A Revolução de Outubro e a fundação do PCP
Domingos Abrantes
Passaram-se 90 anos desde o momento em que o proletariado russo, sob a direcção do Partido Bolchevique e de Lénine, na noite de 7 de Novembro (25 de Outubro) de 1917, se lançou ao assalto do Palácio de Inverno, sede do governo burguês, dando desse modo início à Grande Revolução Socialista de Outubro, acontecimento maior na história da humanidade que iria abalar o sistema capitalista, alterando radicalmente o curso do desenvolvimento mundial, inaugurando uma época de profundas transformações revolucionárias.
Outubro de 1917 ficará para sempre assinalado no calendário da história como o momento em que se abriu o caminho à concretização do sonho milenário dos oprimidos: a construção de uma sociedade liberta da exploração do homem pelo homem.
A abolição do capitalismo e a construção de uma nova sociedade, ao deixarem de ser apenas sonho, esperança, possibilidade teórica para entrarem no campo das práticas concretas, passaram a constituir o conteúdo da nova época histórica, marcada igualmente por uma outra realidade marcante, que foi o facto de a classe operária ter ascendido como força real à condição de sujeito histórico criador e organizador da uma nova sociedade.
Não faltarão os que nestes dias difíceis para o movimento operário e comunista, partindo de uma realidade objectiva marcada pelo facto de já não existir a principal obra de Outubro, o Estado soviético, o primeiro Estado de operários e camponeses, se apresse a negar a validade dos resultados desse empreendimento; a decretar mais uma vez a morte certa do comunismo; e a querer convencer os trabalhadores e os povos da vantagem em enterrarem definitivamente as esperanças de se verem livres da exploração capitalista.
Por muito grandes que sejam as dificuldades e poderosa a ofensiva do capital e do imperialismo, o que nos mostra a vida é que os trabalhadores e os povos não aceitam este mundo de exploração e de opressão brutais como sendo o melhor dos mundos possíveis, que por toda a parte se luta para o transformar, que as bandeiras de Outubro continuam a ser empunhadas por milhões de homens, mulheres e jovens de todo o mundo e que os comunistas, portadores de um verdadeiro projecto de transformação social, continuam a ser os mais firmes e consequentes lutadores pelo socialismo.
O nosso partido, o Partido Comunista Português, que comemora nestes dias, com orgulho, os seus 86 anos de existência, não esquece, nem quer esquecer, que nasceu sob o impulso da Revolução de Outubro, como não esquece, nem quer esquecer, que a sua existência, o seu papel necessário e indispensável na sociedade portuguesa são inseparáveis da abnegação dos seus militantes, da sua estreita vinculação aos trabalhadores, da firmeza das convicções e da fidelidade a princípios, mas que são igualmente inseparáveis da experiência da Revolução de Outubro, da luta e da solidariedade do Partido Comunista da União Soviética e do movimento comunista internacional, no qual se integrou desde o começo.
A Revolução de Outubro despertou enormes energias revolucionárias quando os trabalhadores puderam constatar que a «revolução social» se tinha tornado realidade, que era possível derrotar o capital e que os trabalhadores se podiam tornar senhores dos seus destinos, dispondo de um poder pronto a defender a revolução, a tomar medidas e a promulgar leis a favor do povo e contra os capitalistas. «Fazer como os russos» foi uma palavra de ordem que passou a ecoar pelo mundo, nomeadamente na Europa, estimulando e impulsionando grandiosas acções revolucionárias de massas nos anos 1918/1920.
O grande capital e o imperialismo, com a prestimosa ajuda da social-democracia de direita, conseguiram conter a onda revolucionária de então, recorrendo em vários casos ao uso das forças armadas e a uma repressão brutal, mas não conseguiram impedir que os trabalhadores aprendessem uma das grandes lições de Outubro: a lição de que para derrubar o poder do capital não bastava a heroicidade das massas e dos militantes revolucionários, por muito grande que fosse. Tornava-se indispensável dispor de um partido revolucionário de classe.
A criação de partidos comunistas tornou-se tarefa inadiável para o desenvolvimento do movimento operário e a consolidação da sua posição na luta por grandes transformações revolucionárias.
Como reiteradamente se tem salientado, no processo de formação do Partido Comunista Português intervieram dois factos essenciais: por um lado, o desenvolvimento do movimento operário português em termos numéricos, níveis de organização e experiências de luta; por outro lado, a influência da Revolução de Outubro ao mostrar a possibilidade real de realização e triunfo da revolução social e para a qual foi fundamental a existência dum partido revolucionário.
A criação do partido político da classe operária portuguesa tinha-se tornado uma necessidade objectiva, mas estava condicionada pelo nível de desenvolvimento, historicamente determinado, da estrutura social, económica e política, historicamente condicionado, nível que determinava as formas de organização e os graus de maturidade política e ideológica da classe operária em Portugal.
E foram estas condições que explicam que o PCP, pelo processo de formação, tenha sido caso quase único no mundo, se não mesmo único, na medida em que, contrariamente à formação da generalidade dos partidos comunistas que nasceram de processos de cisão operados no seio da social-democracia – que em Portugal tinha muito pouca influência no movimento operário –, tenha nascido de um processo de diferenciação operado no seio do anarquismo e das suas diferentes expressões – anarco-sindicalismo e sindicalismo revolucionário, à época forças hegemónicas no plano ideológico e da organização sindical.
Portugal era um país de baixo nível industrial. O desenvolvimento verificado no primeiro quartel do século XX – e que se traduziu no aumento numérico dos efectivos da classe operária e de algumas empresas de média dimensão – não alterou significativamente uma realidade marcada pela predominância das pequenas e muito pequenas unidades com um peso extraordinário de artesãos e «proletários-artesãos», a par de um proletariado agrícola numeroso e combativo no sul do país.
As condições de trabalho e de vida dos trabalhadores eram baixíssimas: elevados horários de trabalho, salários reduzidos, acidentes de trabalho, salubridade penosa, arbitrariedades patronais, etc., situação a que os trabalhadores iam respondendo com luta e com organização.
Após a implantação da República, os níveis de organização e de luta dos trabalhadores portugueses conheceram um extraordinário desenvolvimento, quer por parte do proletariado urbano, quer por parte do proletariado agrícola, que marcha muitas vezes na vanguarda.
Perdida a confiança «ingénua» na democracia pequeno-burguesa, os trabalhadores que haviam dado um contributo significativo para o triunfo da República, os trabalhadores que com «as armas nas mãos defenderam os bancos onde a burguesia guardava o seu dinheiro», rapidamente se aperceberam que a República não daria satisfação aos seus anseios, pelo que não tardaram a exigir o cumprimento das promessas.
Nas condições da República, a luta de classes tornava-se mais visível, mais crua, com a classe operária colocada frente a frente com a burguesia.
A luta reivindicativa, o movimento grevista de 1910 a 1920 conheceu um enorme fluxo, o qual foi acompanhado por um salto quantitativo e qualitativo nas organizações de massas com a criação de sindicatos, federações e a realização de congressos sindicais. Em 1919 nasce a C.G.T., que vem a representar mais de 100 000 filiados, o que, para a época, era verdadeiramente surpreendente.
Nas condições sócio-económicas de Portugal de então, num país onde a difusão do marxismo era quase inexistente e diminuta a expressão do Partido Socialista – rendido ao reformismo e à colaboração de classes –, foi relativamente fácil ao anarquismo e às suas variantes alcançarem a influência que vieram a ter.
O anarco-sindicalismo e o sindicalismo revolucionário tiveram o mérito de impulsionar a luta dos trabalhadores e de a situar no terreno da luta de classes, desenvolveram as suas organizações de classe e deram-lhe novo conteúdo. A denúncia dos mecanismos de exploração capitalista, a proclamação da liquidação deste sistema opressor como objectivo final da classe operária, a defesa da revolução social como o «elemento vivo do sindicalismo revolucionário», no dizer de Lénine, e a grande audácia posta nas formas de acção ajustavam-se muito naturalmente ao estado de espírito de grande parte do proletariado português, onde havia um considerável peso de elementos de origem pequeno-burguesa.
Entretanto, os anarco-sindicalistas e os sindicalistas revolucionários, interpretando de forma errada a natureza da luta de classes, incapazes de entender a correlação entre a luta imediata e a luta por objectivos estratégicos mais gerais, apologistas do individualismo, depositando uma «fé cega» na eficácia da «acção directa» e atribuindo à greve geral um valor em si, com base na «arbitrária compreensão mecânica dos fenómenos sociais», tornavam-se incapazes de desenvolver um trabalho de massas disciplinado.
Concebendo os sindicatos como a única organização verdadeiramente proletária e atribuindo-lhes a exclusividade como instrumento de luta, rejeitando a necessidade do poder de Estado e da luta política, rejeitavam, consequentemente, a necessidade da classe operária dispor do seu próprio partido político de classe, desarmavam, objectivamente, os trabalhadores face à burguesia, conduzindo a sua luta a um beco sem saída.
Esta situação começou a ser intuída pela parte mais consciente e clarividente do movimento operário, sobretudo após o fracasso da greve geral de 1918 – com a qual se procurou responder ao agravamento das condições de vida resultante do envolvimento de Portugal na guerra. Com o eclodir da Revolução Socialista de Outubro e a expansão do marxismo no movimento operário, o carácter limitado e inconsequente do anarco-sindicalismo tornou-se mais evidente.
A Revolução de Outubro teve grande repercussão em Portugal. Muitas medidas do poder soviético correspondiam aos mais profundos anseios dos trabalhadores, às exigências de verdadeira liberdade e profundas transformações sociais. As classes dominantes e a comunicação social ao seu serviço, sentindo-se ameaçadas nos seus interesses, desenvolveram uma intensa campanha assente em calúnias, deturpações e falsificações sobre o poder soviético, de apoio à contra-revolução interna e às agressões imperialistas.
Os governos democráticos republicanos que, aliás, nunca reconheceram o poder soviético, antecipando nisso a posição do fascismo, apoiaram activamente as agressões armadas contra a Rússia soviética, numa posição de vergonhoso seguidismo subserviente face ao imperialismo.
Posição muito diferente foi a do movimento operário e da sua imprensa que manifestaram de forma inequívoca o seu apoio à Revolução de Outubro, ainda que numa primeira fase o conhecimento daquela realidade fosse disperso, difuso e por vezes pouco consistente.
Com a criação, em Setembro de 1919, da Federação Maximalista Portuguesa, a primeira organização comunista, e o aparecimento do seu órgão a «Bandeira Vermelha» (Outubro de 1919), surgem as primeiras estruturas que em Portugal inscreveram nos seus objectivos a divulgação da realidade soviética e a luta pelas ideias de Outubro, e donde vem a sair o núcleo fundador do PCP. É a partir de então que se tornam regulares e mais fundamentadas a divulgação e a defesa da realidade soviética, a difusão de textos teóricos de Marx, de Engels e de Lénine, a denúncia das agressões à Rússia soviética e os apelos à solidariedade para com os trabalhadores e o povo.
De grande significado para a evolução do movimento operário português foi ter-se compreendido, ainda que mais por intuição do que por verdadeira compreensão teórica, o nexo entre a luta travada pelo proletariado russo e a luta travada em Portugal e que o que se passava na Rússia constituía uma ajuda à luta que aqui se travava contra a burguesia nacional.
De entre os muitos e muitos apelos à solidariedade com a Rússia soviética, salientam-se os apelos da «Bandeira Vermelha» aos trabalhadores portugueses para lutar «contra a miserável campanha feita pelos mercenários da imprensa a soldo da burguesia» (1) e um outro apelando para que os trabalhadores se manifestassem, fazendo «eloquentes afirmações de bolchevismo como protesto contra a reacção capitalista-republicana-clerical que pretende esmagar a revolução russa. Desejais ardentemente manifestar a vossa solidariedade com a causa vermelha? Não o podeis fazer melhor do que declarar-vos bolchevistas».(2)
E quando se tornou claro que o imperialismo preparava um ataque à Rússia soviética, a Federação Sindical dos Transportes, filiada na C.G.T. (anarquista) aprovou uma resolução onde, a par do apoio expresso à Revolução de Outubro, se decidia que os trabalhadores dos transportes portugueses entrariam em greve se fossem obrigados a transportar qualquer apoio aos exércitos agressores.
O movimento operário português, solidarizando-se com a Revolução de Outubro e exigindo a cessação do apoio militar à contra-revolução e das agressões armadas estrangeiras, deu a sua contribuição para o impetuoso movimento de solidariedade internacional que se desenvolveu sob o lema «tirem as mãos da Rússia», movimento que procurava fazer frente às acções conjuntas do capitalismo internacional e da social-democracia de direita contra o poder soviético e o ascenso da luta do proletariado à escala internacional.
A criação do Partido Comunista Português, em Março de 1921, representou um extraordinário avanço no processo de consciencialização e de organização da classe operária portuguesa.
A vida do Partido não foi nada fácil. A repressão da democracia burguesa republicana contra o movimento operário foi uma constante, como o foi, desde o começo, contra as manifestações de apoio à Revolução Soviética e de adesão aos ideais comunistas.
O primeiro número da «Bandeira Vermelha» foi apreendido, situação que se viria a repetir várias vezes. Não foram poucos os jornalistas, difusores do jornal e dirigentes da Federação Maximista Portuguesa a serem presos, situação que prosseguiu depois da fundação do Partido.
O anticomunismo como ideologia de defesa dos interesses de classe da burguesia ganha corpo ainda antes do poder fascista.
Mas é com a criação do PCP, através de um processo nada linear, que se vai processar a passagem do movimento operário português da sua fase primária à fase superior, que se começa a compreender a interacção entre a luta económica e a luta política, da luta imediata e da luta por objectivos mais gerais e se dá a inserção do movimento operário português no movimento revolucionário internacional.
A criação do partido político da classe operária portuguesa, o PCP, foi decisiva para a compreensão da importância da intervenção dos trabalhadores no terreno da luta política, «a esfera das relações de todas as classes entre si», intervenção sem a qual não se podia compreender a tendência e o objectivo final da sua luta revolucionária.
O facto dos homens que se lançaram na fundação do Partido terem quase todos uma raiz operária, estarem estreitamente ligados ao movimento sindical e participarem activamente na luta quotidiana das massas, foi decisivo para a vinculação do Partido à classe operária e ao movimento sindical, para o seu papel e a sua natureza.
Entretanto, o processo de formação e desenvolvimento do PCP foi bastante irregular e contraditório.
A verdadeira assimilação das experiências da Revolução de Outubro e do Partido Bolchevique e a sua tradução para a realidade portuguesa era dificultada pelo facto dos fundadores do Partido, pela sua origem e envolvência, continuaram durante muito tempo a pensar (e a agir), influenciados pelo anarquismo e anarco-sindicalismo. Não tinham, nem podiam ter, assimilado ainda o difícil caminho de ganhar as massas para a luta pelo socialismo, nem os princípios orgânicos e tácticos do partido leninista. Imaginavam com excessiva simplicidade o processo de liquidação do capitalismo, o caminho e os ritmos para a revolução social. Como afirmara Lénine: «passar do desejo de ser revolucionário, do verbalismo (e das resoluções) àcerca da revolução à acção verdadeiramente revolucionária é coisa muito difícil, lenta e dolorosa».
Durou muito tempo até que as posições revolucionárias e a acção política, as definições programáticas e os objectivos tácticos dos comunistas portugueses assumissem um carácter coerente e fundamentado segundo a teoria marxista-leninista, o que foi conseguido com a combinação de um crescente enraizamento nas massas, a inserção do Partido no movimento comunista, nomeadamente com a participação na Internacional Comunista, a visita de delegações operárias à URSS e o seu apoio na formação de quadros.
O caso de Bento Gonçalves, de que O Militante publica um discurso feito na URSS, em 1927, quando ainda não era membro do Partido, é um dos muitos exemplos de quadros em que a existência da URSS exerceu grande influência na sua opção comunista.
Todo o nosso colectivo partidário comemora nestes dias o 86.º aniversário do Partido. A história do Partido é uma e indivisível. São 86 anos de uma longa luta, naturalmente com acertos e desacertos, mas o balanço da sua história, nos seus aspectos fundamentais e determinantes, é caracterizada por uma abnegada e heróica acção ao serviço do povo e do país, à causa do socialismo e do comunismo, ideais pelo triunfo dos quais sucessivas gerações deram e continuam a dar o melhor das suas vidas.
Ao evocarmos a longa história do PCP, não podemos deixar de salientar que por muita grande que fosse a inexperiência e as debilidades ideológicas dos comunistas, que há 86 anos, em condições muito adversas, tiveram a ousadia de fundar o PCP, lhes cabe o mérito de terem criado o partido da classe operária portuguesa e, desse modo, terem rasgado o caminho para a fusão do socialismo científico com o movimento operário e assegurar a acção política e ideológica independente da classe operária portuguesa.
(1) Bandeira Vermelha, N.º 3, 19 de Outubro de 1919.
(2) Bandeira Vermelha, N.º 4, 26 de Outubro de 1919.