Entrevista com Octávio Pato
Publicada no Jornal «Avante!» de 21 de Março de 1996
Em 28 de Julho de 1946 realiza-se no Lumiar, uma reunião que
ia ficar na história da luta antifascista. Nomes hoje conhecidos da
política nacional, da cultura e da ciência, então jovens e na sua
maioria comunistas, constituiam-se em Comissão Central do que ia ser o
MUD Juvenil. Octávio Pato, então um jovem comunista e hoje dirigente do
PCP – membro do Secretariado do Comité Central, fez parte desse grupo
que arrancou com um movimento de massas da juventude. É sobre esse
tempo e essas lutas que conversámos.
Como surgiu a necessidade da criação deste movimento específico no seio
do Movimento de Unidade Democrática que nascera no ano anterior?
Havia a Federação das Juventudes Comunistas Portuguesas. E o Partido
constatava que esta era, em grande medida, uma organização
relativamente fechada e sem grande projecção e influência de massas.
Ora, no período de 1945, após a 2ª Guerra Mundial, aparece o MUD e
abrem-se perspectivas do desenvolvimento da luta de massas e até de
certas possibilidades de ordem legal ou semi-legal. O MUD nasce em
Outubro de 1945 e, na base do MUD, começam a surgir várias organizações
mais ou menos legais da juventude.
Apareceu, por exemplo o MAUD – Movimento Académico de Unidade
Democrática -, designadamente em Lisboa. Aparecem outras organizações
em várias regiões do País, começam a criar-se as condições necessárias
para a criação de um movimento muito mais largo do que era a Federação
das Juventudes Comunistas Portuguesas.
Fazem-se várias reuniões preparatórias para se discutir se de facto
devemos ou não trabalhar para uma organização mais larga do que a FJCP.
Em algumas delas participaram o Álvaro Cunhal e outros camaradas.
Na altura da criação do MUD Juvenil, eras funcionário do Partido?
Vim para funcionário do Partido em Setembro de 1945. E fiquei em
contacto com as organizações da FJCP da região de Lisboa. Quando se
concluiu que estavam criadas as condições para um movimento unitário,
unificado e autónomo da juventude democrática, a Direcção do Partido
entendeu que eu viesse a integrar a direcção desse mesmo movimento.
E a minha clandestinidade passa a ser semi-clandestina…
Isto mostra a audácia e a maleabilidade orgânica da Direcção do
Partido. A situação tinha-se alterado e eu ainda tinha condições para
actuar de forma mais ou menos legal. E então, eu que em Vila Franca era
conhecido por Octávio Pato – ninguém me conhecia por Rodrigues -no MUD
Juvenil fiquei a ser apenas Octávio Rodrigues… Quanto à minha
residência, andei um pouco aos saltos, daqui para acolá… Continuando
a ser funcionário do Partido – na situação de semi-legal – cheguei a
fazer um discurso no cemitério dos Prazeres, numa sessão sobre o 31 de
Janeiro, em homenagem ao Magalhães Lima. Nos jornais apareceu que "em
nome das jovens gerações falou o Octávio Rodrigues". A Pide estava lá,
certamente, mas não me identificava com o comunista de Vila Franca que
tinha passado à clandestinidade.
O Partido tem assim um papel determinante na formação do MUDJ…
Podemos dizer que o MUDJ é a criação de um movimento juvenil
unificado, mais amplo do que era a FJCP. Muito mais amplo. A base
orgânica e de quadros que esteve na base do MUDJ eram os jovens
comunistas da FJCP. A própria Comissão Central do MUD Juvenil, na
primeira reunião que se fez, em 28 de Julho de 1946, no Lumiar, ficou
constituída por Francisco Salgado Zenha, João Sá da Costa, José
Borrego, Júlio Pomar, Maria Fernanda Silva, Mário Sacramento, Mário
Soares, Nuno Fidelino Figueiredo, Octávio Rodrigues, Rui Grácio e Óscar
dos Reis. De todos os que estes, só não eram membros do Partido o Sá da
Costa, o Fidelino Figueiredo e o Rui Grácio.
Nessa reunião do Lumiar encontraram-se jovens comunistas que nunca
se tinham visto – levei lá vários jovens. Sabes como era, à porta de um
cinema, por exemplo, vem um com um jornal, faz uma pergunta, recebe uma
resposta, está certo, vamos daí.
E foi assim que vários jovens foram para essa reunião.
O MUD Juvenil correspondeu a uma medida que foi tão acertada por
parte do Partido que em 1946, no IV Congresso (II Ilegal), é decidida a
dissolução das juventudes comunistas.
Foi tão justa essa decisão que o camarada Cunhal afirmou em 47, na
reunião do Comité Central de Junho, menos de um ano depois da formação
do MUD Juvenil e com o seu impetuoso desenvolvimento, que este
"constitui, pelo que é e pelas perspectivas imediatas que se lhe
oferecem, o mais importante movimento de massas juvenil jamais
existente no nosso País".
E o que era então o MUD Juvenil?
Em 47, quando se desencadeia a semana da juventude, de 21 a 28 de
Março, o MUD Juvenil contava nas suas fileiras com 20 mil aderentes.
Hoje, em democracia, não há nenhuma organização política de
juventude nem nunca houve depois de 74, que tivesse esse número. É
certo que esta era uma organização unitária, que procurava traduzir os
problemas específicos e as reivindicações da juventude. Criou esta
projecção de massas porque foi ao encontro dos anseios e aspirações da
juventude e, por outro lado, correspondia aos anseios democráticos e
desejo de liberdade que atravessava o País de norte a sul e de forma
particulartmente vigorosa entre a juventude. O MUD Juvenil teve um
papel importantíssimo na formação de associações académicas, foi a
partir daí que passou a haver direcções eleitas ou semi-eleitas, da
mesma forma que nos sindicatos os jovens deram um grande contributo
para a acção crescente que os sindicatos passaram a ter na vida dos
trabalhadores portugueses.
Na altura em que se cria o MUD Juvenil e quando vais trabalhar aí, que tarefas tinhas a teu cargo?
As minhas tarefas eram de âmbito nacional. Andei por todo o lado. Ia
fazer reuniões ao Algarve, ao Alentejo, ao Ribatejo e ao Oeste, a
Coimbra, ao Porto, mas trabalhava muito especialmente em Lisboa, que
era o meu poiso, e na margem Sul.
Tinha reuniões com jovens do MUD Juvenil e, em alguns casos,
procurava ter encontros com dirigentes do PCP nas várias regiões, para
coordenar acções, ouvir opiniões sobre quadros, promover reuniões com
vista à implantação do Movimento nessas regiões. Esta acção semi-legal,
como membro da Comissão Central do MUDJ, durou apenas até meados de
1947. Depois há de novo um recuo. O Partido avançou comigo para uma
situação semi-clandestina, mas a partir da repressão que se foi
desencadeando, o Partido decidiu que eu recuasse. O Octávio Rodrigues
deixou de aparecer nas reuniões do MUDJ, só ia às reuniões de membros
do Partido.
Data dessa época o teu encontro com Mário Soares…
Sim, a partir de 46.
Que actividade política é que ele desenvolvia na altura?
O Mário Soares, é inegável, teve um papel importante no movimento académico em Lisboa e na formação do MUD Juvenil.
É verdade que ele te deu guarida no Colégio Moderno?
Não é exactamente como está no livro da Maria João Avillez, que diz
que eu vim de Vila Franca e passei à clandestinidade porque havia o
perigo de ser preso em consequência de umas lutas que tinham tido lugar
– ora essas lutas não foram em 46, foram as greves de 8 e 9 de Maio de
44.
É verdade que me envolvi nelas, mas não fui para a clandestinidade
nessa altura. Só em 1945. E, talvez em meados de 46, a família de Mário
Soares deu-me guarida num anexo que havia na mesma rua do Colégio
Moderno. Não era no Colégio, era no dormitório de alguns estudantes
internos. E aí estive cerca de 15 dias, um mês no máximo. E passei a
dormir noutras casas. Por exemplo na Farmácia do Sr. Baptista, pai da
Ermelinda Cortesão, que era casada com Eduardo Luós Cortesão, situada
aqui no Rego, na Francisco Tomás da Costa, conheces, tem um primeiro
andar, eu dormi aí durante muito tempo, meses.
Sozinho, uma situação levada da breca, a farmácia fechava e eu ficava lá…
E não podias aviar remédios…
Situações difíceis. E duras. Estás a ver um jovem com 20 anos…
Lembro-me do primeiro Natal que passei na clandestinidade. A passear
nas ruas de Lisboa. Estava na clandestinidade desde Setembro de 45. No
Natal estou nessa farmácia. Sei que a família toda vai jantar a um
restaurante no Natal. E eu vou para a rua para não ficar ali, e ando a
passear nas ruas a comer umas sandes. E a lembrar-me das filhoses que a
minha mãe fazia… Mas não contes isso, que não tem interesse…
Tem…
O que tem interesse, em relação ao MUD Juvenil, é salientar o
seguinte. Enquanto que o fascismo nunca conseguiu atrair a juventude –
a Mocidade Portuguesa, que era uma organização para-militar,
para-fascista, a que os estudantes eram obrigados a pertencer, nunca
conseguiu ser uma força mobilizadora -, o MUD Juvenil, que aparece em
46, lança-se em 47 na realização da Semana da Juventude, que teve uma
projecção enorme.
Ilegalizado o Movimento de Unidade Democrática pelo
governo fascista em 1948, o MUD Juvenil manteve-se até 1957. Que razões
determinaram essa persistência? Isto apesar das prisões, centenas delas
são referidas no documento apresentado na reunião do CC de 1952…
O Governo ilegalizou o MUD em 48. Para alguns jovens, a ideia era de
que, se o MUD tinha sido ilegalizado, o MUD Juvenil não tinha condições
de se manter como movimento legal. E deveria também aceitar a imposição
do governo.
Essa era a posição do Mário Soares…
Essa era a posição do Mário Soares e de alguns outros. Por parte do
Partido e da maioria dos jovens, havia a ideia de que o MUD Juvenil era
autónomo. Outros, que queriam controlar o MUD – de tendência liberal,
ou republicana, digamos assim, sempre consideraram o Juvenil como
apêndice do MUD. Nós considerávamos o MUDJ como movimento autónomo,
unitário, da juventude democrática e progressista. Inteiramente de
acordo com o MUD e em participarmos nas suas realizações, mas não
aceitando qualquer enfeudamento.
Se não continuássemos, era caso para dizer que abdicávamos completamente da luta.
O Mário Soares diz no livro da Maria João Avillez que o António
Macedo, em 48, teve a ideia "genial" de, a partir do momento em que o
MUD estava ilegalizado, se arranjar um candidato às eleições
presidenciais, transformando-se a estrutura do MUD na estrutura de
apoio ao candidato. Isto é mais do que simplificar o que se passou.
Embora ele depois reconheça que havia quem defendesse a candidatura do
Cortesão ou a do Norton de Matos, e que foi o MUNAF, com o PCP, que
apoiou o Norton de Matos. Não foi o António Macedo que teve a ideia
"genial". Havia a intenção de continuar por outras vias a luta, tão
legal quanto possível, aproveitando as condições objectivas e
subjectivas para desenvolver o movimento de massas e a luta pelas
liberdades democráticas.
O Mário Soares diz no livro que ele apareceu como secretário da
candidatura do Norton de Matos como se fosse uma coisa natural que
viesse do MUDJ. Ora o que acontece é que, inicialmente, na candidatura
do Norton de Matos, um tal Sertório Marques da Silva, aparece a querer
representar a juventude socialista, que não existia. E os jovens do
MUDJ concentraram-se na sede do Norton de Matos e reclamaram ao
candidato um representante seu na candidatura. Mas não é o Sertório
Marques da Silva, que não tem nada a ver com a juventude democrática. É
o MUDJ que deve designar o seu representante, como único movimento
democrático com implantação nacional. Foi assim que o Mário Soares
participou e foi designado para a candidatura.
Não data daí a ruptura do Mário Soares com os comunistas.
Mas começa aí. O Mário Soares não aceitava o perigo de ser preso por
ser membro de um movimento clandestino. Recuou. Ele e outros. Foi uma
ruptura que se foi acentuando progressivamente entre aqueles jovens, e
os que, com o apoio do PCP, defendiam a continuação do MUD Juvenil,
mesmo com as limitações impostas pelo fascismo.
Não considerávamos que o MUD Juvenil fosse um movimento inteiramente
legal. Não o era. O MUD também nunca o foi. Tinha as sua limitações. O
Juvenil nunca tinha sedes abertas, apoiava-se nas do MUD. Mas em 51,
muito depois já da candidatura do Norton de Matos, o MUD Juvenil abre
uma sede. Era na Rua Cecílio de Sousa, 31, 2º dtº, ali à Patriarcal,
uma casa alugada pelo Carlos Costa e pelo Aboim Inglez. E em 53 abre
outra sede, na Rua dos Anjos. Provisórias, mas duraram algum tempo.
O MUDJ teve no início a preponderância de estudantes
universitários. Mas cedo se tornou um amplo movimento de massas a que
aderiram milhares de jovens trabalhadores. Que significado, visto 50
anos depois, tem o facto de chegar a haver 20 mil aderentes em pleno
fascismo?
Entre os milhares de aderentes – estudantes e trabalhadores, rapazes
e raparigas, de várias áreas, nomeadamente muitos católicos – é
evidente que os estudantes, sobretudo nos grandes centros, eram
predominantes. Mas nas outras regiões não era assim, porque predominava
a juventude trabalhadora. O facto de no espaço de um ano este movimento
se projectar para as principais regiões do País, na base de acções
reivindicativas ou envolvendo-se nas de outras camadas da população e
em iniciativas das mais variadas, sobretudo políticas, isto só era
possível porque correspondia a anseios e aspirações profundas da
juventude.
Outra característica do MUD Juvenil foi o seu carácter amplamente unitário e o seu combate ao sectarismo.
A base orgânica que criou e impulsionou o movimento foi a dos jovens
comunistas. Em muitas regiões, a força motora e os principais
dirigentes da juventude eram comunistas. Muitos jovens sentiam o PCP
porque era a única organização que existia na luta contra o fascismo.
Mas não se olhava a saber de que tendência era este ou aquele jovem. E
até havia a preocupação de atrair jovens não comunistas ou até
afastados – até jovens da Mocidade Portuguesa ou das Juventudes
Católicas.
Estas não tinham nenhuma acção antifascista mas tinham um papel aglutinador de milhares de jovens.
Há muitos nomes conhecidos da política actual e muitos quadros dirigentes do Partido que passaram pelo MUD Juvenil.
Foi uma verdadeira escola de formação de quadros revolucionários.
Que se projectaram muito para além do movimento. E muito para além até,
de Portugal. Temos vários dirigentes comunistas. O Carlos Costa, o
Ângelo Veloso, o Carlos Aboim Inglez, o Aurélio Santos, o Domingos
Abrantes, a Maria da Piedade Morgadinho, o Ilídio Esteves, o António
Abreu (Pai), o Areosa Feio, o Hernâni Silva, o João Honrado. Isto sem
falar no Mário Soares, no Salgado Zenha e noutros mais de outras
tendências. E estou a falar em apenas alguns…
Dos principais movimentos de libertação das antigas colónias, há
dirigentes que foram presos como militantes do MUD Juvenil. São os
casos do Agostinho Neto, do Lúcio Lara, dirigente do MPLA e do governo
angolano, do Vasco Cabral, da Guiné-Cabo Verde, do Marcelino dos
Santos, de Moçambique.
Até tens este documento da Comissão Central do MUDJ, com a data de
Outubro de 53, "Carta aos Jovens Coloniais de Lisboa", que fala da
estada de jovens de Moçambique, de Angola, de Goa, da Guiné, de S.Tomé
e de Cabo Verde, em festivais mundiais da juventude. E refere a certa
altura "Reconhecemos aos povos das colónias portuguesas o direito à sua
independência nacional". Isto em 53!
Recordas-te da Semana da Juventude que agora se vai comemorar?
Foi uma Semana enquadrada numa realização desencadeada a nível
internacional pela Federação Mundial da Juventude Democrática. Em
Portugal, envolveu numerosas iniciativas – passeios, excursões,
confraternizações, exposições de arte – por exemplo na Sociedade
Nacional de Belas Artes, que foi encerrada nessa altura. Isto
estendeu-se à margem sul, à zona de Sintra, em Lisboa houve várias
realizações, em Coimbra, no Porto. E no Algarve houve a jornada de
Belamandil, com milhares de pessoas, chegou a meter a GNR, tanques, os
fascistas ficaram assustadíssimos…
Perante estas acções, o fascismo desencadeia uma acção repressiva em
que é presa toda a Comissão Central do MUD Juvenil, menos eu, que me
encontrava numa situação semi-clandestina. Mas imediartamente a
Comissão é substituída por outra, provisória. E a seguir começam a ser
presos jovens às centenas, em todo o País. Mas se uma comissão que era
presa, no dia seguinte aparecia uma comissão provisória, para continuar
a luta.
Tu próprio, dirigente do MUD Juvenil, foste um dos mais jovens dirigentes do Partido nessa época. Qual foi o teu percurso?
Eu entrei para o Partido – para a FJCP, mas nessa época era a mesma
coisa – com 16 anos, em 1941, no período da reorganização, na altura em
que as tropas nazis invadiam a União Soviética, um período negro em que
se pensava que o nazismo ia dominar o mundo inteiro. Entrei para o
Partido em Vila Franca de Xira, a minha terra, trabalhava já na
sapataria desde os 14 anos, onde era mais operário do que empregado.
Com 20 anos vim para funcionário do Partido. Em 1945. Em 48 fazia parte
da Direcção Regional de Lisboa, juntamente com o Manuel Rodrigues da
Silva, o Soeiro Pereira Gomes e o António Dias Lourenço.
Em 49 fui cooptado para membro suplente do Comité Central, com 24
anos. E em 1952, com 27 anos, era membro do Secretariado do CC. Até ter
sido preso, em Dezembro de 1961.
E já agora, que falamos de juventude. Como vês hoje a necessidade do rejuvenescimento do Partido?
Sabes que isso não é uma tarefa de hoje ou de amanhã. A necessidade
de rejuvenescimento é uma constante. E que há sempre que dar atenção à
firmeza ideológica e política dos quadros e não nos basearmos apenas
naquilo que eles possam parecer. Mas sem audácia na promoção de quadros
jovens não há a necessária renovação do Partido.
Entrevista conduzida por Leandro Martins