos volumes quando desaparecem nas portas de embarque, e com que temores cheios de péssimos augúrios sofro nas chegadas, à boca das passadeiras, contando nervoso “um, dois, cinco, ainda faltam dois, até que finalmente aparece o último e intacto pacote. Crónicas são também as discussões com os polícias, que sempre querem que as minhas películas virgens passem pelos raios-x, o que jamais permitirei. Tirando estas agruras profissionais, confesso que gosto de viajar de avião, muito mais quando é de surpresa. Que bom o inesperado movimento de milhares de quilómetros, as necessidades institucionais que desbloqueiam regras e me poupam às maçadas burocráticas, a sensação de que sou necessário para além da rotina, no meu caso já muito pouco rotineira, a capacidade de corresponder à urgência e ao imediatismo que a minha profissão tantas vezes exige e que tão raramente se justifica.
Lá cheguei ao Funchal. Como de costume a travagem a fundo da aeronave, as palmas inconscientes dos passageiros quando ainda o desastre é bem possível, a cascata de luzes, cheiros e sons diferentes, na nocturna paisagem fantástica da cidade, a sensação de que a ilha goza de férias perpétuas onde o tempo escorre muito devagar. À saída o motorista fardado esperava-me, com letreiro entre mãos onde o meu nome aparecia estranho e parecia não me pertencer. Não me lembro da sua graça, que injustiça, mas vou chamar-lhe António, sem remorsos.
O Senhor António veio a revelar-se um precioso anjo da guarda desta estadia, simpático, atencioso e conversador pronto a responder às perguntas em que sou farto. Devia ter ele próprio, uma colecção inteira de anjos da guarda, pois conduzia a carrinha como um “desesperado”, desafiando as leis da gravidade e a teoria do campo no mais modesto percurso. Como sobrevivi intacto, não tenho razões de queixa…Era natural de Câmara de Lobos e o seu sotaque cerrado deixou-me frequentemente a falar com os meus botões.
Passaram-se vários dias de trabalho intenso no Museu local, desfile magnífico das preciosidades artísticas em que a Madeira é tão rica e, curiosamente, tão desconhecida dos “continentais”. A minha mesa de fotografia é o maior palco do mundo e constitui um espectáculo a que nunca me cansei de encenar e assistir, embevecido pela grandeza dos “actores”. Chegou enfim o dia, último da estadia, em que deveria cumprir uma missão especial, numa capela junto ao Estreito da Calheta, ao reencontro de um retábulo flamengo do séc. XVI, com uma “Adoração dos Magos” em belíssimas esculturas de Antuérpia, portas pintadas por dentro e por fora, tudo com a qualidade de uma grande oficina. Era com uma certa emoção que esperava revê-lo, pois muitos anos antes, quando dava os primeiros passos como fotógrafo especializado, tinha documentado em centenas de imagens o estado em que a peça tinha entrado no Instituto de Restauro, repintado e sujo, as formas entupidas, a composição alterada, as partes soltas e desconjuntadas. Mais algumas centenas de fotogramas registaram as fases intermédias de tratamento, em que fui testemunha do processo de levantamento dos repintes, permitindo o ressurgimento das policromias originais, (ou do compromisso possível), no seu esplendor e beleza, o que então constituía para mim uma experiência nova. Quanto tempo, não faço ideia, mas certamente mais de um ano até às fotografias finais de cada escultura e pedaço de arquitectura, que a pouco e pouco foram ocupando a primitiva posição dentro da caixa, guiadas por orifícios e marcas de origem, reunidas enfim no conjunto de novo coerente. Que beleza! Que aprendizagem!
Por razões que não quero aqui lembrar, todo esse meu trabalho estava indisponível e era necessário voltar a fotografar o geral do retábulo aberto. Tanto melhor, pensei então, voltarei a ver os meus “Reis Magos”. E numa cálida manhã madeirense rumei ao Estreito da Calheta, com a Sofia e os apetrechos necessários, guiados pelo “supersónico” Senhor António. Depois de cerca de uma hora de viagem (não existiam então os túneis que hoje fazem da ilha um verdadeiro queijo), e dado que percorríamos a costa sul a caminho do poente, virámos à esquerda, precipitando-nos por uma vereda, quiçá elevador, e aterrámos num conjunto de casas, tão perto do mar que os borrifos das ondas não precisam de vento para as atingir, como é vulgar na região. Um pequeno largo, a capela, um pequeno sino, o portal gótico, tudo rodeado por um muro baixo: eis o cenário do encontro que vos quero contar, que penso ter o dever de transmitir.
O Senhor António partiu à procura da mulher que guardava as chaves e nós aguardámos, preparados para descarregar o material. Enquanto os minutos se escoavam, aproveitei para ver o mar, admirar a ladeira tortuosa por onde tínhamos chegado e que teríamos de subir, espraiei o olhar pelas casas, procurando registar o lugar com a avidez própria de quem pensa jamais voltar. Vozes alteradas interromperam a minha divagação. Finalmente apareceu o motorista, muito irado e vociferando palavras que o sotaque e o pudor me impedem de transcrever. Que se passava? Lá fui decifrando o discurso alterado, que sempre acentua as particularidades regionais da língua, e percebi que a senhora vigilante do santuário nos negava a entrada. Imune ao poder da farda, insensível aos argumentos do conterrâneo, indiferente às ameaças de represálias do poder, negava-nos a entrada. Só abriria a porta se o proprietário lá fosse pessoalmente. Sosseguei o Senhor António, a Directora do Museu tinha tido a precaução de me munir com um cartão pessoal do Dr. R, autorizando-me a levar a cabo os meus trabalhos no local. Avistei então a sombra de um vulto negro que se silhuetava contra o muro branco da capela. Com uma palmada tranquilizadora no ombro do meu motorista aprestei-me a resolver o assunto pessoalmente, com a vã certeza que a larga experiência me conferia.
Tenho mesmo pena de não me lembrar do seu nome, espero que me perdoe Senhora Dona Maria, nome que lhe vou chamar, como um português instintivamente pensa em qualquer mulher ou mãe, mesmo que se chame Ana, Alexandra, Mariana ou qualquer outra doce palavra. À medida que me aproximava apercebi-me que a tarefa não seria tão simples como julgava. O vulto negro tinha a cabeça branca descoberta, olhos que me olhavam mas não me viam, passando por mim como se eu não existisse, perdidos num tempo que não era o meu. Parei na sua frente sem que nenhum músculo da suja cara se movesse.
*
Minha senhora, sou fulano de tal e venho de tal parte, trago aqui um cartão do Senhor Dr. R, dirigido a si, solicitando que me deixe entrar e me ajude no que for preciso, para eu poder fotografar o retábulo da “Adoração dos Reis Magos”. Aqui está.
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Que me importa, não sei ler!
Não foram as palavras, mas a frieza e a determinação com que foram ditas que me deixaram sem resposta imediata. Raciocinei a todo o vapor, e como não era ainda tempo de telemóveis, perguntei:
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Há aqui perto algum telefone, donde possamos contactar o Dr. R, para a senhora D. Maria conversar com ele pessoalmente?
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Não há e mesmo que houvesse eu só abro a porta se o Senhor Dr. R cá vier para mo pedir!
Ponto final, parágrafo. Concentrei os meus olhos nos seus e permaneci algum tempo, ganhando tempo, e comecei à procura de soluções desesperadas. Recordei-lhe que tinha vindo de tão longe, do outro lado do mar, só para fotografar o retábulo, voltar ao Funchal e encontrar o Dr. R, conseguir a sua disponibilidade para voltar comigo no próprio dia seria altamente improvável, o dia seguinte seria o do meu regresso ao continente, assim iria inviabilizar o meu trabalho. Mas os seus olhos cinzentos leitosos continuavam a não me ver. Voltei à carga, lembrando que o Governo Regional tinha colaborado, fornecendo-me o motorista e o transporte, que tudo tinha custado muito dinheiro, que toda a gente iria ficar zangada.
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Só abro a porta se o Senhor Dr. R cá vier para mo pedir!
Comecei a amaldiçoar-me por ter deixado esta tarefa para o último dia, mas não podia adivinhar o que se estava a passar, muito menos com a segurança do cartão de que tinha sido munido. Em verdadeiro estado de desespero, entendi recorrer à mãe cultural de todos nós.
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Mora aqui perto algum senhor padre com quem eu possa falar?
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E para que lhe serve o padre, a esse também não deixo entrar, quero lá saber do que lhe possa dizer! E já estou a perder tempo demais!
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Mas olhe para mim, acha que venho fazer algum mal, que venho roubar alguma coisa com carro e motorista do Estado, acha que eu não sou pessoa de confiança, olhe para os meus olhos, dê-me ao menos a oportunidade de me ver!
Esboçou o gesto de quem se ia retirar. Sustive-a com a mão no seu ombro e disse:
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Espere, tenho ainda algo para lhe dizer!
Percorri as rugas da sua cara, os trajes simples de negro carregado de muitos lutos e interroguei-me: Quem te fechou mulher, de tal maneira que não queres saber do Estado, nem da Igreja, nem mesmo do Senhor da terra, e que te tornou capaz de olhar sem ver outro ser humano? De repente um clarão de esperança invadiu-me: nas mãos cerradas viam-se as pontas metálicas do molho de chaves. Apesar das aparências a decisão definitiva não tinha sido previamente tomada, tudo dependia de mim. Que te pode abrir mulher, focar o teu olhar e pensamento, merecer de ti a entrada no paraíso? Que há de comum em nós que sirva de ponte?
A resposta, a chave, subiu-me aos lábios sorridentes e ouvi-me a mim próprio dizer:
*
Há muitos anos que tem a chave da capela?
*
Há mais do que me lembro! – julguei então vislumbrar uma centelha nas suas pupilas.
*
Lembra-se de que em 1971 o retábulo estava no continente para ser restaurado? Lembra-se da cor que tinha o vestido da Nossa Senhora, azul-escuro se não me engano, e de que voltou em branco e ouro?! Lembra-se do Baltazar, que já não parecia negro e voltou com a cor que lhe pertence?
Já não havia dúvida. Finalmente me via, olhos nos olhos, ainda indecisa.
– Eu estava lá. Colaborei nos trabalhos e aprendi a conhecer este retábulo peça a peça. Mesmo que não me abra a porta sou capaz de me lembrar dele pedacinho a pedacinho. Não gosta mais dele do que eu!
A última frase foi dita e sublinhada pelas minhas mãos que lhe ampararam os ombros, no toque gentil de reconhecimento de dois seres humanos que têm o mesmo amor. Seguiu-se um longo silêncio, que nos deixou voltar a ouvir o mar ecoando nas rochas. A pouco e pouco veio ao de cima a decisão, olhos nos olhos, mãos agitadas torcendo as chaves, preparando-as para a função que também lhes cabe, abrir o que foi fechado. Voltou-me as costas sem uma palavra e dirigiu-se à porta lateral da capela. Rodada a porta nos seus eixos, voltei-me para a minha assistente e para o motorista, fiz-lhes sinal de que podiam trazer o material.
Mergulhei na escuridão da capela, rapidamente desfeita pela D. Maria que abriu a porta grande de par em par. Jorrou a luz azul do Atlântico, fazendo brilhar pigmentos e ouro, quinhentos anos de esplendor, a promessa de futuro que sempre existe quando um grupo de seres humanos se juntam a adorar uma criança, qualquer criança, que é sempre um deus menino para alguém.
Passou por mim a D. Maria e depositou as chaves nas minhas mãos:
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Quando acabar mande chamar por mim.
Quando acabei mandei-a chamar. Com as duas mãos depositei nas suas as chaves, como se do reino fossem. Não lhe dei gorjeta, não lhe disse obrigado. Voltei para a carrinha, que já me esperava ronronado.
*
Que lhe disse para a convencer? – perguntou-me o motorista.
*
Sr. António – respondi cheio de um orgulho que ainda considero legítimo – o que um homem fecha na solidão, outro homem pode abrir com amor!
Aos meus netos,