Albano Nunes, Notas sobre a Revolução de Outubro

Notas sobre a Revolução de Outubro

Albano Nunes

Fomos nós que começámos esta obra.
Quando, em que prazo, os proletários de tal nação
a farão triunfar, não importa. O que importa, é que o gelo
se quebrou, a via está aberta, o caminho traçado (1)

O século XX foi um século de violentos contrastes e grandes tempestades políticas e sociais. Hobsbawm chamou-lhe "a era dos extremos" (2) . Mas foi também, e talvez por isso mesmo, porque em tempos de imperialismo e extrema agudização da luta de classes, um século de revolucionários avanços libertadores. Avanços protagonizados por gigantescos movimentos de massas que varreram o mundo de lés a lés, de tal modo que bem poderia dizer-se que o século XX foi o "século do(s) povo(s)". Mas, simultaneamente, avanços que têm como alavanca fundamental a classe operária, os comunistas, o socialismo.

É certo que os dramáticos acontecimentos do final do século, as derrotas do socialismo no Leste da Europa, a desagregação da URSS, a crise do movimento comunista, o refluxo das lutas populares e revolucionárias, abalaram ideias feitas sobre a irreversibilidade do processo revolucionário e outras, e colocaram a necessidade de reexaminar o caminho percorrido, à luz dos ensinamentos da experiência. Com a virtualidade, aliás, de revitalizar o espírito essencialmente crítico, dialéctico e anti-dogmático do marxismo-leninismo e valorizar a sua natureza de "filosofia da praxis". Mas nada disso põe em causa traços e características fundamentais do século já evidenciadas, e o lugar cimeiro nele ocupado pela Grande Revolução Socialista de Outubro e pelo empreendimento de construção de uma nova sociedade, apesar das deformações que, no quadro de uma brutal e diversificada contra-ofensiva do imperialismo, conduziram à sua perdição. É hoje uma evidência que a URSS faz falta ao mundo. Do mesmo modo que a vitória da Revolução de Outubro influenciou decisivamente a marcha da Humanidade ao longo de todo o século XX, a derrota do socialismo e a desagregação daquele grande e poderoso país abriu uma nova etapa de regressões e retrocesso civilizacional. A História ensina porém que a marcha da libertação é imparável e que a actual situação de refluxo revolucionário e "globalização" imperialista é necessariamente transitória.

A Revolução de Outubro não nasceu no vácuo. Responde a uma secular aspiração do Homem à liberdade e à igualdade social. Insere-se num longo processo de libertação social e humana, contemporaneamente marcado pela formação e amadurecimento do proletariado, o desvendar (por Marx) do papel da classe operária no processo histórico, a criação do "partido proletário de novo tipo" (com Lénine e o Partido Bolchevique), a emergência do movimento operário e comunista internacional, o amadurecimento das condições objectivas e subjectivas que criaram na Rússia uma situação revolucionária, que permitiu quebrar o "elo mais fraco" do imperialismo. Um grande mérito histórico de Lénine foi o de ter sabido edificar um partido de vanguarda, traçar uma política de alianças (que atraiu o campesinato dominante para o lado da classe operária), apontar um programa mobilizador (a paz e a terra, com carácter urgente prioritário) e desenvolver uma linha revolucionária que levou à conquista do poder. Foi ter sabido genialmente ligar teoria e prática e situado sempre as tarefas do dia a dia na perspectiva revolucionária.

Sendo a Rússia um país atrasado, logo expoentes reformistas como Plekhanov, Kautsky e outros, que se reclamavam "marxistas", condenaram a conquista do poder pelos bolcheviques, vaticinando a rápida derrota da Revolução de Outubro. Mas será que não estavam "ainda maduras" as condições para a revolução socialista? Era indispensável, como mecanicamente defendiam os "mencheviques" e outros sectores oportunistas, desenvolver "primeiro" as forças produtivas e levar "a revolução burguesa até ao fim"? Marx já dera uma resposta a questão semelhante a propósito da "Comuna de Paris", criticando severamente aqueles que recusaram a solidariedade aos heróicos "communards" de 1871 (3) . Por seu lado, Lénine mostrou, com base no estudo aprofundado dos novos traços do capitalismo do seu tempo (4) , que para os revolucionários não só era irrecusável, se a ocasião se apresentava, a conquista do poder político, como era possível conservá-lo e usá-lo para desenvolver as forças produtivas e criar as premissas materiais necessárias à consolidação e avanço da nova sociedade. Mas preveniu simultaneamente que, se nas condições do imperialismo podia ser mais fácil a conquista do poder num país atrasado, seria necessariamente mais difícil aí construir o socialismo que num país capitalista desenvolvido. A história da URSS e dos empreendimentos do socialismo em geral, confirmaram esta previsão que, como muitas outras previsões e advertências de Lénine (sobre traços negativos da personalidade de altos dirigentes do partido, como Staline ou Trotski, os perigos de burocratização e muitos outros), adquire hoje uma dimensão verdadeiramente profética.

A Revolução de Outubro e a luta pela construção do socialismo na URSS foi uma epopeia extraordinária. Conquistar o poder e desmantelar o centralizado e autocrático Estado czarista; erguer um vastíssimo país devastado pelos horrores da Primeira Guerra Mundial e, depois, pela guerra civil; resistir com sucesso à invasão militar estrangeira e à sabotagem e cerco imperialista; vencer a miséria, o obscurantismo e o subdesenvolvimento característicos da velha Rússia – são feitos de alcance histórico que a seu tempo suscitaram a merecida admiração e apoio dos trabalhadores e dos povos oprimidos de todo o mundo e colocaram do lado da Revolução de Outubro e dos seus ideais emancipadores a intelectualidade progressista.

É inteiramente lógico que assim tenha sido. Porque o capitalismo, depois de um período de "desenvolvimento pacífico" que semeou ilusões oportunistas no movimento operário e contribuiu fortemente para a degenerescência da maior parte dos partidos da II Internacional, evidenciava de modo brutal (guerra de 1914/18, a maior carnificina até então registada pela história; ascenso do nazi-fascismo; a "grande depressão" de 29/33; etc.) a sua natureza profundamente injusta e desumana. Mas sobretudo porque os comunistas, as massas laboriosas e os povos da URSS, confirmavam na prática a possibilidade de transformar a vida e reestruturar a sociedade em proveito dos interesses e aspirações da grande maioria. Num curto lapso de tempo foram alcançadas grandes realizações e êxitos, tanto no plano económico e social – fim do desemprego a partir de 1930, redução do horário de trabalho, direitos das mulheres, salário igual trabalho igual, ensino e saúde universal e gratuitos, inéditos ritmos de crescimento económico -, como no plano cultural, artístico e científico -, do cinema de vanguarda ao Sputnik ou à utilização pacífica da energia nuclear. A solução de ancestrais e complexos problemas nacionais (a Rússia era conhecida como a "Prisão dos Povos") foi um feito de grande alcance, mesmo tendo em conta que se verificaram desvios e deformações, aliás habilmente explorados pelas forças nacionalistas e imperialistas para minar a coesão multinacional da URSS. Não foi por acaso que os avanços verificados, nomeadamente nas Repúblicas atrasadas do Oriente, tiveram uma extraordinária repercussão entre os povos e países oprimidos da Ásia e África, impulsionando o seu movimento de libertação nacional, da China à Indonésia, do mundo árabe ao Industão. Os êxitos alcançados no plano militar tiveram um papel crucial para a contenção da agressividade imperialista e a defesa da paz, sendo entretanto verdade – e esse foi um objectivo imperialista bem sucedido – que as enormes despesas para assegurar o equilíbrio militar estratégico, tão arduamente conquistado, conduziram a graves distorções na economia e ao "esgotamento" da URSS com a corrida aos armamentos.

Se tantos e por vezes tão inéditos avanços foram possíveis num contexto profundamente hostil – a extensão da revolução à Alemanha e outros países da Europa foi sufocada, desenvolveu-se a reacção fascista agressiva que conduziu à guerra mundial de 1939/45, sucedeu-se a "guerra fria" – é porque a Revolução de Outubro e a nova sociedade a que deu lugar respondiam a uma exigência do próprio desenvolvimento histórico. Uma exigência com que o proletariado e as grandes massas da URSS se identificaram profundamente, dando provas de uma grande consciência política, entusiasmo, criatividade revolucionária. O poder soviético quando foi efectivo, participado, estimulado, e não substituído pelo partido, revelou-se de facto uma forma superior de democracia, incomparavelmente mais democrática que a democracia liberal burguesa. Uma das razões fundamentais apontadas pelo PCP para a derrota do socialismo na URSS, residiu no esvaziamento do dinamismo democrático dos sovietes, na sua degenerescência formalista e burocrática, cada vez mais afastada do sentir e da vontade do povo. Sendo o Estado a questão central da revolução numa perspectiva marxista- -leninista (5) , o facto de não se ter conseguido construir e estabilizar um sistema de poder popular efectivo, contribuiu decisivamente para o maior de todos os desastres. Aquele em que altos responsáveis do Partido e do Estado, na situação de crise, abandonam a luta e se passam mesmo com armas e bagagens para o campo do capitalismo. E em que, desorientadas e alheadas de um poder que nominalmente seria o seu, as massas trabalhadoras não estão em condições de se erguer para barrar o caminho da contra-revolução.

A marcha do século XX só é compreensível à luz da Revolução de Outubro e das realizações do socialismo na URSS e da sua política de paz e solidariedade internacionalista. (6) . Seria obviamente errado e nefasto idealizar a história dos países socialistas. Foram cometidos erros graves; houve teorizações, concepções e avaliações que conduziram a decisões e práticas de poder autoritárias e violentas; nas relações entre partidos e países verificaram-se por vezes pressões e imposições que, além de condenáveis em si, não levavam em consideração a especificidade de vias e caminhos do processo revolucionário e da edificação da sociedade nova. Registaram-se por vezes agudos conflitos entre países socialistas, que prejudicaram não apenas a unidade do movimento comunista mas a sua própria projecção e influência no mundo. Os generosos ideais e valores do socialismo e do comunismo foram por vezes abusivamente invocados para dar cobertura a terríveis crimes.

Mas tais questões não ensombram nem põem em causa a importância histórica universal dos "Dez dias que abalaram o mundo" e a enorme influência da URSS (e do sistema mundial do socialismo) no combate pela emancipação social e humana.

O exemplo por ventura mais evidente diz respeito à decisiva contribuição dos comunistas, do Exército Vermelho e do povo soviético para a derrota do nazi-fascismo. Mais de vinte milhões de mortos e um país praticamente destruído, dizem bem do imenso sacrifício que foi necessário consentir para salvar o mundo da barbárie hitleriana e preservar a liberdade e a independência das nações. Contribuição em que o factor patriótico teve sem dúvida um grande peso. Os so-viéticos chamaram à Segunda Guerra Mundial a "Grande Guerra Pátria". Mas em que avulta sobretudo a natureza socialista do poder e da sociedade soviética e a direcção do partido comunista. É natural que os politólogos burgueses, hoje empenhados em reescrever a História ao sabor da nova correlação de forças desfavorável, procurem apagar o factor de classe na contribuição da URSS para a Vitória. A verdade que nunca será apagada é que, enquanto os governos e os partidos burgueses das principais potências capitalistas conciliavam, desertavam ou capitulavam perante os nazis (lembrar sempre a política de "não-intervenção" na Guerra de Espanha ou a "política de apaziguamento" que em Munique entregou a Checoslováquia a Hitler), o Estado Soviético e os comunistas por toda a parte, na clandestinidade e pegando em armas, erguiam corajosamente a bandeira do antifascismo, do patriotismo, da paz e da amizade entre os povos e, onde possível, a bandeira da revolução social. Esta realidade, que ilustra como poucas a superioridade política e moral dos comunistas, possibilitou que o fim da Segunda Guerra Mun-dial significasse – apesar das criminosas bombas atómicas lançadas sobre Hiroshima e Nagazaqui, a divisão imposta no Vietnam e na Coreia, o esmagamento da revolução na Grécia e tantos outros crimes do imperialismo – um avanço fantástico do processo revolucionário mundial e uma espectacular alteração da correlação de forças a favor do progresso social, da paz e do socialismo. No Leste da Europa e na Ásia triunfaram novas revoluções populares a que em breve se juntaria, em 1949, a Revolução Chinesa, estendendo-se o socialismo a mais de um terço de toda a Humanidade. Na Europa Ocidental os comunistas, prestigiados pelo seu papel na Resistência e contando com forte apoio popular, participaram nos governos de 10 países (7) . A cooperação dos comunistas com uma social-democracia que as circunstâncias e a pressão popular empurraram para a esquerda, chega nalguns países à fusão num só partido operário marxista-leninista. Reunifica-se o movimento sindical e criam-se poderosas organizações unitárias das Mulheres, da Juventude, da Paz e outras. Funda-se a Organização das Nações Unidas e aprova-se a sua Carta de conteúdo fundamentalmente antifascista, pacífico e progressista. O movimento de libertação nacional dos povos sujeitos ao colonialismo conhece por toda a parte o vigoroso afluxo que, seguido do novo surto libertador da década de 60, conduzirá ao desmantelamento dos impérios coloniais, com excepção, até à revolução de Abril, das colónias portuguesas.

É verdade que os novos avanços foram efémeros. A criminosa afirmação de força e chantagem nuclear por parte dos EUA que foi o lançamento das bombas atómicas sobre populações civis no Japão (para não falar nos bombardeamentos de Dresden e de outras cidades) foi de pronto oficializada com a famosa declaração de guerra ao comunismo feita por Churchill em Fulton. Em 1947 veio o Plano Marshall e em 1949 a NATO. Os monopólios europeus lançam as bases da "Comunidade Europeia". O movimento sindical é rapidamente dividido, assim como outras organizações unitárias. Os comunistas são literalmente afastados de todos os governos da Europa Ocidental em que participavam e em países poderosos como a Alemanha (proibição do Partido Comunista Alemão – KPD e instituição das chamadas interdições profissio- nais/Berufsverbot), EUA (a caça às bruxas do macartismo) e Japão, os comunistas são violentamente perseguidos. Entre outros, o sinistro morticínio de cerca de um milhão de comunistas na Indonésia no golpe pró- -norte americano de Suharto, e sobretudo as guerras da Coreia (1950/53) e do Vietnam (que terminou em 1975 com a vergonhosa retirada do invasor ianki e a reunificação do país sob a bandeira de Ho Chi Minh), mostram bem a sanha anticomunista do imperialismo.

A "guerra fria", constituindo em medida fundamental um terrível braço de ferro entre dois sistemas sociais antagónicos, e em particular entre os EUA e a URSS, foi muito mais do que isso, não sendo de modo algum redutível a um "conflito Leste-Oeste". Foi a luta sem quartel entre, de um lado o imperialismo e do outro, fundamentalmente, a classe operária dos países capitalistas, o movimento de libertação nacional, os países socialistas. Foi uma luta em que o grande capital foi frequentemente derrotado ou teve de recuar nos seus desígnios. A década de 70, em que a revolução portuguesa se situa, foi uma década de grandes transformações revolucionárias.(8) Confirmando a tese do PCP de que a luta pela paz e a luta pelo progresso social são inseparáveis, foi possível avançar pelo caminho do desanuviamento e da coexistência pacífica que, a Conferência para a Segurança e a Cooperação na Europa e a Acta Final de Helsínquia consagram e de que a revolução de 25 de Abril beneficiou. A luta pelo desarmamento chegou a abrir, nos anos 80, a perspectiva da abolição da ameaça nuclear. A verdade, porém, é que o imperialismo conseguiu vencer a "guerra fria" (que alguns comentadores apelidam simbolicamente de "3ª guerra mundial"). O movimento comunista e revolucionário sofreu um rude golpe. Com o desaparecimento da retaguarda segura que a URSS e outros países socialistas representavam e da sua solidariedade, e a agudização da política exploradora e opressora do capital, a luta das forças de esquerda, progressistas e revolucionárias, tornou-se temporariamente mais complexa e difícil.

As causas das derrotas do socialismo na URSS e países do Leste da Europa foram objecto de um primeiro exame pelo PCP nos seus XIII e XIV Congressos. O essencial das análises efectuadas poderá assim sintetizar-se: ao contrário do que pretendem os ideólogos do capitalismo tais derrotas não representam o fracasso do ideal e do projecto comunista, mas o fracasso de um "modelo" historicamente configurado que se afastou e afrontou mesmo o ideal comunista em aspectos essen-ciais relativos ao poder político, à democracia participativa, às estruturas socio-económicas, ao papel do partido, à teoria, contrariando características fundamentais de uma sociedade socialista sempre proclamada pelos comunistas. Uma tal apreciação, elaborada e assumida colectivamente, tem sido de grande importância para unir e orientar o Partido na complexa luta política e ideológica que lhe é imposta. Mas necessita de aprofundamentos, desenvolvimentos e correcções eventuais, à luz da investigação histórica e do confronto com outras análises, nomeadamente dos partidos comunistas daqueles países.

O leque de questões a exigir investigação, exame e certamente também experimentação, é muito amplo. Por exemplo: as que se relacionam com a edificação de sociedades socialistas nas condições de competição e confronto com o capitalismo, aliás mundialmente hegemónico nos planos económico e ideológico; a natureza do socialismo como período de transição entre o capitalismo e o comunismo, questão que se perdeu de vista durante muito tempo; soluções que, após milé-nios de sociedades baseadas na exploração e opressão de classe, estimulem uma superior produtividade do trabalho; a construção de sistemas de poder popular que garantam a democracia directa e participativa e assegurem o controle efectivo do exercício do poder a todos os níveis de forma a impedir deformações e abusos. Poderiam formular-se muitas outras. De qualquer modo uma conclusão se tem de dar necessariamente por adquirida: a nova sociedade só pode ser construída pela acção revolucionária e o empenhamento consciente e criativo das massas, nunca apenas em seu nome ou sem o seu empenhamento e muito menos contra a sua vontade. É assim que, na concepção programática do PCP, socialismo e democracia (considerada não em termos formais mas nas suas múltiplas vertentes – económica, social, política e cultural) são inseparáveis.

Seja como for, os empreendimentos possibilitados pela Revolução de Outubro, tanto no seu avanço como no seu declínio, o próprio processo trágico de restauração do capitalismo, deixa às novas gerações de comunistas um manancial de ensinamentos e experiências de grande valor. Enquanto Marx e Engels apenas podiam dispôr do capitalismo e da dinâmica das suas contradições para discernir as vias da sua superação e os traços mais gerais da futura sociedade socialista, nós temos hoje à nossa disposição – com êxitos e fracassos, vitórias e derrotas, períodos de exaltante empenhamento e criatividade ou de sombria e trágica degenerescência – um enorme manancial de experiências de exercício do poder pelo proletariado e o seu partido comunista. Há que estudá-lo em profundidade. A conclusão mais geral será seguramente a de que é necessário, não desistir – como nos aconselham os propagandistas da "falência da experiência comunista" – mas persistir no caminho aberto pela Revolução de Outubro, levando naturalmente em conta as novas realidades do capitalismo contemporâneo. Porque o capitalismo aí está com as suas violentas contradições. Porque a classe operária, diversificando-se e adquirindo traços novos em ligação com a revolução científico técnica, as transformações dos processos produtivos e as alterações nas condições de trabalho e de vida, não cessa de crescer.

As razões para a luta por uma nova sociedade mais humana, mais livre e mais justa, liberta da exploração do homem pelo homem, em que "o livre desenvolvimento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de todos" (Marx), são hoje maiores do que nunca, incluindo no plano moral. É cada vez mais insuportável o contraste insultuoso entre o luxo de uma minoria poderosa e a mais extrema e dolorosa miséria de centenas e centenas de milhões de seres humanos. A apropriação pelo grande capital das conquistas científicas e técnicas do génio humano, subordinando a sua utilização social à lógica do lucro, torna cada vez mais patente a contradição entre a real possibilidade de assegurar uma vida digna a toda a população do planeta e as regressões brutais que em tanto lado se estão a verificar em resultado do processo de extensão a todo o mundo do sistema de exploração capitalista. Estas são realidades que tendem a alargar a frente anti-imperialista e que se exprimem nomeadamente na multiplicação de movimentos de contestação e oposição a tal ou tal aspecto da "globalização" imperialista, às políticas neoliberais, ao próprio capitalismo. O que as grandes manifestações de Génova e outras manifestações "anti-globalização" fundamentalmente expressam, apontando para a restrição da base social de apoio do capitalismo na sua forma actual, é a entrada na luta de novas camadas e sectores sociais de um ou outro modo atingidas pelo rolo compressor da corrida ao máximo lucro.

A evolução recente do capitalismo e a resistência e luta dos povos evidenciam a vitalidade do marxismo-leninismo, a persistência das contradições básicas, clássicas digamos assim, do modo de produção capitalista (entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção, entre o carácter social da produção e a sua apro-priação privada, entre o capital e o trabalho), o papel central da classe operária e do trabalho assalariado no processo de transformação social, a necessidade dos partidos comunistas e revolucionários e da sua cooperação internacionalista.

Há muito de novo no capitalismo contemporâneo. O próprio desaparecimento do socialismo como sistema mundial criou uma situação nova em aspectos essen-ciais. Os grandes avanços técnico-científicos (nomeadamente no plano do informação e da comunicação), a aceleração do processo de divisão internacional do trabalho e de internacionalização, a financeirização e transnacionalização do capital e muitos outros aspectos, introduziram elementos novos de grande importância para determinar com segurança formas de organização, métodos de luta, política de alianças, articulação dialéctica do factor nacional e internacional e outros aspectos da teoria e da prática revolucionária. Mas a novidade não é "pós-capitalista", verifica-se dentro do capitalismo, não altera a sua essência exploradora, não dissolve as classes sociais nem anula a luta de classes. E podendo ser "imperial" é sobretudo, e essencialmente, imperialista. As questões do poder (sua natureza de classe) e da propriedade (grandes meios de produção e de troca, alavancas fundamentais do desenvolvimento) continuam no centro do combate libertador.

Claro que os arautos do sistema, que gostariam de reduzir Outubro a um "trágico incidente" da His-tória, procuram por todos os meios obscurecer esta realidade incómoda. Declararam guerra ao propósito comunista "utópico" de construir uma nova sociedade que, por "impossível" só poderia conduzir, como o nazismo, à pior "perversão totalitária" (9) . Representam a história dos comunistas, e em particular dos países socialistas, como um negro rol de desgraças e crimes. E se, perante a irrecusável realidade das injustiças e desigualdades do capitalismo, toleram a ideia de um "regresso a Marx" é para contrapor Marx a Lénine, (assimilando a Revolução de Outubro, os partidos comunistas, o marxismo-leninismo, a algo de historicamente desacreditado) e servir o marxismo em requentadas e inofensivas versões neo-bernesteinianas (10) de conformismo e adaptação ao capitalismo. Torna-se então necessário mobilizar todos os recursos contra os dogmas do "pensamento único" e esclarecer a verdade histórica, particularmente junto das jovens gerações. O que é tanto mais necessário quanto, no próprio campo progressista e mesmo comunista, persistem tendências para "julgar" a actuação de anteriores gerações de revolucionários como se elas, chamadas a resolver problemas inéditos, soubessem o que hoje nós sabemos e tivessem tido ao seu alcance a experiência que nós hoje temos. Ou pior ainda, tendências para reescrever a história do movimento comunista internacional e o próprio passado em termos que justifiquem opções do presente.

O século XX foi em medida decisiva o século da histórica contribuição dos comunistas para o pro- gresso da civilização. Como afirmámos já no nosso XIV Congresso, "o século XX passará à história não como o século da "morte do comunismo" mas como o século em que o comunismo nasceu como concretização de um projecto alternativo ao capitalismo e como solução historicamente necessária das suas contradições".
Notas:

(1) Lénine, "No quarto aniversário da Revolução de Outubro", Obras Completas, tomo 33.

(2) Eric Hobsbawm, "A Era dos Extremos, história breve do século XX, 1914-1991", Editorial Presença.

(3) Karl Marx, "A guerra civil em França", Edições "Avante!". Ver também "O Militante" nº 252 de Maio/Junho 2001.

(4) Lénine, "O imperialismo, estádio supremo do capitalismo", Edições "Avante!"

(5) Lénine, "O Estado e a Revolução", Edições "Avante!"; "A questão do Estado, questão central de cada revolução", Álvaro Cunhal, Edições "Avante!"

(6)"[A Revolução de Outubro] tornou-se um acontecimento tão fundamental para a história deste século [XX] quanto a Revolução Francesa de 1789 para o século XIX… Contudo a Revolução de Outubro teve repercussões muito mais profundas e globais que a sua antepassada". (Hobsbawm, idem).

(7) – França (onde o PCF virá a ser o partido mais votado), Itália, Bélgica, Luxemburgo, Áustria, Noruega, Dinamarca, Finlândia, Islândia e São Marinho.

(8) Ver "Uma década de grandes transformações revolucionárias", "O Militante" nº 56, Fevereiro de 1980.

(9) As teses de François Furet e outros que infelizmente têm penetrado em sectores de esquerda, são exemplos da vergonhosa amálgama fascismo/comunismo, que na prática visam simultaneamente combater os comunistas e branquear a extrema direita.. "Le Passé d’une Illusion", François Furet, "Livres de Poche"

(10) Eduard Bernstein (1850/1932) foi o grande expoente do revisionismo e da fundamentação teórica da degenerescência oportunista dos partidos social-democratas da II Internacional. A sua conhecida fórmula "o movimento é tudo o objectivo final não é nada", está de novo a ter alguma circulação.

"O Militante" – N.º 255 – Novembro/Dezembro 2001