General Vasco Gonçalves
A década de setenta do século XX, e não só em Portugal, foi incisivamente marcada pela Revolução de 25 de Abril de 1974 no nosso País. O povo português conquistou a liberdade, os trabalhadores impuseram os seus direitos, os militares do MFA honraram as suas promessas e lançaram as bases do regime democrático, mas a influência histórica da revolução democrática portuguesa fez-se sentir em todo o mundo: não só pelo exemplo e precedente, iniciando um processo de derrubamento de outras ditaduras, mas, sobretudo, abrindo a porta à libertação dos povos das antigas colónias portuguesas. Novos Estados nasceram, muitas esperanças e outras utopias, antes do contra-golpe brutal, mas não mortal, da velha sociedade de braço dado com alguns aliados de circunstância. Para abordar esse movimento libertador e estabelecer as pontes de compreensão entre o imediatamente antes e o depois, quem melhor do que um dos intérpretes mais carismáticos de todo o processo? Voltamos à fala com o General Vasco Gonçalves, membro destacado do MFA, primeiro ministro de quatro governos provisórios, um dos rostos políticos mais marcantes de um movimento militar que honrou as Forças Armadas, a história portuguesa, a democracia, e soube valorizar e expressar muito do que de melhor somos capazes de fazer colectivamente. Esta longa entrevista foi conduzida pelo jornalista Armando Pereira da Silva.
As movimentações de cariz reivindicativo dentro das Forças Armadas e posterior formação do MFA dão-se num tempo de crise política e económica, em Portugal e no mundo. Será lícito dizer-se que os capitães já tinham uma consciência formada de que as coisas estavam a mudar?
VG – As movimentações de cariz reivindicativo dentro das Forças Armadas (FA’s), no contexto da guerra colonial, tiveram, aparentemente, como causa próxima, medidas adoptadas pelo governo fascista-colonialista para procurar resolver problemas de falta de quadros resultantes de uma guerra que se prolongava sem solução à vista. Os desenvolvimentos, imediatamente posteriores, do processo reivindicativo dos militares do Quadro Permanente (QP) foram proporcionando o progressivo amadurecimento da consciência política que se vinha verificando e, do mesmo passo, mostrando a verdadeira natureza autoritária da política do governo e dos seus objectivos colonialistas.
Os sucessivos desenvolvimentos do processo reivindicativo dão origem à criação do movimento de oficiais, depois Movimento das Forças Armadas. Entre a maioria haveria, no início, uma consciência difusa de que as coisas estavam a mudar. Mas só uma pequena minoria dos oficiais do Q.P., alguns dos quais foram activos e dinâmicos mobilizadores do Movimento, tinham a consciência clara de que as coisas, na vida política nacional, estavam em mudança.
Em que ponto do processo, e porquê, se dá a politização decisiva do movimento?
Falando de um modo geral, a causa mais profunda da politização para a grande maioria dos militares foi a guerra colonial. Penso que na raiz do processo que se desenvolveu estão:
. a dura experiência da guerra e a observação e o conhecimento, na prática, do que era o colonialismo sem máscara;
. a compreensão das causas profundas que levaram os povos colonizados à criação dos seus movimentos de libertação e à determinação com que lutavam no terreno;
. a verificação de que a guerra que fazíamos era uma guerra injusta;
. a verificação de que era necessário pôr fim à guerra por meios políticos, que não era possível uma vitória militar e de que devia ser reconhecido o direito dos povos à autodeterminação;
. o sacrifício, a incomodidade, o cansaço de uma guerra sem fim à vista, imposta por um governo cada vez mais contestado na Metrópole, isolado internacionalmente, governo que se opunha obstinadamente a uma solução política;
. a defesa da dignidade das FA’s e o desejo de evitar a deterioração da situação, cada vez mais acentuada, quer militar, quer politicamente;
. a lembrança, bem viva, do procedimento indigno e repressivo que o governo tivera para com os militares quando dos acontecimentos da independência de Goa, procurando culpabilizá-los perante o país;
. a movimentação popular antifascista e anticolonialista que se intensificava na Metrópole;
. a contestação estudantil generalizada à política do governo e à guerra colonial;
. o contacto directo, nas duras condições e na intimidade da guerra, com oficiais e sargentos milicianos esclarecidos politicamente, que haviam participado nas lutas estudantis, alguns deles, até, organizados politicamente;
. a publicação do livro do general Spínola, “Portugal e o Futuro”.
Mas há sempre um momento-chave, aquele em que se julgam reunidas as condições…
A guerra colonial e o processo de politização decorreram no contexto das relações internacionais de Portugal, da situação das relações de força a nível mundial, dos apoios internacionais, político-ideológicos e materiais que os movimentos de libertação tinham.
Julgo que quando fala “em que ponto do processo” e “politização decisiva do Movimento” se quer referir à decisão de derrubar o governo por meios violentos.
Como consequência imediata e “lógica”, digamos que sim.
Essa decisão só foi tomada depois do “preito de homenagem” dos oficiais-generais à política do governo de Marcelo Caetano, ao qual não compareceram, por a essa farsa se oporem, os generais Costa Gomes e Spínola e o almirante Bagulho.
Mas a decisão de derrubar o governo por um golpe militar levou meses a amadurecer. As condições subjectivas para a decisão do golpe só estavam reunidas depois daquela “cerimónia” e da demissão dos generais Costa Gomes e Spínola. Estes factos mostraram, sem dúvidas, que a única saída para a situação que se vivia era o derrubamento do governo pela força armada.
Havia já a convicção generalizada, ou uma simples intuição, de que essa era a única saída?
Dadas as limitações da preparação política da maioria dos militares do Movimento, antes da tomada dessa decisão, havia muitos camaradas que admitiam ser possível, através da imposição, por meios pacíficos, da vontade do Movimento, obrigar o governo a mudar de política e pôr fim à guerra colonial.
Não compreendiam, ainda, que a guerra colonial era a reacção, de acordo com a sua própria natureza, de um governo fascista. O fim da guerra colonial e o fim do governo fascista eram absolutamente inseparáveis.
As FA’s denotavam alguma sensibilidade aos sinais e mensagens de cariz democrático emanadas da sociedade civil, como por exemplo o último Congresso Democrático de Aveiro de onde saiu, finalmente, o reconhecimento por um leque alargado de forças democráticas do direito dos povos das colónias à independência?
Entre os militares do Q.P. houve, em geral, uma sensibilidade muito reduzida. Entre os militares mais esclarecidos houve muita, nomeadamente para as teses sobre a guerra colonial.
Dada a educação política que havíamos recebido desde a instrução primária até às escolas militares, o afastamento dos militares das questões políticas (orientação deliberada do governo e dos altos comandos a ele afectos) era ideologicamente muito difícil, para a generalidade dos oficiais, aceitar a independência das colónias, o que poria em causa a ideia neles impregnada do “binómio Pátria-Ultramar”. E isto passou-se até às vésperas do 25 de Abril, e mesmo depois do 25 de Abril.
Foram os militares com melhor formação política que conseguiram impor o Programa, em que é transparente a influência das teses do último Congresso Democrático de Aveiro e das forças democráticas.
Como definiria, em síntese, as bases, fundamentos e génese do MFA?
As bases, os fundamentos e a génese do Movimento das Forças Armadas são elementos estreitamente ligados, e entrelaçados, de um processo de aprendizagem, de experiência e de amadurecimento político, ideológico, social, de acção político-militar, provocados pela política do governo e por uma guerra colonial muito dura, prolongada, injusta e que se vinha revelando destrutiva tanto para o povo português como para os povos das colónias.
No respeitante aos fundamentos políticos e ideológicos, o derrubamento do regime significava, na ordem interna, profundas alterações em todos os domínios da vida da sociedade portuguesa.
Naquele momento, no pensamento da grande maioria dos elementos do Movimento das Forças Armadas, a instauração de uma democracia não significava a realização de profundas alterações estruturais nas relações económico-sociais que a situação exigia, as quais deviam ser sustentadas e ser sustentáculo da própria democracia, e apoiadas no exercício dos direitos alcançados pelo povo.
Nestas condições, antes do 25 de Abril o Movimento não era um movimento de revolução social, embora fosse de prever que, do derrubamento do fascismo, resultariam substanciais mudanças políticas e sociais.
Havia no Movimento muitas e variadas sensibilidades, difíceis de conciliar na hora da verdade…
O Movimento era unitário, formado por um conjunto de militares que abrangiam um amplo leque de opiniões e opções políticas (confusas em muitos casos), da direita à esquerda, o que não permitia que constituísse um conjunto homogéneo do ponto de vista político e ideológico.
Era constituído, sobretudo, por militares do Q.P.. Mas a contribuição dos militares do Quadro Complementar (Q.C., milicianos) foi de grande importância para a consciencialização política de muitos militares do Q.P., e, mais tarde, para o bom êxito das operações do golpe militar.
O Movimento das Forças Armadas (só mais tarde, já numa fase adiantada do processo revolucionário, o nosso povo o designa por MFA) assumia-se como a mais lídima expressão dos valores das FA’s, e tinha por objectivo, não a criação de umas novas FA’s, mas o saneamento, a reforma, a moralização, a competência, o prestígio das existentes.
Esta atitude explica que os jovens oficiais não tivessem tomado directamente o poder político e o poder militar, mas tenham escolhido uma Junta de generais prestigiados, nos seus Ramos, para dirigir as FA’s e o Governo.
Fizeram-no devido à sua própria formação militar, por enraizados conceitos de disciplina e de hierarquia, por formação militar, por formação sócio-cultural, por deficiente consciência política.
Mas a experiência prolongada da guerra colonial parece ter mexido com muitas consciências.
A génese do Movimento, dadas as condições objectivas e subjectivas que se verificavam no nosso país e dentro das FA’s, nas colónias e na guerra, dados o moral e os sentimentos das tropas, está na revolta dos militares de maior coração, coragem, vontade, mais firmes e ousados contra uma guerra injusta, contra a política do governo.
Entre esses militares, no início, havia diferentes graus de conhecimento ou de esclarecimento político e ideológico quanto à natureza do regime e do governo fascista-colonialista.
Ao longo do desenvolvimento da sua acção todos os militares do Movimento foram tomando consciência de que não era possível mudar, por meios pacíficos, a política colonial do governo e de que, consequentemente, era necessário derrubar o governo pela força.
Voltamos à questão da influência (e confluência) das lutas e interesses que agitavam a sociedade civil. Os militares aproveitaram ou foram movidos, para não dizer arrastados, pela dura contestação política e social ao regime?
Nos últimos meses do regime fascista, foi surgindo, no nosso país, devido à situação económica, à luta dos trabalhadores e dos democratas e à guerra colonial, uma situação pré-revolucionária, durante a qual o governo via cada vez mais limitada a sua capacidade de impor o seu comando e os militares não estavam dispostos a suportar mais.
Nesta situação se desenvolveram as acções do Movimento, a partir da reunião de 150 capitães a 9 de Setembro de 1973, no Monte Sobral, Alcáçovas, Alentejo.
Essas acções do Movimento, as acaloradas discussões e reuniões entre os seus membros e com militares do QP, em geral, mostram bem aspectos característicos da nossa idiossincrasia, as limitações da nossa formação política e do nosso conhecimento acerca das relações profundas, estruturais, ao tempo existentes entre as diversas classes sociais da sociedade portuguesa.
Antes de passarmos à análise do conteúdo e objectivos do poder político-militar ou de inspiração militar depois do golpe de 25 de Abril, seria interessante que nos desse uma opinião pessoal sobre as relações de poder no seio do MFA, nomeadamente as relações com o general Spínola, alterações de comandos, COPCON, papel da Coordenadora em todo o processo, parecendo-nos especialmente pertinente esta questão: como definiria a atitude (imediata e futura) do MFA ante as movimentações sociais e as acções populares?
As relações da Comissão Coordenadora com o general Spínola foram, regra geral, tensas. Spínola tinha muito prestígio político nas FA’s, nomeadamente por, quando comandante-chefe na Guiné, ter afirmado, publicamente, que a guerra não tinha solução militar, só poderia ter uma solução política.
Depois publicou “Portugal e o Futuro”, que surgiu como uma bandeira para muitos militares que pensavam como ele quanto à solução da guerra, mas não tinham a autoridade que ele tinha para o afirmarem publicamente.
Contudo Spínola, conservador, bem relacionado com os homens dos grupos económicos de que o poder era a expressão política, teve sempre desconfiança em relação ao Movimento, por ter a noção de que não o comandava e de que a direcção do Movimento ultrapassava o seu pensamento conservador, que tinha ideias que ele reputava de “perigosas”.
Com efeito, as nossas posições políticas eram muito diferentes das dele no respeitante ao reconhecimento, concreto, do direito dos povos colonizados à autodeterminação e à independência.
Para um conservador e militar como ele, a Comissão Coordenadora e o Movimento das Forças Armadas estavam penetrados de comunistas, o Programa do Movimento era demasiado avançado (por causa dessas suas ideias resolvemos publicá-lo sem lhe dar conhecimento).
Mas Spínola recuava nos casos, nas situações em que verificava que não tinha poder para nos impor os seus pontos de vista.
As maiores divergências relacionavam-se com a nossa firme decisão de fazermos uma descolonização não neocolonialista e com o facto de nos identificarmos com os interesses populares e não temermos a agitação nasruas, a explosão reivindicativa, a mobilização e a organização das massas populares.
Resistiu o que pôde. Foi obrigado a ceder.
A partir do II Governo Provisório, o Movimento das Forças Armadas, a Coordenadora, o Primeiro Ministro tomaram a iniciativa, pela nossa parte, do processo de descolonização, enfrentando constantemente as posições neocolonialistas de Spínola, que criavam muitas dificuldades ao curso das negociações com os movimentos de libertação.
Foi obrigado a ceder, face à situação quando me nomeou Primeiro Ministro. E também, penso, com a ideia de que a experiência levasse à conclusão de que era ele, Spínola, que devia deter todo o poder.
Mas não parece ter ficado parado.
Até ao seu afastamento de Presidente da República posso afirmar que o meu mais preocupante trabalho, porque defendia sempre as posições do Movimento das Forças Armadas, foi a confrontação com o general Spínola, quer como membro da Comissão Coordenadora, quer como Primeiro Ministro.
Mas Spínola tinha muita força dentro do Movimento, nas Forças Armadas e no País, quer pelo seu prestígio antes do dia 25 de Abril, quer porque grande parte dos oficiais das FA’s eram de direita e o apoiavam, quer pelo apoio popular de que dispunha por aparecer a muitas pessoas como o chefe do 25 de Abril, quer pela sua posição institucional como Presidente da República.
Os seus principais confrontos com a Comissão Coordenadora foram por causa das posições que tomou no processo de descolonização, o seu mau relacionamento com os chefes dos movimentos de libertação (Spínola, por exemplo, apoiou movimentos colonialistas que sob falsas aparências surgiram nas colónias depois do 25 de Abril).
Spínola procurou apoios externos, por exemplo Nixon, Mobutu, com os quais se reuniu, sem nos dar qualquer conhecimento do verdadeiro conteúdo das conversações.
Uma outra causa dos seus principais confrontos connosco residia nos receios que tinha da movimentação e da agitação populares.
Entretanto, pouco se mexeu nos comandos militares anteriores à Revolução.
A criação do COPCON foi a principal alteração nas cadeias de comando das FA’s. Foi imposta pelo Movimento.
O COPCON, Comando Operacional do Continente, foi uma estrutura militar ideada pelo Movimento para garantir uma força, fiel, de defesa da Revolução.
Foi nomeado seu comandante-adjunto (o Comandante era o Chefe do Estado-Maior General Costa Gomes) o major Otelo Saraiva de Carvalho, graduado em brigadeiro e depois em general, indicado pelo Movimento das Forças Armadas, dado o grande prestígio e simpatia que granjeara entre os seus camaradas que haviam tomado parte activa, operacional, no golpe militar de que ele foi o incontestado comandante.
Várias unidades do país lhe estavam subordinadas, sendo de destacar as unidades de comandos, paraquedistas e fuzileiros. O COPCON era a nossa força de elite e o seu comandante-adjunto era ouvido e tinha um cargo muito importante dentro das Forças Armadas.
Infelizmente, conhece-se a actuação político-ideológica de Otelo e de alguns dos seus camaradas do COPCON.
Otelo teve alguns graves afrontamentos com Spínola, que reconhecia a sua força.
Ao mesmo tempo os militares do Movimento e a Coordenadora tinham grande influência nas unidades militares que, em grande parte, eram comandadas por homens que não eram do MFA, o que gerou graves contradições entre o MFA e as FA’s.
O Ramo em que essas contradições quase não existiam era a Marinha, cuja cadeia de comando era afecta ao Movimento, logo a partir do Chefe de Estado-Maior Naval, almirante Pinheiro de Azevedo, membro da Junta, e que, até uma determinada fase do processo revolucionário, alinhou, por regra, com as forças mais progressistas do MFA.
Que papel teve a Junta de Salvação Nacional?
A Junta de Salvação Nacional tinha maioria conservadora.
O general Costa Gomes, nas confrontações com Spínola, tomou, em geral, posições favoráveis à Coordenadora, porque era o homem com maiores conhecimentos militares e uma visão política não conservadora.
Os almirantes Rosa Coutinho e Pinheiro de Azevedo, com o general Costa Gomes, embora sendo minoria na Junta, opuseram-se numerosas vezes, quase sempre, à maioria. Assim, a linha conservadora da Junta foi muito enfraquecida, o que reforçou a influência da Coordenadora.
A Junta não conseguiu, por todas estas razões, nomeadamente pela força da Comissão Coordenadora, a mais legítima representante do MFA, travar o processo revolucionário em desenvolvimento.
Depois do afastamento de Spínola, procurando garantir a unidade do Movimento foi criado o Conselho dos Vinte, constituído pelos elementos da Junta, da Comissão Coordenadora, o comandante-adjunto do COPCON e os ministros militares do MFA.
Como se conciliou tudo isso em termos de poder dentro do MFA?
As relações de poder no seio do MFA foram fortemente influenciadas pelo facto de se tratar de um movimento unitário, de composição política e ideológica ampla. Esta realidade implicou que os seus componentes reagissem de modo diverso perante o desenrolar dos acontecimentos, próprios do carácter revolucionário que tomaram, logo no dia 25 de Abril com o levantamento nacional e popular e o apoio que este deu e recebeu do MFA. Assim, nas relações no seio do MFA tiveram influência as diferenças de ideias e de atitudes em relação ao processo de descolonização, à explosão do movimento popular e reivindicativo, ao surgimento de duas hierarquias militares e paralelas, uma a do MFA que derrubou o fascismo, a outra, a anterior ao 25 de Abril que, à excepção da passagem à reserva dos oficiais-generais que tinham prestado “homenagem” a Marcelo Caetano ficou praticamente intacta, do que resultaram, desde logo, confrontações entre o MFA e as FA’s.
Finalmente, aquelas relações foram muito influenciadas pela existência de uma maioria conservadora na Junta de Salvação Nacional.
Num tal clima, como se explica o avanço aparentemente irreprimível do processo revolucionário até ao Verão de 1975?
Foram a grande explosão das reivindicações populares e da luta pela libertação das relações sociais do tempo do fascismo, pelos direitos dos trabalhadores e da população, o entusiasmo e a dinâmica populares, que tornaram possível que a correlação de forças dentro do MFA fosse favorável aos elementos mais à esquerda, identificados com as legítimas e justas aspirações das massas populares.
Se não fosse essa movimentação popular, na qual é justo destacar o papel do Partido Comunista Português, a correlação de forças teria sido, sem dúvida, favorável à direita militar, encabeçada pelo general Spínola. Em consequência veio a surgir a aliança Povo-MFA, que foi motor do processo revolucionário e quebra-cabeças para os generais conservadores da Junta, para o general Spínola e para a direita militar e civil.
Entretanto houve a crise do 28 de Setembro de 1974…
O 28 de Setembro surgiu num processo de sucessivas tentativas do general Spínola para pôr fim ao processo revolucionário, afastar o Movimento das Forças Armadas do poder político e militar, liquidar a Comissão Coordenadora e o próprio MFA, e para a tomada do poder absoluto pelo próprio general Spínola.
A Comissão Coordenadora teve uma acção decisiva no comando das unidades do COPCON e fez pender a balança de forças a nosso favor.
Papel decisivo tiveram também a movimentação popular e os sindicatos, sendo de destacar a acção do Partido Comunista Português, do Movimento Democrático Português/CDE e de democratas socialistas e independentes, na mobilização das massas populares, que se opuseram à mobilização que a direita estava procurando fazer para a manifestação, em Lisboa, da chamada “maioria silenciosa” a que apelava numerosas vezes o general Spínola.
…e a de 11 de Março de 1975
O 11 de Março foi mais uma tentativa de tomada do poder por Spínola à frente da direita militar e civil, apoiado pelos meios económicos beneficiários do fascismo, pelos antigos detentores do poder político e económico.
Estava em marcha um processo de conquistas políticas, sociais, laborais, sindicais, que era uma ameaça concreta para a dominação dos senhores de antes do 25 de Abril, os grandes grupos económicos, o capital financeiro, os latifundiários.
Houve uma conjugação de condições que precipitaram o golpe: a consagração dos direitos dos trabalhadores, a limitação dos poderes absolutos do patronato nas empresas, a unicidade sindical, o surgimento da ocupação de terras pelos trabalhadores do Alentejo e Ribatejo, o processo de descolonização que caminhava para a independência das colónias. No domínio militar, o descontentamento da antiga hierarquia contra o crescente papel político do MFA, e a institucionalização do MFA, que conduzia ao afastamento da possibilidade de Spínola vir a ser eleito Presidente da República.
Os objectivos do 11 de Março vinham de trás, eram os mesmos que os do golpe Palma Carlos e do 28 de Setembro.
E o 25 de Novembro?
O 25 de Novembro é o coroamento de um processo de viragem da correlação de forças políticas e sociais, civis e militares, que embora assumindo, na sua fase final, os aspectos de uma provocação e de um golpe militar contra-revolucionário, provocado pelo "Grupo dos Nove", vinha sendo anunciado por um complexo de factores de ordem interna e externa, dentro dos quais há a destacar:
. as divergências e oposições de interesses de classe entre democratas que haviam estado unidos, embora com muitas dificuldades, contra a política do regime fascista e posteriormente, no apoio ao MFA;
. o aprofundamento da luta de classes;
. o desenvolvimento de uma ofensiva, bem sucedida, contra o MFA, tendo por base o anticomunismo, a identificação dos sectores revolucionários do MFA com os comunistas agitando o papão de uma nova ditadura, consubstanciada, alegavam, nas profundas mudanças nas estruturas sócio-económicas que vinham sendo realizadas;
. as divisões profundas dentro da esquerda do MFA, com o surgimento do "Grupo dos Nove", que era uma resultante da persistente influência da ideologia burguesa e pequeno-burguesa entre os militares apoiados nos resultados eleitorais, favoráveis ao PS e ao PPD (PSD), para a Assembleia Constituinte;
. o propósito dos dirigentes do PS e do PPD (PSD) de impedirem a consolidação das conquistas, deixando cair a sua máscara de quererem e lutarem por alcançar objectivos socializantes ou socialistas;
. a permanência da ideologia burguesa ou pequeno-burguesa entre sectores dos trabalhadores portugueses, e dos militares;
. a situação antidemocrática existente em grandes áreas do país;
. a vitória dos partidos Socialista e Popular Democrático (depois PSD) nas eleições para a Assembleia Constituinte, às quais concorrem prometendo ao país (em especial o Partido Socialista) a destruição do tempo do fascismo e a construção de uma sociedade socializante ou socialista;
. a permanência da influência caciqueira, e dos sectores reaccionários do alto clero, sobretudo no centro e norte do Continente e nas Ilhas adjacentes;
. a limitada ou inexistente consciencialização política da grande maioria do povo português;
. o apoio dado à contra-revolução pela social democracia internacional, pela democracia cristã internacional e pelo imperialismo.
Contudo, com a vitória do 25 de Novembro, a direita não conseguiu imediatamente explorar o sucesso, porque a isso se opôs, ainda, o que restava do MFA, depois das Assembleias de Setembro, de elementos que tinham participado, em tempo que já começava a parecer distante, nas conquistas democráticas do processo revolucionário, dos quais é de destacar Melo Antunes.
Esquece-se hoje muito, a três décadas de distância, o papel destacado de um intérprete surpreendente e original desse tempo de esperança ardente: a Aliança Povo-MFA.
A aliança Povo-MFA teve de facto um papel da maior relevância.
Com o 25 de Novembro, a esquerda do MFA, os movimentos populares e sindicais sofreram um rude golpe. Pode dizer-se que, com o 25 de Novembro cessaram as conquistas populares, as transformações revolucionárias e democráticas das estruturas profundas económico-sociais. Mas, apesar de tudo, dado o impulso revolucionário que havia sido imposto ao 25 de Abril, as conquistas foram consagradas, pode afirmar-se, na sua totalidade, na Constituição da República de 1976.
Isso é bem verdade. Mas depois…
Depois do 25 de Novembro, o MFA foi paulatinamente destruído. Os altos comandos das FA’s foram entregues a gente de direita. O Conselho da Revolução foi dominado pela direita. Permitiu e promoveu a reconstituição da hierarquia militar anterior ao 25 de Abril. Permitiu a consolidação e o desenvolvimento da contra-revolução. As forças populares, os assalariados deixaram de ter o apoio das FA’s.
O MFA deixou de existir na prática. Pela revisão do Pacto MFA-Partidos, de 26 de Fevereiro de 76, o Conselho da Revolução numa fase transitória, continuava a existir com as funções de conselho do Presidente da República e de fiscalização da constitucionalidade da lei.
Mas não cumpriu, como devia, esta função. Estava ligado, formalmente, às FA’s por intermédio do PR e dos Chefes de Estado-Maior dos três Ramos. Mas estes estavam empenhados em restabelecer a disciplina e a hierarquia nos moldes anteriores ao 25 de Abril, e eram homens reconhecidamente de direita.
A aliança Povo-MFA deixara de existir.
O governo fascista-colonialista foi derrubado. Mas a situação era tal que, no próprio dia 25 de Abril, houve um espontâneo e vigoroso levantamento popular e nacional, em que se destacaram as massas trabalhadoras, os assalariados rurais do Alentejo e do Ribatejo, extractos democráticos da pequena e da média burguesia, urbana e rural, suas organizações sociais e políticas.
O impulso dessas massas populares exigindo dos militares um empenhamento político e social mais alargado e profundo do que o que previra o MFA, a identificação dos militares com as justas e legítimas aspirações populares, vieram trazer uma maior e mais profunda dimensão revolucionária ao golpe militar.
É nesse cadinho que se forja a aliança.
Sim, é ao dar resposta às solicitações quotidianas, intensas, persistentes, e a este sentir do povo que surge a aliança Povo-MFA.
Verificávamos a revolta contra as relações do passado, a oposição de interesses entre os trabalhadores e as classes mais desfavorecidas, por um lado, e o poder económico e patronal, pelo outro.
Tomávamos, regra geral, a defesa dos interesses e reivindicações justos dos trabalhadores, das classes não possidentes, procurando garantir o funcionamento das empresas, em que todos os dias éramos chamados a intervir, combater o desemprego.
Verificávamos, naquela situação tão agitada e contraditória, que não podíamos deixar de intervir nas questões do poder político.
Tínhamos responsabilidades muito grandes em relação ao nosso povo, no cumprimento do Programa do Movimento das Forças Armadas apresentado ao país e do qual éramos garante.
Tínhamos responsabilidades em relação aos militares que continuavam no ultramar; não houvera ainda o cessar-fogo formal, reconhecido oficialmente.
Tínhamos responsabilidades reais e históricas sobre o modo como, pela nossa parte, fosse conduzido o processo de descolonização.
Acresce que, por oportunismo e razões de sobrevivência, parte da hierarquia que não fizera o 25 de Abril, que aceitara com satisfação a perspectiva do fim da guerra, não se opunha de maneira frontal ao MFA e ao seu Programa, mas continuava, regra geral, a ter as mesmas ideias quanto às relações entre os militares e a política. Conservava posições de comando dentro da hierarquia militar.
Este é o contexto nacional em que se verifica o nosso envolvimento directo na condução da política do Estado. Ele segue-se ao fracasso do chamado golpe Palma Carlos, que fora uma tentativa de Spínola de afastar o MFA do poder político, com o fim de travar o processo revolucionário que se estava desenvolvendo, e com o fim de impor o seu poder pessoal absoluto e as suas ideias neocolonialistas.
Ou seja: houve uma série de razões objectivas bem definidas que justificaram esse envolvimento directo na política do Estado.
De facto, identificámos uma série de factores essenciais que justificaram essa intervenção. Por exemplo:
. o nosso firme empenhamento no cumprimento do Programa do Movimento das Forças Armadas, nomeadamente no domínio de uma nova política económica e social posta ao serviço do povo e, em particular, das camadas da população mais desfavorecidas;
. a nossa desconfiança em relação à política que Spínola procurava pôr em prática por intermédio do I Governo Provisório;
. as profundas divergências com Spínola: quanto ao entendimento e à atitude a ter para com a grande actividade reivindicativa das massas populares, a agitação nas ruas, o rumo revolucionário que a situação começava a tomar; quanto às dificuldades que o PR estava impondo, pela parte portuguesa, ao processo de descolonização, arrastamento das negociações do cessar-fogo, prolongamento do estado de guerra, mau relacionamento com os dirigentes dos movimentos de libertação, etc.;
. reservas, sobre a capacidade de os governos provisórios governarem sem a participação directa do MFA, dado que se procurava que fossem governos de unidade;
. contrariar as ambições de poder pessoal do general Spínola;
. levar à prática o conteúdo democrático, político, económico e social e cultural do programa, numa situação em que eram evidentes os sinais da confrontação de interesses de classe entre, por um lado, os antigos detentores do poder político-económico e sectores da burguesia e, por outro lado, as grandes massas de trabalhadores e assalariados.
. garantir um processo de descolonização que não fosse neocolonialista e no qual os militares, que haviam feito a guerra colonial, tivessem um papel preponderante.
. a esperança, a confiança bem visíveis que a população tinha no nosso Movimento.
Poderemos dizer que à presença temporária do MFA na área do poder executivo se deveu a capacidade governativa para tomar medidas tão relevantes e urgentes como a manutenção da actividade económica, as medidas de transformação socio-económica (nacionalizações, reforma agrária), processo de descolonização e uma política externa de afirmação da soberania nacional, nomeadamente no seio da NATO?
Não tenho a mínima dúvida a esse respeito. Mas gostaria de salientar que em todos os governos de que fiz parte houve sempre elementos civis de grande valor e competência técnica que muito contribuíram politicamente para a capacidade governativa que referiu ao identificarem-se com as orientações mais progressivas do Programa do MFA. E salientar ainda que as medidas tomadas foram também possíveis pelo apoio popular que as sustentou, que era uma componente da aliança Povo-MFA, motor da Revolução.
A esta distância, que balanço faz do papel dos governos provisórios (II-V) a que presidiu, nomeadamente no processo de democratização pós-25 de Abril?
Faço um balanço muito positivo. Durante a vigência desses governos foram alcançadas grandes conquistas no domínio do exercício das liberdades e dos direitos políticos, cívicos, laborais, sindicais, com o reconhecimento da existência de partidos políticos, de sindicatos, a responsabilização directa do Estado pela efectivação dos direitos ao trabalho, à saúde, à educação, à cultura, à segurança social, à habitação, ao desporto, à fruição de tempos livres. Estes direitos dignificaram a condição de cidadão e de trabalhador.
Nomeadamente em 1975 e até à queda do V Governo Provisório, vivemos o período mais criador da Revolução com as profundas transformações operadas nos domínios económico e social, com as nacionalizações da banca, dos sectores básicos da produção, das companhias de seguros, das principais empresas dos transportes e comunicações, a reforma agrária, etc.. Foi criado um poderoso sector empresarial do Estado, surgiram unidades colectivas de produção e cooperativas nos campos do Ribatejo e do Alentejo.
Ainda houve tempo para que os trabalhadores, o povo sentissem os efeitos positivos da nova política no seu concreto dia-a-dia?
As transformações estruturais criaram condições fundamentais para que o poder político, legitimamente escolhido pelo nosso povo, pudesse ter um papel decisivo na orientação da economia, e por essa via o poder político dominasse o poder económico.
Desse modo, foi nitidamente melhorada, a favor dos trabalhadores, a distribuição funcional do Rendimento Nacional, isto é, a distribuição do rendimento entre o capital e o trabalho.
As transformações estruturais realizadas, a política económica dos II ao V Governos Provisórios, a participação dos trabalhadores e as melhorias salariais fizeram que o desempenho da economia portuguesa “fosse extremamente robusto quando as incertezas políticas de 1975 são levadas em conta”, como foi dito por entidades competentes e insuspeitas.
Quando o movimento dos jovens oficiais pôs fim à mais antiga ditadura europeia, os EUA ainda estavam atolados numa guerra brutal no Vietnam e a economia capitalista mal acordava de um gravíssimo choque petrolífero, a que estivemos longe de ser alheios. Entretanto, outras ditaduras caíram (sobretudo na Europa) e o pesadelo do Vietnam acabou. Parecia que as coisas do mundo tomavam outro rumo… Mas, ao termos esta conversa, os EUA estão de novo enterrados numa guerra incompreensível, contra o Iraque, a crise do capitalismo não é palavra de retórica, as desigualdades sociais agravaram-se num mundo, paradoxalmente, de abundância por vezes obscena… Que pontes nos restam? Para onde?
O capitalismo já ultrapassou a sua época de progresso como sistema económico-social necessário que foi ao desenvolvimento da sociedade. Mas contém, ainda hoje, dados os meios económicos, científicos e técnicos e a influência que as suas ideias, como ideias das classes dominantes, têm na opinião pública e a sua capacidade de adaptação a novas situações, potencialidades grandes de sobrevivência, embora gere, cada vez mais, contradições. Hoje encontra-se numa fase, cada vez mais acelerada, de crises sobre crises, que o empurram para o recurso à guerra.
Quanto mais acelerado é o desenvolvimento da revolução científico-tecnológica, mais se agravam as contradições entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção.
Após a 2ª Guerra Mundial houve mais de duas décadas de crescimento económico expansivo. O capitalismo, pela sua própria natureza, tem a capacidade de produzir mais mercadorias do que as que pode vender, do que resultam as crises de sobreprodução e subconsumo. Mas as quase três décadas pós-2ª Guerra Mundial, a formidável destruição das forças produtivas, permitiram um crescimento económico expansivo, praticamente contínuo, sem que houvesse uma ameaça iminente de uma grande crise de sobreprodução. Foi o período do “modelo social europeu”. Nos países desenvolvidos, os trabalhadores, os assalariados, conquistaram direitos laborais e sociais, aumentos salariais, férias, subsídios de desemprego, etc. etc..
A existência da ex-URSS obrigava o capitalismo a uma áspera competição ideológica, a mostrar que, também neste sistema, poderia haver uma redistribuição crescente do rendimento nacional, favorável aos trabalhadores.
Mas, no fim dos anos 70, esgotado o período de crescimento expansivo, o capitalismo, porque se verificava uma crescente baixa da taxa de lucro e um perigoso aumento da inflação, entra em semi-recessão voluntária e permanente. Recorre, fundamentalmente, a três meios para valorizar o capital: o desemprego, a especulação financeira e a fusões (a mega-fusões). Surge a tendência para a exclusão social, para além do desemprego.
Neste novo período, o neoliberalismo impõe-se como doutrina dominante do sistema, arredando, pela própria força da lógica interna deste, a doutrina e a prática keynesianas, que haviam conduzido a política económica do capitalismo, nas décadas do pós-guerra, nos chamados “trinta gloriosos anos”, durante os quais surgira o “modelo social europeu”.
A derrocada da União Soviética e dos Estados socialistas europeus fez o imperialismo ficar sem o seu inimigo principal, e o movimento dos trabalhadores e o movimento revolucionário ficaram sem o que havia sido ou entendido como a sua “retaguarda estratégica”.
Assim há condições para a política de globalização neoliberal, encabeçada pelos EUA, apoiados pelos seus aliados dos países capitalistas mais desenvolvidos.
É neste contexto que se agravam as contradições entre os EUA e os seus poderosos aliados, cresce de maneira colossal o poderio militar dos EUA como instrumento de uma estratégia de domínio planetário. Vejam-se, por exemplo, as diversas guerras dos anos 90, Panamá, Palestina, Iraque, entre outras e ainda as deste século.
Para essa estratégia de domínio planetário, que resposta? Globalização contra globalização…
Passada a década de 90, em que parecia que o capitalismo gozava de uma hegemonia ideológica absoluta, os povos começam a compreender a situação e, pela primeira vez, se verifica, por exemplo, uma verdadeira manifestação mundial, dir-se-ia global, contra a globalização neoliberal e a guerra. “Um mundo melhor é possível”, é o grito comum dos povos.
Isto mostra bem a gravidade da crise capitalista. Passada uma década de relativo desafogo político e ideológico, para o capitalismo, os povos procuram de novo “a alternativa”.
Porquê? Porque, para além da defesa da paz, os povos, e, dentro destes, os sectores da população mais desclarecidos, vão compreendendo que é impossível uma prática de redistribuição social da riqueza, subordinada a um sistema de reprodução do capital (lucro), fundamentado na concentração económica e financeira aguda e acelerada, precisamente o fundamento da globalização neoliberal.
Pergunta-me: Que pontes nos restam? Para onde?
Antes de mais, a resistência activa, ou seja a procura tenaz e lúcida de formas criativas, inovadoras e capazes de atrair e mobilizar sectores da população cada vez mais amplos.
Duas alternativas, ou duas possibilidades, defronta o homem quanto ao seu futuro:
. ou a destruição das condições de vida humana e do homem, na Terra, – consequência da agudização das contradições antagónicas insolúveis resultantes do modo de produção capitalista, e da utilização, por este, dos formidáveis progressos da revolução científico-técnica para o aniquilamento da vida e dos recursos que a Terra oferece ao homem: destruição, poluição química, bactereológica e radiológica; se a lógica própria da essência e da natureza de desenvolvimento capitalista e imperialista não é travada, o homem corre esse risco;
. ou a substituição do capitalismo por uma sociedade superior, de justiça social, uma verdadeira sociedade socialista.
Mas será, hoje, racional, não será utópico pensar que a acção consciente e organizada dos povos, conjugada com as contradições insanáveis do capitalismo, será capaz de suprimir esse sistema e criar a tal sociedade superior?
Penso não ser uma utopia, embora não se possam precisar prazos, uma vez que tanto a crise económica como a guerra têm potencialidades quer para prolongar a vida do sistema capitalista, quer para criar situações revolucionárias.
Neste contexto, a missão das forças patrióticas, democráticas e progressistas, em todo o mundo, é a luta, no quotidiano, continuadamente, persistentemente, tenazmente, com base nas mais diversas questões concretas pela consciencialização política e social das populações e sua disponibilidade para a luta, pela sua mobilização, pela efectiva participação popular, pela defesa dos seus legítimos e justos interesses, por um Portugal e por um Mundo melhores e pela Paz. Luta, na qual, sem dúvida, têm um papel decisivo a existência e a orientação política revolucionária dos partidos e dos sindicatos; dos movimentos e associações democráticas e progressistas, nos mais diversos domínios da actividade social, que tenham, também, uma orientação e uma prática convergentes na criação da já referida resistência activa, que visa o surgimento de uma nova sociedade. Só assim se poderá ir ganhando espaço nas instituições, nos governos, no poder legislativo, no poder local, na luta contra o neoliberalismo, contra a guerra, para que se acumulem as condições sociais e políticas para a mudança.
A acumulação da força política e social é condição prévia para atingir uma situação conjuntural que já não possibilite que “os de cima” exerçam e mantenham o seu domínio na sociedade.
Foi uma situação deste tipo, em que “os de baixo” já não aceitavam a subordinação às directivas do comando militar e do governo, e estes já não tinham força para as fazer cumprir que, quanto aos militares, se verificou o 25 de Abril, após 13 anos de guerra colonial.
«O Militante» – N.º 264 Maio/Junho de 2003