André Levy
(in Caderno Vermelho 14, Setembro 2006)
No passado Dezembro, o Ministro do Interior da República Checa ordenou que a União da Juventude Comunista (KSM) renunciasse às suas propostas políticas, à sua identidade comunista e aos princípios do Marxismo-Leninismo. O governo Checo argumentou que os objectivos da actividade do KSM são do âmbito restrito dos partidos políticos, e portanto colidem com o seu estatuto de associação cívica. Contudo o KSM não difere a este respeito de outras organizações políticas de juventude, como os Jovens Conservadores ou os Jovens Social-democratas. Tratou-se claramente de um atentado à liberdade de associação, ataque com motivação política a uma ideologia em particular.
O alvo indirecto destas acções é o Partido Comunista da Boémia e Morávia (PCBM), que conta com mais de cem mil militantes e tem obtido significativas vitórias eleitorais: foi a terceira e segunda força mais votada nas eleições parlamentares de 2002 e nas europeias de 2004, respectivamente. A tentativa de calar os jovens comunistas foi apenas um episódio da campanha anticomunista na República Checa. A organização "humanitária" Pessoas em Necessidade lançou uma campanha anticomunista nas escolas primárias e secundárias públicas. Aprovou-se uma lei penal que criminaliza concordar com ou negar os chamados crimes do comunismo. Em Abril de 2005, os senadores Jaromir Stetina e Martin Mejstrikque apresentaram um projecto de lei intitulado "Vamos abolir os comunistas" que criminalizaria as ideias comunistas, o seu movimento e a própria palavra ‘comunismo’, projecto que chegou a ser aprovado no Senado, e deverá ainda ser discutido na Casa de Deputados. E em Abril deste ano o deputado e vice-presidente do PCBM, Jiri Dolejs, foi brutalmente espancado após ter saído do Parlamento. A violência política recebe aliás encorajamento pelo estado: o Ministro dos Negócios Estrangeiros apoiou uma campanha que produz t-shirts com o lema “Matar um comunista é fortalecer a paz”.
Os ataques ao movimento e ideologia comunistas não se restringem à República Checa. Na Estónia, Letónia, Lituânia, Roménia e Turquia os partidos comunistas são proibidos por lei ou enfrentam obstáculos insuperáveis à sua legalidade. Na Hungria, o uso de símbolos comunistas é proibido por lei. Sean Garland, presidente do Worker's Party da Irlanda, está em prisão domiciliária na Irlanda do Norte e sob ameaça de extradição para os EUA sem acusação formal. Mikolas Bourakiavitsius, presidente do Partido Comunista Lituano, e seu camarada Yiouozas Kouolelis passaram mais de 10 anos na prisão de Vilnius pelas suas convicções e actividades políticas. O dirigente comunista letão, Alfred Rubiks, esteve seis anos e meio encarcerado e ainda hoje está impedido por lei de exercer cargos políticos no seu país. “Após tudo o que estas populações foram submetidas sob o comunismo, se fosse cidadão destes países, também eu exigiria a ilegalização dos partidos comunistas”, disse o socialista alemão Verheugen, ex-comissário europeu, que sustenta que a proibição de partidos comunistas está de acordo com os valores democráticos europeus.
O culminar dos ataques anticomunistas na Europa teve lugar em finais de Janeiro, quando a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa (PACE) discutiu e votou um proposta redigida pelo sueco Göran Lindblad do Partido Popular Europeu e adoptada por maioria alargada no Comité de Assuntos Políticos do PACE, chamada "Necessidade de condenar os crimes dos regimes comunistas totalitários". A proposta incluía três componentes: uma resolução, uma recomendação e uma nota explicativa. Apenas 150 dos 360 deputados do PACE tomaram parte da votação das propostas, que resultou na aprovação da resolução (com 42 votos contra e 12 abstenções), mas numa derrota da recomendação (com 50 votos contra e 11 abstenções) – este documento de carácter vinculativo exigia maioria de dois terços para ser adoptada, não deixando de ser significativo que a recomendação tenha sido aprovada por mais de metade dos deputados.
A resolução caracteriza os “regimes comunistas totalitários” por “violação massiva dos direitos humanos”, incluindo “execuções colectivas, morte em campos de concentração, fome, deportações, tortura, trabalho escravo e outras formas de terror físico em massa”. O responsável pelos alegados crimes é a própria “teoria da luta de classes e o princípio da ditadura do proletariado” que “legitimou a eliminação” dos inimigos do regime. Isto é, mais que condenar regimes entretanto desmantelados, a resolução criminaliza a própria ideologia comunista. “Se falharmos [na condenação do crimes do comunismo totalitário] uma nostalgia ilusória pode instalar-se nas mentes das jovens gerações como uma alternativa à democracia liberal”, em particular nos jovens dos ex-países socialistas.
Anda um espectro pela Europa – “o conhecimento sobre os crimes do comunismo é pobre”, “ainda existem partidos comunistas legais e activos em alguns países”, e “ainda vive uma nostalgia pelo comunismo em alguns países” que “cria o perigo dos comunistas ganharem o poder”. Nas palavras de Gennady Zyuganov, secretário-geral do Partido Comunista da Federação Russa, “os autores do documento são conscientes da atracção e relevância do comunismo. É a sua vitalidade de poder que os assusta”. Zyuganov relembra, e menciono apenas exemplos europeus, que os partidos comunistas estão representados nos parlamentos de dez países europeus e no parlamento europeu; que um em cada seis eleitores europeus vota nos comunistas e seus aliados; que os comunistas está no governo na Moldávia, detêm 4 das 11 pastas ministeriais no Chipre, e fazem parte da Coligação Oliva que ganhou as recentes eleições Italianas. Consciente que não basta declarar o fim das ideologias, que há que travar a batalha das ideias, a educação das jovens gerações é central. Daí que a recomendação incluí-se a proposta de campanhas públicas e conferências internacionais para condenar os crimes cometidos pelos regimes comunistas, e um apelo aos países membros do Conselho da Europa que haviam estado sob tais regimes de constituírem comités de inquérito, com acesso completo aos arquivos dos partidos comunistas, de reverem os manuais escolares, e de estabelecerem um dia comemorativo, museus, e memoriais às vítimas.(1)
Sustentando todo o projecto está um monumental revisão histórica, fundamentada no trabalho isento de tais luminárias como Stéphane Courtois, autor do “Livro Negro do Comunismo”, de onde provêm algumas das contabilizações, incluindo a célebre cifra de cem milhões de vítimas do comunismo. Por exemplo, uma das fontes primárias da estimativa de onze milhões de mortos à fome na Ucrânia são alegações de fascistas e colaboradores nazis ucranianos, como Olexa Woropay, Walter Dushnyck e Nicolas Prychodko. Nas palavras de Mikis Theodorakis, compositor grego: “para distorcer [a história o PACE] coloca em pé de igualdade as vítimas e os agressores, os heróis e os criminosos, os libertadores e os conquistadores, os comunistas e os nazis”.
Outro historiador que colaborou com Lindblad é Toomas Hiio, membro da Fundação Estónia para a Investigação de Crimes contra a Humanidade e conselheiro do Presidente da Estónia. Vejam-se dois exemplos da isenção intelectual de Hiio. Um juíz federal dos EUA declarou Michael Gorshkov um criminoso de guerra “envolvido no assassinato em massa de pelo menos 3000 judeus durante a ocupação nazi na Europa de Leste, em particular no ghetto judeu de Sloutsk, na Bielorussia.” Foi-lhe retirada a nacionalidade dos EUA e deportado para a Estónia onde goza de impunidade. Hiio rejeita as acusações contra Gorshkov: “em cada comunidade podemos encontrar pessoas que odeiam outras pessoas”. Ele rejeita também as provas encontradas pela Fundação Wiesenthal contra o 36º batalhão policial estónio, montado pelos nazis, e acusado da matança de 2500 judeus na cidade bielorussa de Novogrudok: “Não temos a certeza que mataram judeus. Não existem factos, é apenas propaganda.” Contudo apesar da proposta de Lindblad admitir a falta de documentação para corroborar alguns dos crimes do comunismo (daí argumentar a necessidade de acesso sem restrições a arquivos históricos), tal não o impede de sumariamente condenar uma ideologia como fundamentalmente criminosa e terrorista.
Estes exemplos ilustram outra aspecto importante destes assaltos anticomunistas: vêm ostensivamente conjugados com uma equiparação ente os crimes do comunismo e os do fascismo – fazendo apelo à condenação profunda, generalizada e bem sustentada destes últimos – mas acompanhados por uma vaga de fundo de branqueamento dos crimes fascistas e abertura à ostentação de símbolos e ideias fascistas. Na Letónia, veteranos da Legião de Voluntários das SS nazis desfilam anualmente, desde da separação da Letónia da URSS em 1991. Na Estónia, veteranos da Waffen SS desfilaram em Tallinn, com o apoio da Câmara Municipal. Na Estónia e Lituânia, ex-colaboradores nazis têm agora os mesmos privilégios que os veteranos que lutaram contra a ocupação alemã. Propostas semelhantes foram sugeridas na Ucrânia e Itália. Em Janeiro de 2005, o governo Lituano juntamente com a embaixada dos EUA publicaram um livro, "História da Lituânia: o século XX", no qual o campo de Salaspils, onde os Nazis efectuaram experiências médicas com crianças e formam mortas 90,000 pessoas, é descrito apenas como um campo de trabalho correctivo; e a Waffen-SS surge como herói no combate contra a ocupação Soviética.
Ao assalto anticomunista e branqueamento do fascismo, os comunistas e outros democratas responderam em força, na defesa da liberdade de associação e da correcção histórica, reconhecendo que sem a intervenção e generosidade revolucionária de centenas de milhares de comunistas o nazismo não teria sido derrotado, e que a luta dos comunistas se tem pautado pela defesa da paz, direitos humanos e justiça social. A recomendação de Lindblad foi derrotada, mas o seu espírito deixou importantes marcas – veja-se o discurso de Ribeiro e Castro e Telmo Correia, ambos do CDS-PP, respectivamente no recente Congresso da Juventude Centrista e na Assembleia da República durante as comemorações do 25 de Abril este ano; ou a aprovação de uma declaração no Parlamento Croata em Junho, espelhando a do PACE. Daí ser importante manter-mo-nos vigilantes e solidários com forças comunistas e progressistas na Europa e no Mundo. Em virtude da solidariedade internacionalista e da sua própria luta, o governo Checo ainda não implementou a ilegalização da KSM, mudou a sua postura e reuniu-se com o KSM, tendo concedido o impacto que a campanha de solidariedade terá tido sobre a sua acção legal. A luta pelo reconhecimento da legitimidade e legalidade (e necessidade) dos comunistas prossegue e exige o nosso empenho.
1 Um monumento nesse espírito está planeado em Washington, D.C., em luto pelas “mais de 100 milhões de vítimas do comunismo” – www.victimsofcommunism.org.