Aurélio Santos, Democracia em Portugal – A contribuição comunista

Democracia em Portugal – A contribuição comunista

aurélio santos

Numa revoada sensacionalista que percorreu recentemente a comunicação social foi “noticiado” que o PCP “reconhece agora o valor intrínseco da democracia e da liberdade”, apresentando-se isso como (finalmente! “10 anos após a queda do muro de Berlim”…) “uma viragem na linha política do PCP”.
Só uma operação de manipulação informativa e/ou uma ignorância agravada da história do PCP (e da própria história contemporânea do País) pode explicar tal encenação. Mas merece – e justifica – que recordemos o significado e valorização que o PCP tem dado à democracia, não só com a sua luta como no seu programa, que contém o projecto de so-ciedade que propõe ao povo português.

Uma componente inseparável do património político e ideológico do PCP

Tanto em acção prática como na elaboração política, um dos traços identificativos do PCP tem sido a interligação entre a luta pela democracia e o objectivo de promover uma sociedade socialista em Portugal.

 
Essa interligação tinha já expressão politicamente elaborada no III e IV Congressos do PCP (1943 e 45). A conquista da democracia foi fundamento da política de ampla unidade nacional neles formulada e concretizada através do MUNAF (Movimento de Unidade Nacional Anti-Fascista). E o Conselho Nacional do MUNAF, do qual o PCP fazia parte, apontava como primeiro objectivo, após o derrubamento do fascismo, “instaurar um governo Nacional e Democrático que dê ao povo português a possibilidade de escolher, em eleições verdadeiramente livres, os seus governantes”.
 
O VI Congresso do PCP (1965), aprovando o Programa para a Revolução Democrática e Nacional, fundamentou e desenvolveu essa interligação, valorizando a conquista da liberdade e da democracia como “parte constitutiva da luta pelo socialismo” e referindo entre os seus objectivos “a criação de órgãos de poder que assegurem ao povo portu-guês a escolha dos governantes e a determinação da política nacional”, “uma organização democrática do Estado, com eleições por sufrágio directo, universal e secreto para todos os cidadãos”, “a instauração e garantia da liberdade sindical, de imprensa, de associação, de greve e de manifestação”, a “igualdade de direitos de todos os cidadãos” e “eleições livres para todos os órgãos de administração local”.
 
A valorização e a importância da democracia como componente inseparável do projecto político do PCP não se aferem apenas em documentos e formulações programá ticas. Mais do que isso: têm feito e fazem parte da sua actividade prática, consti-tuindo uma componente fundamental do seu património histórico e político.
 
Demonstra-o a sua luta contra a ditadura fascista, quando submetido a duríssimas condições de clandestinidade como alvo preferencial de repressão. Nessa luta o PCP deu uma contribuição fundamental para a profunda adesão das massas populares aos ideais democráticos. E também, o que não é menos importante, para a ligação directa que os trabalhadores e vastas camadas da população estabeleceram entre as suas principais reivindicações e a conquista e exercício da democracia.
 
A adesão de massas à luta pela democracia teve expressão concreta e determinante, com incidência histórica, no processo da revolução de Abril.
 
O conjunto de realizações da revolução de Abril, em larga medida coincidindo com objectivos definidos pelo PCP no seu programa, associou a conquista da liberdade a transformações profundas de carácter económico e social. O facto de tais transformações terem sido alcançadas apesar da ausência de um poder revolucionário, por uma poderosa dinâmica de massas em movimento, confirma que elas, longe de resultarem de uma atitude voluntarista, eram expressão democrática de exigências profundas do povo português e correspondiam a necessidades do desenvolvimento da sociedade.
Mérito do PCP no decorrer do processo revolucionário foi ter apresentado a esse grande movimento de massas a necessária tradução política, o que permitiu a institucionalização das reivindicações populares no regime criado com a revolução de Abril.
 
A contribuição do PCP para as transformações revolucionárias de Abril e para a construção do regime democrático constitui sem dúvida o momento mais alto e mais criativo dos 78 anos da sua história.
 
Apesar dos retrocessos impostos por mais de 23 anos de contra-revolução, os valores de Abril e muitas das suas realizações “projectam-se como realidades, necessidades objectivas, experiências e aspirações no futuro democrático de Portugal” (Programa do PCP “Para uma Democracia Avançada no Limiar do Século XXI” – XXII Congresso, 1988). Com esta avaliação o PCP confirma a importância que atribui às conquistas democráticas alcançadas com o exercício da liberdade pelo povo português.

A democracia é uma luta

A democracia, concebida como estrutura e forma institucionalizada de participação dos cidadãos, do povo, no exercício do poder e na definição da política e das medidas por ele tomadas, não é um modelo estático. O seu conceito e a sua aplicação têm variado ao longo da história. O seu exercício depende da correlação de forças na luta das classes sociais em presença e, ao mesmo tempo, condiciona as formas tomadas por essa luta, de acordo com o maior ou menor grau de liberdade que ela efectivamente possibilite. Quanto mais alargadas forem essas liberdades, maior é a possibilidade da luta de classes encontrar expressão e espaços adequados no quadro da democracia.

 
Muito antes dos gregos, que lhe fixaram um nome a apostar eternizar-se na história, o desejo de democracia existiu na alma humana a atravessar continentes com um combate tenaz: o da ambição de embater contra a desigualdade – e de vencê-la.
 
Vinda de longe, esta luta atingiu de modo diferente o século em que temos o privilégio de viver, porque mais acelerada e despontando em incontidas fronteiras que derrubaram muralhas impostas pela organização da sociedade humana. É este século que se pode orgulhar de ter revolucionado um mundo que se aventurou na experiência do socialismo, tentando o resgate da exploração humana pelos únicos que poderiam empreendê-la: os próprios homens. O século XX, ainda que por correntes tortuosas, pôs também um fim civilizacional ao iníquo sistema de escravização, espoliação e privatização de direitos que foi o colonialismo, dando mais um passo para a universaliza- ção da democracia.
 
Mas não nos iludamos, porque grandes barreiras conti-nuam a cercar, a diminuir, até a diluir por formas publicitá-rias a democracia para a esvaziar do seu conteúdo. Hoje, de tão estragada, instrumentalizada e abusada, a democracia parece andar na boca de todos sem muitas vezes estar no seu lugar certo. E no entanto é um som há tanto tempo gritado que muitos de nós nem nos lembramos dos passos que ao longo da história foi necessário dar, dos perigos que foi necessário enfrentar para lutar e obter esta herança longínqua.
 
Com todo o direito, reivindicamos a modernidade dessa herança da democracia. Daquela que queremos avançada, a espreitar sempre teimosamente o limiar do futuro.
 
Os comunistas não contrapõem a democracia formal à democracia real. Mas denunciam com vigor as medidas tomadas pelas classes dominantes instaladas no poder que esvaziam liberdades e direitos democráticos formalmente reconhecidos, reduzindo-os a pura letra de forma.
 
Após a instauração do regime democrático e da sua consagração na Constituição de 1976, as classes que ascenderam ao poder, por via eleitoral, têm procurado (designadamente através de
uma contra-revolução legislativa) fazer recuar espaços e fronteiras de exercício da democracia. A ofensiva virou-se primordialmente contra as conquistas económicas e sociais, lançou sucessivos ataques aos direitos e garantias dos trabalhadores no plano laboral e tem procurado também deformar e perverter no plano político o conteúdo democrático do regime constitucional. A democracia continua sendo um terreno de luta na vida política portuguesa. Também nesta batalha a contribuição comunista defende a democracia, as suas realizações, as suas perspectivas, o seu futuro.

Uma democracia para o nosso tempo

Em Portugal a questão que actualmente se coloca não é “repetir” a revolução de Abril. Há que ter em conta as experiências políticas entretanto registadas e os seus ensinamentos, as mudanças na situação nacional e internacional, as transformações operadas na sociedade portuguesa e no seu enquadramento mundial.

 
Na análise do PCP, uma política que se proponha dar resposta real aos problemas da sociedade portuguesa terá de ter como base o fortalecimento da democracia política, a ampliação das formas de democracia participativa e o aprofundamento da democracia nas suas vertentes económicas, sociais e culturais. Tanto no que se refere à classe operária, aos agricultores, aos intelectuais ou outras camadas sociais, como quanto às aspirações da juventude, às dificuldades da economia ou aos problemas da sociedade, surge sempre a mesma exigência: mais justiça, mais democracia, mais possibilidades de participação nas decisões e responsabilidades. Avançando para uma acção eficaz por objectivos imediatos – enquadramos essa luta nas perspectivas de futuro, tendo em conta o projecto de sociedade que propomos ao povo português. Esse é o conteúdo profundo do actual programa do PCP, aprovado no XII Congresso (1988) e actualizado no XIV Congresso (1994).
 
Nesse programa o PCP avança uma concepção de democracia com base na experiência histórica hoje disponível, quer no plano nacional como internacional. “No ideal e projecto dos comunistas a democracia tem quatro vertentes inseparáveis – política, económica, social e cultural” – sublinha-se no programa.
 
E quando a comunicação social parece só agora descobrir que o PCP reconhece o valor intrínseco da democracia portuguesa, vale a pena recordar esta passagem do programa: “A democracia política, embora intimamente articulada com a democracia económica, social e cultural, possui um valor intrínseco, pelo que é necessário salvaguardá-la e assegurá-la como elemento integrante e inalienável da socie dade portuguesa”.
 
Para nós, comunistas, a democracia e o desenvolvimento do País exigem tanto o reconhecimento formal como a garantia efectiva do pleno exercício das liberdades e a plena realização dos direitos políticos e sociais dos cidadãos. Mas exigem também que as alavancas fundamentais da vida económica assegurem, sob controlo democrático, os interesses do País e dos cidadãos, para aproveitamento dos nossos recursos naturais e humanos, tendo em conta o quadro actual da divisão internacional do trabalho e dos processos de cooperação económica.

Democracia e socialismo – uma exigência de modernidade

Nós, comunistas, consideramos o socialismo como condição necessária para uma plena efectivação da democracia.

 
Sob o regime capitalista a liberdade e a democracia são a cada passo limitadas e postas em causa pela desigualda de social e a prioridade do lucro. No quadro do capitalismo, muitos dos mais graves problemas do mundo de hoje não têm solução. Confirma-o o perigoso agravamento de situações em consequência da ofensiva em curso contra as conquistas sociais e democráticas do nosso século, desencadeada na sequência das novas correlações de forças resultantes das derrotas do socialismo na URSS e na Europa.
 
A fonte da crise que a nossa civilização atravessa não está nos problemas que hoje se põem à humanidade. Está nas respostas que lhes dá o capital. Não é uma fatalidade que o futuro tenha que ser assim. O que se exige é um novo tipo de desenvolvimento, novas relações sociais, novas formas de relacionamento internacional.
 
Não é por acaso que no nosso tempo, de forma crescente e abarcando não só classes trabalhadoras, aparecem inter ligadas muitas e importantes reivindicações que têm simulta-neamente um conteúdo democrático e uma natureza socialista.
 
Sem mudanças democráticas profundas na propriedade e gestão dos sectores chave da produção e distribuição, a democracia não fica assegurada nem realizada plenamente e a saída não está numa competição eleitoral cujo único objectivo seja não mudar nada de fundamental à ordem capitalista das coisas. É preciso mudar e a contribuição comunista é essencial para essa mudança.
 
O ideal comunista é um projecto de emancipação que ganha nova e real modernidade nos nossos dias.
 
A contribuição que a luta pelo socialismo e o comunismo já deu à humanidade, mesmo com os erros e deformações que sofreu, ficará a marcar os avanços do nosso século. O projecto do socialismo, renovado e actualizado à luz das experiências hoje disponíveis, positivas e negativas, contém condições e elementos indispensáveis para a concretização de uma democracia capaz de responder às necessidades do nosso tempo. E falando de democracia e socialismo, temos autoridade para desmontar as campanhas que falsificam as nossas posições, pretendem impor a ideia de não sermos capazes de abordar os problemas da actualidade, estarmos em atraso ante a realidade contemporânea e nos aferrarmos dogmati-camente a visões ultrapassadas da natureza humana e da sociedade. Os que assim falam, não fazem mais que atribuir ao socialismo que propomos as taras que marcam hoje o sistema capitalista.

Uma força da democracia

No projecto de sociedade que o PCP apresenta a democracia é simultaneamente objectivo e via de avanço para o socialismo, sua condição e resultante.

 
Via: porque o aprofundamento e plena realização da democracia na vida política, económica, social e cultural, é caminho para a realização do socialismo.
 
Objectivo: porque com a democracia socialista o povo português terá condições para aceder a uma nova fase de desenvolvimento da sociedade.
 
Para nós, comunistas, a democracia faz parte do próprio conteúdo do socialismo como formação social na qual os trabalhadores, o povo, exerçam efectivamente o poder e determinem democraticamente as finalidades da produção, a distribuição dos meios disponíveis e a repartição do produto social.
 
Sabemos que são soluções difíceis as que apresentamos. Até porque requerem a participação activa de muita gente hoje profundamente desiludida e desanimada, praticamente desencorajada de uma actuação política convicta de uma possibilidade de mudança.
 
Mas essa atitude de conformismo pode equivaler a um não-vale-a-penismo, com claros perigos antidemocráticos.
 
A ameaça para a democracia não vem dos comunistas nem do seu partido. Não é novidade apanhar em flagrante delito histórico aqueles que mais a apregoam, com pequenas, médias e grandes chantagens a tentar contrariar um saudável e permanente necessário debate com os destinatários que verdadeiramente o merecem, isto é, todos os eleitores, mas não só: também todos os futuros eleitores, muitas vezes já antecipadamente desgostosos do que lhes exigem, por um lado, e negam por outro, como seu direito de cidadania.
 
E o que nos preocupa não é somente, e sobretudo, o grau de abstenção eleitoral: o abstencionismo de cidadania pode constituir o verdadeiro perigo, aquele que surge com o não exercício ou mesmo a desistência de direitos. E digam o que disserem em nosso desfavor, os comunistas gozam de uma vantagem: a de poderem confrontar a sua actividade com os seus ideais. E esses ideais têm um sinal de futuro: é que são por todos e para todos, usando todas as frentes de luta que façam avançar democracia.

«O Militante» – Nº 244 – Janeiro/Fevereiro 2000