Lénine – Entre duas revoluções
Escrito por Maria da Piedade Morgadinho
Set-2007
Lénine desenvolveu e enriqueceu a herança teórica de Marx e Engels em novas condições históricas, no fogo das batalhas revolucionárias do proletariado russo que assinalaram o alvorecer do século XX.
No período revolucionário que a Rússia atravessou, iniciado com a revolução democrática burguesa de Fevereiro de 1917 e que culminou com o triunfo da Grande Revolução Socialista de Outubro nesse mesmo ano, a primeira revolução socialista na história da humanidade, Lénine, a par de uma intensa actividade à frente do partido bolchevique, desenvolveu um extraordinário e profundo trabalho no plano teórico.
Nesses complexos e tumultuosos dias, Lénine abordou e deu resposta às questões mais pertinentes colocadas no decurso da luta à vanguarda revolucionária do proletariado russo. Tratou das questões essenciais da estratégia e da táctica do partido, travou um incansável combate em defesa do marxismo e contra todas as concepções oportunistas.
Para se fazer uma pequena ideia do que foi esse seu intenso trabalho no período referido, basta lembrar que, entre 3 (19) de Julho e 24 de Outubro (6 de Novembro), véspera da insurreição, em pouco mais de 100 dias de clandestinidade a que foi forçado por decisão do partido face à brutal ofensiva repressiva lançada pelo governo provisório burguês, Lénine escreveu, a um ritmo impressionante, mais de 60 trabalhos (artigos, obras, discursos, cartas, documentos, brochuras, etc.), 40 dos quais apenas no curto espaço de Setembro a Outubro, entre os quais algumas das suas obras mais famosas como «O Estado e a Revolução».
Algumas das questões tratadas nessas dezenas de trabalhos já haviam sido abordadas anteriormente por Lénine em muitas das suas obras, mas as novas condições concretas criadas a partir da revolução de Fevereiro de 1917, exigiam novas considerações, novos desenvolvimentos e aprofundamentos.
O trabalho teórico de Lénine entre as duas revoluções de 1917 é inseparável e é a continuação lógica das suas obras anteriores.
Se para trás, mas ainda de grande actualidade nos dias de hoje, ficavam, de tempos mais recuados, entre outras, obras como por exemplo «Que Fazer?» (1902) e «Um Passo em Frente, Dois Passos Atrás» (1905), que tiveram um papel decisivo na criação do partido bolchevique como um partido de novo tipo, um partido revolucionário da classe operária, ou ainda «Duas Tácticas da Social Democracia na Revolução Democrática» (1905), onde desenvolve a fundamentação teórica do plano estratégico e da táctica do partido do proletariado na revolução democrática burguesa, durante a Primeira Guerra Mundial e no período que a antecedeu, Lénine dedicou particular atenção às questões que as novas condições históricas exigiam: às questões da guerra e da paz, ao carácter da guerra, à caracterização da nova fase do capitalismo, à caracterização de uma situação revolucionária, à teoria da revolução socialista na época do imperialismo, à proximidade da etapa democrática da etapa socialista da revolução, à defesa do marxismo das arremetidas das concepções oportunistas no seio do próprio partido.
Foi numa luta encarniçada contra as posições oportunistas dos dirigentes da II Internacional e dos seus partidários na Rússia, que Lénine desenvolveu a sua teoria sobre a revolução socialista e a construção do socialismo e do comunismo.
São destes anos o artigo «
Sobre a Palavra de Ordem dos Estados Unidos da Europa », onde Lénine formula pela primeira vez a possibilidade do triunfo do socialismo num só país capitalista, escrito em Agosto de 1915, e a sua obra «O Imperialismo Fase Superior do Capitalismo», de 1916, onde põe a nu todas as particularidades do imperialismo: o brutal e insanável agravamento das suas contradições económicas e políticas; o desencadeamento de guerras imperialistas, a reacção mais encarniçada, a desumana intensificação da exploração dos trabalhadores e da opressão nacional.
Ao revelar a lei sobre o carácter desigual do desenvolvimento económico e político do capitalismo na época do imperialismo, deu um valioso contributo ao desenvolvimento da teoria marxista.
Da sua análise Lénine retirou a conclusão do maior alcance teórico e prático: nas novas condições históricas, a vitória simultânea da revolução socialista, em todos os principais países capitalistas era improvável, uma vez que o amadurecimento das suas condições objectivas e subjectivas se efectuava em tempos diferentes nos diferentes países e que a vitória da revolução socialista só podia, nesta condições, realizar-se primeiro num só país ou em apenas alguns países.
Defendendo os seus pontos de vista, Lénine combateu a inconsistência da argumentação dos elementos oportunistas que afirmavam que a passagem ao socialismo devia começar nos países onde o nível das forças produtivas, do desenvolvimento industrial e cultural era o mais elevado e onde o proletariado representava a maioria da população.
À data da revolução democrática burguesa de Fevereiro de 1917, Lénine, que se encontrava exilado na Suíça juntamente com destacados militantes do partido bolchevique, fez chegar ao Partido quatro cartas, as suas famosas «Cartas de Longe »: «A Primeira Etapa da Primeira Revolução», «O Novo Governo e o Proletariado», «Sobre a Milícia Proletária» e «Como Alcançar a Paz». As ideias de uma quinta carta, que não chegaria a ser escrita, foram depois, segundo Lénine, desenvolvidas nas obras «Cartas Sobre a Táctica» e «As tarefas do Proletariado na Nossa Revolução ».
Com a revolução de Fevereiro o partido bolchevique saiu da clandestinidade e em 27 de Março (9 de Abril) Lénine deixou a Suíça e a 3 (16) de Abril à noite chegou a Petrogrado, onde foi triunfalmente recebido pelo proletariado da cidade e fez o seu primeiro discurso do alto de um carro blindado.
A 4 (17) de Abril pronunciou o discurso «
As Tarefas do Proletariado na Presente Revolução », numa reunião dos bolcheviques delegados à «Conferência dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados de Toda a Rússia», mais conhecido por «Teses de Abril», discurso onde aponta o caminho a seguir: transformar a revolução democrática burguesa em revolução socialista. Nessas Teses, Lénine destaca:
«O que há de original na situação actual na Rússia é a transição da primeira etapa da revolução que deu o poder à burguesia devido ao insuficiente nível de consciência e de organização do proletariado, à sua segunda etapa, que deve dar o poder ao proletariado e às camadas pobres do campesinato.»
Nas «Teses de Abril», Lénine traçou o plano de direcção da revolução, apontou às massas uma perspectiva clara, as possibilidades e as formas da conquista do poder pelo povo, mostrou a estreita relação entre os objectivos finais e as tarefas imediatas, o desenvolvimento por etapas da revolução, as medidas revolucionárias mais urgentes, a correlação entre os factores objectivos e os factores subjectivos.
Em 9 (22) de Abril Lénine escreve o artigo «
Sobre a Dualidade de Poderes », que é publicado no jornal «Pravda» e onde destaca que «a questão fundamental de toda a revolução é a questão do poder de Estado e sem esclarecer esta questão nem sequer se pode falar em participar de modo consciente na revolução, para já não falar em dirigi-la».
De 24 a 29 de Abril (7 a 12 de Maio) realizou-se em Petrogrado a histórica Conferência de Abril (VII Conferência) do POSDR(b) de toda a Rússia, convocada pelo Comité Central, primeira conferência do partido na legalidade, onde Lénine, que abriu e dirigiu os trabalhos, apresentou o programa, que seria aprovado, relativo à passagem à segunda etapa da revolução – a revolução socialista.
Em 14 (27) de Maio realizou-se uma conferência sobre a guerra e a paz, onde Lénine discursou sobre o carácter imperialista da guerra, as contradições históricas e histórico-económicas que a causaram, sublinhando: «A guerra é causada pelas classes dominantes e só a revolução da classe operária lhe pode pôr fim», «Vamos pôr imediatamente fim à guerra e isso não poderá ser feito sem o desenvolvimento da revolução».
Nas semanas que se seguem, em importantes discursos e em numerosos artigos que escreve, Lénine denuncia a política de classe do governo provisório da burguesia, a situação da crise que a Rússia atravessava, o extremo agravamento das condições de vida do povo, dedica particular atenção às questões da guerra e da paz e apela à preparação do proletariado para a nova etapa de luta revolucionária que se avizinha.
Em Julho, no contexto duma conjuntura política extremamente complexa, numa nova correlação de forças que passara a ser favorável ao governo provisório dos social-democratas, realizou-se o VI Congresso do PSSDR (b), encontrando-se Lénine de novo na clandestinidade por decisão do Partido que, por sua vez, seria também obrigado a passar à vida clandestina.
Apesar de não ter estado presente no Congresso, Lénine teve um papel decisivo nas orientações que aí foram aprovadas, na definição da táctica dos bolcheviques nas novas condições e da linha a seguir para a insurreição armada.
Em meados de Julho, Lénine, partindo da experiência das revoluções russas de 1905-1907 e de Fevereiro de 1917, escreve a sua obra genial «O Estado e a Revolução», que tem como subtítulo «A doutrina marxista do Estado e as tarefas do proletariado na revolução».
Nesta obra, Lénine desenvolve e aprofunda teses que já anteriormente elaborara, sobre a necessidade da acção revolucionária para pôr fim ao domínio das classes exploradoras; sobre a questão do poder como questão central duma revolução; sobre a necessidade de se destruir, no curso da revolução, a velha máquina de Estado burguês; sobre a afirmação do papel da classe operária e do seu partido na preparação e direcção da revolução socialista e na edificação do socialismo; sobre a necessidade de uma nova forma de poder exercido pelos trabalhadores e pelas forças revolucionárias na direcção de todos os assuntos do Estado e na administração no domínio da economia, o que, na sua essência, constituiria o conteúdo fundamental da ditadura do proletariado.
O que torna imperecível esta obra de Lénine é o facto dos problemas teóricos fundamentais estarem estreitamente ligados às questões da luta revolucionária, é a estreita ligação entre as tarefas imediatas e os objectivos finais da luta, em oposição declarada às teses do oportunismo mundial de que «o movimento é tudo, o objectivo final não é nada».
Além da obra «O Estado e a Revolução», são deste período, entre muitos, os artigos de Lénine: «Os bolcheviques devem tomar o poder », «O marxismo e a insurreição », «Sobre os Compromissos », «A catástrofe que nos ameaça e como combatê-la», «Os bolcheviques manter-se-ão no poder?».
A 7 (20) de Outubro, Lénine, que se encontrava na Finlândia, regressa clandestinamente à Rússia. A 10 (23) de Outubro realizam-se duas reuniões históricas do CC do partido bolchevique, que analisam e decidem as questões práticas da realização da insurreição e onde é eleito o Centro Revolucionário Militar junto do Soviete de Petrogrado. Lénine escreve o artigo «
Amadureceu a crise », chamando a atenção para a necessidade imperiosa do proletariado e do partido avançarem sem demora para a insurreição: «esperar mais tempo é o suicídio».
Procurando respostas, soluções adequadas para os grandes e graves problemas em que se debatia a Rússia e que se colocavam no imediato e no concreto às forças revolucionárias, ao proletariado, aos comunistas, nesse ano de 1917, Lénine teve sempre presente e no centro das suas preocupações as questões da situação internacional, os problemas da guerra e da paz, os problemas do movimento operário e das forças revolucionárias mundiais, o internacionalismo proletário.
Na defesa intransigente do marxismo combateu com igual vigor tanto as forças oportunistas na Rússia e no seio do seu próprio partido, como as concepções oportunistas no seio da II Internacional. E quando esta se afundou no pântano do oportunismo, consciente das consequências e da repercussão que o triunfo da Revolução Socialista de Outubro teve em todo o mundo, Lénine começou imediatamente a consolidar, a unir as forças revolucionárias do movimento operário internacional, apoiando e ajudando à criação e desenvolvimento de partidos comunistas e lançando-se com determinação na criação da III Internacional, a Internacional Comunista, que marcou, indiscutivelmente, uma nova etapa do movimento operário mundial.
A genialidade de Lénine consiste precisamente em ter unido a teoria e a prática da transformação revolucionária do mundo em rigorosa conformidade com a tese de Marx: «até agora os filósofos limitaram-se a interpretar a mundo, mas a tarefa consiste em transformá-lo».