Recordações da cadeia de Peniche

Recordações da cadeia de Peniche

José Vitoriano

Quem viveu alguns anos na cadeia do Forte de Peniche na condição de preso político tem certamente um monte de estórias para contar. Estórias que são dolorosas, umas, outras até cómicas, todas elas ligadas ao quotidiano da vida prisional e às muitas lutas que os presos políticos ali levaram a cabo, particularmente nas décadas de 50 e 60.

Aspectos da vida na prisão

A péssima alimentação fornecida pela cadeia; as limitações e tantas vezes proibições à entrada de certos produtos alimentares que a cadeia não dava e as famílias traziam, como fruta e lacticínios, por exemplo; as frequentes limitações e cortes nas visitas; as discriminações e proibições à entrada de livros de ficção ou de estudo, ou outro material didáctico que contribuísse para a melhoria do nível cultural dos presos (momentos houve em que a um operário não permitiam receber um livro de economia ou de aprendizagem de francês, por exemplo); a censura da cadeia aos jornais autorizados a entrar e que chegavam frequentemente às mãos dos presos todos recortados; as restrições a tudo que pudesse suavizar a vida dos presos e permitir que estes tirassem do tempo obrigatoriamente ali passado a maior utilidade possível para a vida e para a luta que cá fora continuava e de que não tinham desistido, eram o pão nosso de cada dia.

O lema dos carcereiros de que os presos tinham que sentir que estavam presos era rigorosamente levado à letra.

As prepotências e provocações dos carcereiros, sobretudo de alguns guardas, eram o prato de todos os dias.

Tudo isto além do muito que aqui se não refere, era motivo de frequentes lutas dos presos e suas famílias e de momentos de grande tensão na cadeia, que levou algumas vezes a movimentações de solidariedade do exterior.

Um numeroso contingente de guardas prisionais – em dado momento cerca de 50 -, chefiado por um indivíduo que, sempre que considerava a propósito, não hesitava em gabar-se perante os presos de que já tinha morto e visto matar muitos comunistas (tinha estado na guerra civil de Espanha), se encarregava do cumprimento escrupuloso desse triste papel repressivo que o fascismo lhe atribuía, tendendo sempre para o excesso e sempre escudado nas "ordens recebidas".

Nesse conjunto de guardas prisionais, com frequência sujeitos a prelecções do chefe e a quem este transmitia também instruções por escrito – "o preso deve ter a sensação de que está sempre sob o olhar vigilante do guarda" (dizia uma dessas instruções) -, encontravam-se indivíduos de personalidades muito diferentes. Desde alguns que tinham um comportamento equilibrado, não andando à procura de motivos para deliberadamente perseguirem os presos políticos, até aos que estariam convencidos de que era exactamente essa a sua missão na terra e a executavam friamente e com o sentido do dever cumprido.

Por vezes chegavam à cadeia novos guardas vindos doutros estabelecimentos prisionais ou iniciando ali as suas funções. Nos primeiros contactos com os presos comportavam-se como pessoas normais.

Passadas semanas ou meses tinham sofrido já uma enorme transformação.

A vivência longa que alguns de nós tivemos com esses indivíduos permitiria, com algum rigor, fazer um estudo e traçar o perfil da personalidade de cada um deles. É esse perfil que aqui vamos dar de um desses guardas, o guarda Ricardo.

O guarda Ricardo

Era um guarda corpulento, de aspecto rude, traços duros, de poucas falas, não me recordo se alguma vez o vi sorrir.

Natural de uma aldeia dos arredores de Peniche, tal como tantos outros da mesma vila e arredores, tinha sido admitido nos serviços prisionais e colocado na cadeia de Peniche quando esta transitou do Ministério do Interior para o da Justiça.

Era conhecido entre os presos pelo Tarro. Aconteceu até que um preso, convencido de que este era mesmo o seu nome, o terá tratado durante algum tempo por senhor Tarro e ele nunca reagiu, não sabemos se porque não se apercebeu, dada alguma semelhança fónica entre as duas palavras, se simplesmente por preguiça.

O guarda Ricardo poupava-se quanto podia a qualquer esforço. Respondia habitualmente às perguntas e solicitações dos presos por gestos, geralmente com a cabeça, ou por monossílabos um tanto arrastados. E tinha um forte gosto (ou gozo) em responder, por sistema, de modo contrário às perguntas ou pedidos dos presos, quer estes fossem formulados na afirmativa quer na negativa.

Não se pode, no entanto, dizer que fosse um indivíduo provocador ou perseguidor dos presos fora dos períodos de tensão na cadeia. Não facilitava, não fazia favores, mas não andava deliberadamente à procura de motivos para lhes fazer a vida negra. O que ele queria era que não o chateassem muito.

Conhecedores da psicologia deste homem, os presos conseguiam muitas vezes respostas satisfatórias às suas solicitações. Bastava fazerem-lhe a pergunta ou o pedido na negativa. Por exemplo: – Senhor Ricardo, eu agora não posso ir ao refeitório, pois não?

Uns segundos de silêncio e vinha a resposta: – Pooode!

Se a pergunta fosse feita na afirmativa era certo e sabido, como regra, que naquele momento não se podia ir ao refeitório, só mais tarde.

Mas o guarda Ricardo não era assim só para os presos, sê-lo-ia também com os colegas.

Depreende-se isso do episódio que a seguir se conta.

Acontece que os carcereiros não permitiam, sem a prévia autorização do guarda de serviço, que os presos distribuíssem entre si quaisquer alimentos que tivessem recebido das suas famílias. Aquele, perante o pedido, podia dizer sim ou não.

Isto ocorria geralmente no refeitório às horas da refeição e com frequência originava conflitos quando os guardas levantavam dificuldades.

Uma dia, Carlos Brito teve visita de familiares que lhe levaram umas coisas de comida. À tarde, no refeitório, na última refeição do dia, pretendeu dividir o que tinha recebido com os companheiros. Nesse sentido, fez o pedido ao guarda de serviço.

Este guarda era um tipo das arábias, regulamenteiro até à medula. Para se ter uma pálida ideia da inteligência (ou maldade) deste sujeito bastará dizer que um dia proibiu uma criança de chupar um rebuçado quando acompanhada da mãe visitava o pai porque o regulamento dizia que era proibido comer nas visitas. Outra vez, também nas visitas, proibiu uma conversa sobre futebol porque o regulamento dizia que só eram permitidas conversas sobre assuntos familiares, o que não era o caso do futebol. Outra vez, ainda, proibiu no recreio uma discussão sobre Platão porque o regulamento dizia que os presos não podiam discutir política. Estes três exemplos, entre muitos outros que se poderiam citar, chegarão para definir este guarda que dava pelo nome de Lousada.

Ao pedido de Carlos Brito, o guarda respondeu não. Provavelmente o regulamento era omisso nesta questão, ficando ao critério do guarda.

Gerou-se discussão e Carlos Brito pediu para ir falar com o chefe de pavilhão. Neste caso o pavilhão era um bloco de dois pisos, com quatro salas em cada piso e um guarda de serviço em cada um deles, havendo um terceiro guarda que era o chefe de pavilhão e que era chamado a decidir em última instância sobre qualquer problema que surgisse no local.

Ora o chefe de pavilhão nesse dia era o nosso guarda Ricardo.

E lá foram o guarda de serviço ao refeitório e Carlos de Brito ao chefe de pavilhão.

Aqui, o guarda quis ser ele a informar mas Carlos Brito reagiu e conseguiu ser ele a expor o que se tinha passado. Mal acabara de falar e já o guarda Lousada estava a perguntar: – Não pode dar, não é verdade senhor Ricardo?

Segue-se algum silêncio e ouve-se o guarda Ricardo: – Ora deixe-me reflectir…

Passam uns segundos e vem a resposta: – Pode dar!

Provavelmente se o guarda Lousada tem posto a questão na afirmativa teríamos sido privados de partilhar da sobremesa que a família de Carlos Brito lhe trouxera nesse dia.

«O Militante» Nº 235 – Junho / Agosto – 1998