Manuel Gusmão, Vitória de Esperaças e Sonhos Milenares

 A Revolução de Outubro – Vitória de esperanças e sonhos milenares 
 
Escrito por Manuel Gusmão  

A Revolução Socialista de Outubro significa um profundo revolucionamento político, económico, social e cultural, que transformará radicalmente a vida de populações habitando um território enorme. Entrega o poder àqueles que sempre dele tinham sido afastados e o tinham apenas sofrido, começa a construir um sistema político que une as dimensões representativa e participativa da democracia, altera o regime jurídico e social da propriedade e as relações de produção e lançará um impetuoso desenvolvimento das forças produtivas. A revolução é também um poderoso revolucionamento cultural. A educação de milhões de pessoas torna-se uma prioridade estratégica, a revolução leva à escrita povos que a não tinham, elimina, num curto prazo histórico, o analfabetismo; é acompanhada por um florescimento artístico e cultural incomparável e cria as condições para um desenvolvimento científico impetuoso. As transformações nas diferentes esferas da vida social afectam efectivamente os modos do viver colectivo e as suas representações e valores.

A força do seu exemplo dá à revolução uma significação internacional, que se concretiza, no imediato, na fundação da Internacional Comunista, na formação dos partidos comunistas, nascidos também da degenerescência das forças social-democratas e da II Internacional ou da vitória na disputa da influência no movimento operário sobre as correntes do anarco-sindicalismo e do sindicalismo revolucionário (como é por exemplo o caso em Portugal). A revolução lança uma série de episódios revolucionários, dos quais o primeiro é a insurreição spartaquista, a revolução alemã de 1918, dramaticamente derrotada.

Uma questão de escala: a Revolução de Outubro na longa duração

Para compreendermos hoje o significado historicamente presente da Revolução de Outubro é importante ter em devida conta o facto de ser uma revolução vitoriosa e de ser, designadamente, a primeira revolução triunfante, dirigida autonomamente pela classe operária e pelo campesinato pobre, e pelo seu partido de classe, o Partido Bolchevique, o partido de Lénine. O carácter inaugural desta vitória e o seu significado internacional impõem o seu exame na longa duração da história, impõem a percepção de uma escala de referência que não é a da curta duração ou a do episódio acidental, mesmo se «catastrófico».

A grande Revolução triunfa onde outras tentativas de emancipação dos explorados e oprimidos fracassaram, desde as revoltas dos escravos de Roma, às revoltas camponesas, às insurreições operárias do século XIX, até à Comuna de Paris. A própria participação popular na Revolução francesa tinha sido defraudada pela burguesia. A primeira revolução vitoriosa é assim portadora da memória activa de lutas, sonhos e esperanças, utopias milenares e sempre vencidas. O projecto comunista de construção do socialismo e do comunismo, que vence com a Revolução de Outubro, dá início à edificação de um tipo de sociedade nunca antes conhecido pela humanidade na sua história.

 
Paradoxalmente, no quadro de profundas dificuldades (e também de potencialidades exigentes) que enfrentamos na nossa luta, talvez possamos perceber melhor, hoje, o seu carácter profundamente novo, avaliar as suas dificuldades, compreender o seu carácter de primeira tentativa histórica e, ao mesmo tempo, aprender a situar, na longa duração, a sua significação e a significação da dramática derrota das primeiras sociedades construídas com o objectivo do socialismo e do comunismo.

Hoje, a ideologia burguesa celebra a vitória do capitalismo, tornado sistema mundial hegemónico, e tende a apresentá-lo como o estádio final da história humana, anuncia a nova ordem imperialista como o fim do socialismo e do comunismo e o máximo de racionalidade na organização do viver social. Entretanto, o mundo não se tornou mais seguro, nem mais justo, nem mais pacífico. Ao mesmo tempo que cantam vitória, o imperialismo e o grande capital transnacional desencadeiam uma ofensiva global contra os direitos económicos, políticos, sociais e culturais dos trabalhadores, conseguidos directa e indirectamente graças à Revolução de Outubro e ao impulso que ela deu ao movimento operário, popular, democrático e nacional libertador em todo o mundo. Talvez, nesta situação, se possa medir mais intensamente a imensa força que foi precisa para constituir essa sociedade nova e as enormes forças que desde o início se levantaram contra ela, e foi sendo necessário acumular para a conseguir derrotar.

Entretanto, a Revolução de Outubro com o seu carácter inaugural, com o fluxo revolucionário a que deu origem, com as conquistas que possibilitou, com o papel da URSS na derrota do nazi-fascismo, mostrou que a construção do socialismo não é uma utopia, nem apenas uma possibilidade real, mas uma alternativa histórica ao capitalismo e ao imperialismo. Uma alternativa que começou concretamente a ser construída e foi interrompida. Acontecimento maior do século XX, ela marca-o determinantemente, e representa o início de uma era histórica que ainda não terminou (mesmo que vivamos hoje um período de contra-ciclo): a era da passagem revolucionária do capitalismo ao socialismo.

Quando aqueles que violentamente expropriam os direitos alcançados e que constituiriam uma plataforma civilizacional para a participação democrática e a emancipação social, aqueles que continuam a levar a guerra a todos os continentes, aqueles que mantêm uma apropriação socialmente injusta do desenvolvimento científico e tecnológico e que consideram essa interrupção como uma derrota definitiva, o que fazem é tentar desfigurar a Revolução de Outubro, obscurecer e ocultar que há uma alternativa ao domínio capitalista e imperialista, uma alternativa que essa revolução configurou e ajuda hoje a configurar.

Algumas mistificações

As manobras ideológicas para retirar à Revolução de Outubro o seu imenso poder de atracção sobre o imaginário político, as convicções e a inteligência da história dos milhões de explorados e oprimidos são inúmeras, apoiam-se no controlo de grandes meios de comunicação de massas, contam com apoios financeiros poderosíssimos, promovem e controlam linhas diversificadas de violenta manipulação da história.

Na actualidade, à medida que a ofensiva neoliberal enfrenta uma resistência popular crescentemente organizada, uma das mistificações mais corrente, baseada na desfiguração dos factos históricos, consiste em reduzir a revolução ao modelo que aprisionou as suas forças e a partir daí condenar miseravelmente todo o esforço heróico dos comunistas e de populações inteiras de todos os continentes, na luta pela liberdade, o poder do povo, a justiça social, a paz e a soberania, comparando de forma infame comunismo e fascismo.

A mistificação consiste em culpar a Revolução de Outubro pelas desfigurações, erros e desvios que, em determinadas condições históricas, marcadas por uma constante pressão externa, uma série de conspirações e agressões internacionais, levaram à génese de um modelo que aprisionou as forças sociais e humanas libertadas pela revolução, contrariou em aspectos determinantes os princípios e o desenvolvimento da teoria revolucionária do marxismo-leninismo, violou a legalidade socialista e virou costas a princípios fundamentais do ideal comunista. Esse modelo, que se prolongou sem ser corrigido, fragilizou o poder socialista e abriu as portas à sua derrota que nem a agressão nazi-fascista conseguira obter. Mas pretender que esse modelo decorre necessariamente do pensamento e do programa do marxismo-leninismo, que a ele se reduz o ideal comunista é dar provas de desonestidade política e intelectual, reescrevendo a história, com o fito de incriminar e reprimir, primeiro os comunistas, depois todos os que pensam e lutam organizadamente contra o sistema capitalista e depois todo e qualquer protesto social.

Outra das mistificações correntes consiste em acusar a revolução pela sua «extrema violência», e em imputar aos revolucionários de 1917 um particular gosto pela violência. No sentido em que a palavra «violência» é utilizada na acusação, o que há que responder é que o conjunto de actos revolucionários, ou a tomada do poder, se deram quase sem mortos. É com a guerra civil desencadeada pela reacção aristocrática e burguesa e com o cerco da Rússia por 14 exércitos de outros tantos Estados que  o número de mortos e a violência brutal fazem o seu aparecimento. É igualmente falso que Marx, Engels, Lénine e os revolucionários de Outubro tivessem um particular gosto pela violência, antes concebiam a revolução como o mínimo de violência organizada, necessária para pôr termo à violência generalizada e multiforme do sistema capitalista e, no caso vertente, agravada pelo regime czarista. Historicamente, a Revolução de Outubro responde à bárbara violência sangrenta da guerra inter-imperialista que foi a I Guerra Mundial, e sucede, em escassos meses de 1917 à brutal repressão de uma manifestação popular.

A acusação de violência é, além do mais, um exemplo da mais descarada hipocrisia por parte dos defensores de um sistema que nasceu da mais brutal expropriação, da escravização de milhões de seres humanos e cresceu até hoje graças à opressão  colonial e neocolonial. De um sistema que para defesa dos seus interesses hegemónicos ou para resolução das suas contradições internas não recua perante o recurso à guerra; de um sistema que sempre que se sente ameaçado pelos anseios democráticos, mesmo que eleitoralmente expressos, e dispõe da força necessária, recorre à violência fascista. De um sistema que usa a chantagem e o terrorismo de Estado como forma de condicionar restritivamente a escolha soberana dos povos  quanto aos seus próprios destinos.

 
Uma outra linha, mais elaborada, de ataque à Revolução de Outubro, assim como ao programa e ao ideal comunista consiste em acusá-los por representarem uma tentativa desmedida de  controlar o processo histórico, de modo a impor-lhe uma direcção ou um sentido, pré-definidos de forma voluntarista. Segundo estes acusadores o processo económico e social é objectivo e fatal, incomensurável com o pensamento e a acção humana, só nos restando a possibilidade de pequenas intervenções de ajuste, de correcção de uma dinâmica fundamentalmente cega ou aleatória. Esta teorização parece ser apenas a cobertura aparentemente sofisticada daquela máxima reaccionária, «Sempre houve pobres e ricos e sempre há-de haver, não há nada que possamos fazer», ou a fundamentação da tese da propaganda burguesa que consiste em afirmar que o capitalismo é o sistema que corresponde à «ordem natural das coisas». É uma teorização que confunde a objectividade de uma situação ou de um estado de coisas com a impossibilidade de a pensar e com a vanidade de procurar intervir para a transformar. É uma teorização que impõe limites estreitíssimos ao pensamento e acção humanas.
 
Contra esta teorização e as suas teses, o facto de a Revolução de Outubro ter sido não apenas possível, mas possível como vitória, é a demonstração viva da eficácia de uma teoria, o marxismo-leninismo, de um programa político, o do Partido Bolchevique, e da acção de transformação revolucionária da realidade desenvolvida pelas massas populares, reunidas em torno da classe operária.

A Revolução de Outubro é denegrida, mistificada e ocultada, porque justamente é o acontecimento histórico singular de massas imensas que tomam os seus destinos nas suas próprias mãos, a demonstração do poder transformador da acção humana esclarecida, poder que radica na faculdade de transformação do trabalho humano. A Revolução de Outubro é odiada porque ela continua a indicar o caminho, continua a significar que existe uma alternativa à barbárie capitalista, o socialismo e o comunismo. A Revolução de Outubro de 1917 continua a dizer-nos que um outro mundo será possível, na liberdade e na democracia, na justiça e no bem-estar social, com o poder dos trabalhadores e a emancipação social, com a criação cultural socialmente reapropriada, ou seja, com o socialismo e o comunismo.

 
in Militante nº291 de Novembro/Dezmbro de 2007