A Constituição da sua origem aos dias de hoje
30 Março 2006
Constituição República Portuguesa – edição anotada – 2006
A Constituição
da sua origem aos dias de hoje.
As alterações e o que se mantém
A aprovação da Constituição da República em 2 de Abril de 1976 representou um marco de alcance histórico no processo da Revolução de 25 de Abril. Ao consagrar as grandes conquistas democráticas, a Constituição configurou um regime de amplas liberdades democráticas e um país de progresso social.
Ao longo dos trinta anos da sua vigência, a Constituição não permaneceu imutável. Correspondendo aos avanços da contra-revolução, foi sendo sucessivamente revista até chegar ao texto actual. Tais alterações, não obstante a existência de aperfeiçoamentos pontuais, constituíram no fundamental retrocessos em relação ao texto original, com reflexos concretos nos direitos e aspirações dos portugueses e no estado actual do país. Apesar disso, a Constituição mantém-se como um texto moderno e avançado na maioria dos seus aspectos, continuando a ser um obstáculo ao aprofundamento das políticas de direita e a um maior empobrecimento da democracia política, económica, social e cultural.
No texto que se segue faz-se uma descrição sintética dos principais retrocessos nas sucessivas revisões constitucionais, dos principais traços negativos que estão hoje no texto constitucional e do conjunto das normas progressistas que continuam a estar presentes na Constituição, embora aguardando muitas delas a concretização real há muito necessária.
Os principais retrocessos nas revisões constitucionais
Em sete processos de revisão constitucional negociados entre o PS e o PSD, geralmente com o apoio do CDS, ocorridos em 1982, 1989, 1992, 1997, 2001, 2004 e 2005, alguns aspectos fundamentais da Constituição da República aprovada em 1976 foram sendo eliminados ou descaracterizados.
Em matéria de organização do poder político, a revisão de 1982 extinguiu o Conselho da Revolução substituindo-o nas suas funções de controlo da constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional, cuja constituição emana de uma maioria parlamentar qualificada, e transferindo para o Governo as suas funções relativas às Forças Armadas. O Presidente da República viu as suas funções diminuídas com a transferência para o Governo de competências presidenciais em matéria de Forças Armadas (como a escolha das Chefias Militares), com a eliminação do princípio da responsabilidade política do Governo perante o Presidente da República e ainda com a limitação dos poderes presidenciais de demissão do Governo.
Ainda no que se refere ao sistema político, a revisão constitucional de 1989 reduziu o número de deputados à Assembleia da República de 250 para entre 230 e 235 (fixado na lei em 230), dando um golpe profundo na proporcionalidade do sistema eleitoral, e a revisão de 1997, a par da admissão de círculos uninominais, admitiu reduzir esse número até um mínimo de 180. A revisão de 1997 inviabilizou também na prática a criação de regiões administrativas e eliminou a obrigatoriedade da eleição directa das câmaras municipais.
A Constituição económica e social sofreu um gravíssimo retrocesso em 1989. Foram eliminados: o objectivo de assegurar a transição para o socialismo; o princípio da irreversibilidade das nacionalizações, concedendo ao Governo poderes para reprivatizar as empresas nacionalizadas e abrir a porta ao seu domínio pelo capital estrangeiro; a referência constitucional à reforma agrária; a socialização dos meios de produção; o princípio da gratuitidade do SNS, com a adopção da fórmula «tendencialmente gratuito». Em 1992, com o objectivo de permitir a ratificação do Tratado da União Europeia (sem referendo), foi eliminado o exclusivo de emissão de moeda por parte do Banco de Portugal.
A regulação democrática da comunicação social foi de retrocesso em retrocesso: em 1982 foram extintos os Conselhos de Informação nos órgãos de comunicação social do sector público. Em 1989 foi extinto o Conselho da Comunicação Social para dar lugar à Alta Autoridade para a Comunicação Social. Em 2004 foi extinta a Alta Autoridade para pôr no seu lugar uma Entidade Reguladora da Comunicação Social cujos membros são designados unicamente pelo PS e pelo PSD.
Em matéria de direitos, liberdades e garantias, a revisão de 2001 constituiu um grave retrocesso. As garantias constitucionais dos cidadãos portugueses no que diz respeito ao processo criminal foram preteridas a favor da jurisdição do Tribunal Penal Internacional e da cooperação judiciária estabelecida no âmbito da União Europeia. Foi abandonado o princípio de que em caso algum um cidadão português seria extraditado para outro país. Foi também eliminado o carácter absoluto da inviolabilidade do domicílio à noite.
Em matéria de defesa nacional, foi retirada na revisão de 1997 a obrigatoriedade da existência de um regime de Serviço Militar Obrigatório.
Em relação à democracia participativa, a revisão de 1989 empobreceu o texto constitucional ao alterar a referência às organizações populares de base territorial para comissões de moradores, ao mesmo tempo que retirava o conselho municipal do elenco dos órgãos do município.
Finalmente, na revisão de 2004, PSD, PS e CDS abdicaram do primado da Constituição da República Portuguesa sobre o Direito Comunitário.
Pontos negativos do actual texto constitucional
As modificações feitas em sucessivas revisões constitucionais, para além da retirada de importantes questões atrás referidas, traduzem-se na existência de preceitos negativos no texto actual da Constituição.
O artigo 7.o, relativo às relações internacionais, viu acrescentados em várias revisões constitucionais novos números que permitem hoje, por um lado, a transferência de poderes para as instituições da União Europeia em diversas áreas, incluindo política externa de segurança e defesa, e, por outro, a aceitação da jurisdição do Tribunal Penal Internacional, entretanto criado.
Na mesma altura introduziram-se também normas que permitem a extradição de portugueses (artigo 33.o, n.o 3), bem como a violação nocturna do domicílio.
De extrema gravidade é a norma introduzida no artigo 8.o, n.o 4, na 6.a revisão (2004), que pretende subordinar às normas europeias a legislação portuguesa, incluindo a própria Constituição. A norma foi introduzida a pensar especialmente na aprovação da impropriamente chamada constituição europeia, cujo processo estava então em franco desenvolvimento, e que alguns se preparam agora para recuperar, apesar de rejeitada pelos povos europeus.
No artigo 64.o (Saúde) destaca-se a introdução, em 1989 (2.a revisão), do carácter tendencial na gratuitidade do Serviço Nacional de Saúde, para permitir na época a introdução das taxas moderadoras. A evolução mais recente tem desmentido as solenes promessas dos deputados do PS e PSD que então aprovaram esta alteração de que o carácter tendencial seria no sentido de aproximação à gratuitidade. A prática tem sido afinal a contrária.
No plano do sistema político destaca-se pela negativa a possibilidade de redução por lei do número de deputados, o que se traduziria no aumento do peso dos dois maiores partidos e na diminuição ou eliminação dos restantes. Esta alteração conjuga-se aliás com a possibilidade de introdução de círculos uninominais (artigo 149.o), inscrita na Constituição na mesma altura, o que acentuaria a lógica de bipolarização artificial que já contamina em larga escala, mesmo sem essa alteração, o debate das eleições legislativas, procurando reduzir as opções de voto dos portugueses aos dois partidos, PS e PSD, que aprovaram estas alterações.
No caso do poder local, o texto constitucional não obriga hoje a que as câmaras municipais sejam eleitas directamente pelas populações (artigo 252.o), abrindo por isso a possibilidade de na lei eleitoral para as autarquias locais se instituírem sistemas de eleição indirecta visando a composição monocolor ou maioritariamente controlada dos executivos camarários, como aliás têm vindo a propor PS e PSD.
No que diz respeito à instituição das regiões administrativas, a Constituição passou, desde 1997, a impor a aprovação da sua concretização em referendo (artigo 256.o), com os resultados que se conhecem, passando a regionalização a ser, no texto constitucional, a única matéria que, apesar de prevista, está sempre condicionada pela realização de uma consulta referendária obrigatória.
Quanto à organização das Forças Armadas, a revisão constitucional de 1997 introduziu duas alterações de fundo. Em primeiro lugar, passou a ser incumbência das Forças Armadas satisfazer compromissos militares internacionais, o que veio permitir a integração em acções da NATO. Em segundo lugar, tornou facultativa a existência de serviço militar obrigatório, o que se traduziu na sua eliminação posterior na lei e na profissionalização total das Forças Armadas.
O texto progressista da Constituição
A Constituição permanece, apesar das alterações negativas entretanto introduzidas, um texto fundamental, de referência e com conteúdo progressista. Certamente por isso ela continua a ser atacada por muitos dos que defendem e aplicam as políticas que tanto têm penalizado o povo e o país. É que a Constituição da República Portuguesa mantêm-se como o garante de muitos direitos, constituindo por isso um sério obstáculo aos que os querem destruir, e conserva um programa de desenvolvimento e de democracia plena nas suas vertentes política, social, económica e cultural que muito incomoda os que defendem um caminho contrário.
A Constituição estipula em relação às relações internacionais (artigo 7.o) que Portugal se reja, entre outros, pelos princípios da igualdade entre os Estados, da solução pacífica dos conflitos e da não ingerência nos assuntos internos de outros Estados. Diz ainda que Portugal preconiza a abolição do imperialismo, o desarmamento geral e a dissolução dos blocos político-militares. Ainda segundo a Constituição, Portugal reconhece o direito à autodeterminação e independência dos povos e até o direito de insurreição contra todas as formas de opressão.
Entre as várias tarefas fundamentais do Estado consta, por exemplo, a de promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses.
No plano dos direitos, liberdades e garantias, a Constituição, para além de perfilhar a Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 16.o), estabelece o princípio da igualdade (artigo 13.o), assegura a todos o acesso ao direito e à justiça (artigo 20.o), garante o direito à vida (artigo 24.o), à liberdade e à segurança, proibindo as penas de carácter perpétuo. Garante ainda a liberdade de imprensa e a sua independência perante o poder político e económico (artigo 38.o), bem como a liberdade de associação (artigo 46.o), que aliás se aplica aos partidos políticos (artigo 51.o).
No plano dos direitos dos trabalhadores, a Constituição, tendo optado por defender a parte mais desprotegida na relação de trabalho, tem inscritos amplos direitos a que quis dar a dignidade de inclusão no Título dos «Direitos, Liberdades e Garantias». Aí se encontram (artigo 53.o e seguintes) a garantia da segurança no emprego, os direitos de intervenção das comissões de trabalhadores na vida da empresa, a liberdade sindical como garantia da construção da unidade dos trabalhadores na defesa dos seus interesses, os direitos das associações sindicais, designadamente à contratação colectiva, o direito à greve e outros mais.
Já no título dos direitos económicos, sociais e culturais (artigo 58.o e seguintes) a Constituição prevê o direito ao trabalho para todos, impõe a execução de políticas de pleno emprego e consagra diversos direitos dos trabalhadores (desde a retribuição justa à conciliação da vida profissional com a vida familiar, passando por exemplo pela existência de uma rede de centros de repouso e de férias). Aí estão igualmente o direito à segurança social e à saúde, concretizado este através de um Serviço Nacional de Saúde universal, geral e tendencialmente gratuito, o direito a uma habitação adequada, o direito a um ambiente ecologicamente equilibrado, o direito à protecção da família (designadamente através de uma rede de creches, do acesso ao planeamento familiar ou à procriação assistida), o direito à protecção da maternidade e da paternidade, o direito à educação e à cultura, que o Estado tem o dever de democratizar, sendo o ensino gratuito na escolaridade obrigatória e progressivamente gratuito em todos os graus de ensino.
No plano económico, continuam a figurar na Constituição importantes questões como a subordinação do poder económico ao poder político democrático (artigo 80.o), a incumbência prioritária do Estado em promover o aumento do bem-estar social e económico e a qualidade de vida das pessoas, bem como a justiça social e a coesão económica e social do território nacional (artigo 81.o). Por outro lado a Constituição impõe que o investimento estrangeiro deva ser disciplinado no sentido de garantir a sua contribuição para o desenvolvimento do país, a defesa da independência nacional e dos interesses dos trabalhadores (artigo 87.o).
Continua a estar prevista a existência de planos de desenvolvimento económico e social (artigo 90.o). Nela encontramos também expressos o aumento da produção e da produtividade da agricultura (artigo 93.o) bem como a eliminação dos latifúndios (artigo 94.o). E estabelece igualmente o objectivo de aumento da produção industrial.
Na área financeira e fiscal, encontramos a obrigatoriedade de uma justa repartição dos rendimentos e da riqueza, o que, como facilmente se percebe, está muito longe de ser realidade.
Finalmente, quanto à organização do poder político mantêm-se aspectos positivos essenciais. O poder político pertence ao povo (artigo 108.o), garantindo-se a separação e interdependência entre os órgãos de soberania. Desde a última revisão, numa das poucas alterações positivas das sucessivas revisões, passou a ser finalmente possível referendar a vinculação do país a futuros tratados europeus, matéria que estava vedada desde 1997 por imposição de PS e PSD.
Encontramos também a garantia da independência dos tribunais (artigo 203.o) e a autonomia do Ministério Público (artigo 219.o), hoje frequentemente posta em causa.
Quanto à organização do Estado, está consagrada a existência das autonomias regionais (artigo 225.o e seguintes), do poder local democrático (artigo 235.o e seguintes), das regiões administrativas (artigo 255.o), embora com as limitações conhecidas em relação à sua instituição em concreto. Aí está igualmente a garantia de uma administração pública ao serviço do interesse público, desburocratizada e próxima das populações (artigos 266.o e 267.o).
Mantém-se no texto, no plano da democracia participativa, a existência de Comissões de Moradores (antes organizações populares de base territorial) como forma de organização de base do poder local, com possibilidade de participação, sem voto, nas assembleias de freguesia e competência para desempenhar tarefas delegadas pelos órgãos da freguesia.
O conteúdo da Constituição portuguesa continua assim a ter um pendor progressista e uma forte vinculação aos direitos dos trabalhadores e das populações, bem como a justos objectivos de desenvolvimento sustentado e de justiça social. Por isso continua actual a sua defesa e a luta pela sua concretização nos mais diversos aspectos.