Lutas sociais e luta política
Aurélio Santos
1. Neste ano em que se comemoram os 25 anos do 25 de Abril não pode deixar de se referir a importância que, tanto para a criação das condições para o seu êxito como para a natureza e conteúdo das transformações revolucionárias que ele lançou na sociedade portuguesa, tiveram as grandes lutas reivindicativas desenvolvidas no País a partir de Outubro-Novembro de 1973.
O impulso de arranque para essa vaga de lutas foi dado pela grande campanha política de massas promovida pela oposição democrática, com participação decisiva dos comunistas, através da CDE (Coligação Democrática Eleitoral), aproveitando a farsa eleitoral marcelista para a Assembleia Nacional fascista, realizada em 28 de Outubro de 1973.
De Outubro de 1973 até ao 25 de Abril, além de muitas centenas de lutas nas empresas, mais de 100.000 trabalhadores dos centros industriais e milhares de trabalhadores agrícolas do Alentejo e Ribatejo participaram numa vaga de greves que abalou fortemente o regime fascista.
Importantes no desencadeamento desse movimento foram as greves de Outubro e Novembro do ramo electrónico (Plessey, de Lisboa e de Corroios, Standard Eléctrica e Apellaid, da zona de Lisboa, Signetics de Setúbal, ControlData, de Palmela). Desenvolveram-se ao mesmo tempo fortes processos reivindicativos na Cometna, na Sorefame e outras empresas da Venda Nova, bem como nas grandes empresas de Sacavém, com destaque para a Robialac e a Dyrup.
Nessas lutas, com uma intervenção decisiva das organizações do PCP, foi sendo elaborado um caderno reivindicativo que, para além da questão central de aumentos salariais para fazer face à subida do custo de vida, apontava para novos direitos que representavam uma significativa promoção do estatuto dos trabalhadores: 13º mês, semana de 40 horas, subsídio de férias a 100%, feriado no 1º de Maio.
O alargamento e intensificação da luta verificou-se logo nos primeiros dias de 1974. A 2 de Janeiro foi a greve e concentração de praticamente todos os operários da Cometna; de 7 a 9 de Janeiro fizeram greve os trabalhadores da Robialac, a 9 os da Dyrup, de 15 a 18 os da Sorefame, a 16 os da Electro-Arco, a 17 os da BIS, da Comportel, do Rossel e novamente os da Cometna, a 17 os da GIL, a 21 os da Melka, a 22 os da CIM, de 26 a 27 os da Tudor, a 28 os da Dialap. O movimento continuou em Fevereiro com as greves da Fundição de Oeiras, de 1 a 4, mais uma vez da Sorefame a 6, da Cipan a 5 e 6, da Dialap, de 4 e 10, do Metropolitano de 18 a 20, da Vitralisa a 19. Também noutras regiões do País se desenvolveu o movimento grevista: a 4 de Fevereiro na Casa Nerey de Torres Novas, a 5 na Duarte Ferreira do Tramagal, a 8 na indústria vidreira da Marinha Grande, entre 18 e 20 no Arsenal do Alfeite.
Este poderoso movimento grevista, que prosseguiu de formas diversificadas até ao 25 de Abril, desenvolvido a partir de palavras de ordem e de uma plataforma reivindicativa adiantada pelo PCP, foi acompanhado por grandes movimentações reivindicativas de carácter nacional conduzidas pelo movimento sindical unitário, com particular destaque para os metalúrgicos e os bancários.
Para esse reforço e alargamento contribuiu em medida fundamental a acção da Intersindical, criada em Outubro de 1970.
A Intersindical defendeu como objectivo central a liberdade e independência das organizações de classe em relação ao Governo, a democracia interna e a unidade do movimento sindical, o direito à greve. Apresentou no Congresso da Previdência, organizado pelo Governo fascista, uma “Tese dos Sindicatos” que se tornou uma bandeira de luta do movimento sindical. Lançou uma grande campanha pelo salário mínimo nacional. Desenvolveu muitas iniciativas e acções de massas contra a exploração patronal, contra a política sindical e social fascista, contra o Governo. Quando se deu o 25 de Abril os sindicatos participantes na Inter associavam meio milhão de trabalhadores. O seu papel dinamizador acentuou-se na grande vaga de lutas reivindicativas de 1973-74, não apenas na acção, mas também através da imprensa sindical que, furando a censura fascista, difundia com grande acutilância uma rápida transmissão de informações sobre as lutas dos trabalhadores e sobre as suas reivindicações e palavras de ordem.
Em toda esta movimentação revelou-se a influência recíproca entre o movimento operário e o movimento democrático. Assim como no início da manobra marcelista da demagogia liberalizante, em 1969, o movimento democrático recebeu o impulso dado pelos trabalhadores através dos “grupos sócio-profissionais” da CDE, também a luta reivindicativa, em que se desenvolviam reivindicações de carácter político, alargou e reforçou a base de massas do movimento democrático nos meses que antecederam o 25 de Abril. (1)
2. A experiência da luta antifascista em Portugal registara já antes do 25 de Abril outros momentos em que a ligação entre a luta social e a luta política se revelou de forma particularmente destacada. Foi assim com as grandes lutas dos trabalhadores que, nos anos de 1943 e 1944, estiveram directamente ligadas ao forte impulso que o movimento democrático ganhou e que veio ao de cima no após-guerra. Foi assim, também, em 1962, com especial destaque para as manifestações do 1º de Maio e as lutas do proletariado agrícola pelas 8 horas, que deram uma importante contribuição ao desenvolvimento da oposição democrática reflectido, designadamente, na criação da Frente Patriótica de Libertação Nacional.
As greves de 1943/44, deve lembrar-se, surgiram no contexto da reactivação da luta antifascista nos anos da guerra, após a reorganização do PCP em 1940/41.
O movimento grevista iniciou-se em fins de 1941, com greves na Covilhã. Em 1942 rebentam lutas camponesas contra o envio de géneros para a Alemanha nazi. Em Outubro-Novembro de 1942 regista-se uma vaga de greves em Lisboa e arredores. O ponto de viragem da situação verifica-se em Julho-Agosto de 1943, quando, sob a direcção do PCP, o movimento grevista atinge grandes proporções, mobilizando 50.000 trabalhadores, a quase totalidade dos operários industriais de Lisboa e da Margem Sul (2) .
Em 1944, audaciosamente, o Secretariado do CC apela publicamente para os trabalhadores fazerem greve a 8 e 9 de Maio (3) . Esse apelo mobilizou-os para a luta, com fortes movimentos de greve e manifestações, em Lisboa, Vila Franca de Xira, Alhandra, Loures, Ape-lação, Camarate, Queluz, Sacavém, Santa Iria da Azóia, Póvoa de Santa Iria, Amadora, Pero Pinheiro, Barreiro, Famalicão, Guimarães, Santarém e noutras localidades do País.
É neste quadro que se forma o Movimento Nacional de Unidade Anti-Fascista (MUNAF), com a participação de comunistas, socialistas, republicanos, católicos, monárquicos liberais e outros antifascistas de várias tendências, o que constituiu um histórico passo em frente na luta do povo português pela democracia, com a passagem da oposição à luta aberta contra a ditadura, como se verificou no após-guerra. (4)
3. A inter-relação entre a luta social de classe dos trabalhadores e a luta política pela democracia não constitui apenas uma realidade histórica verificada na experiência da luta do povo português contra a ditadura fascista. É uma relação que marca toda a evolução das sociedades divididas em classes e tem plena actualidade no mundo de hoje.
A luta social de classes, na sua vertente reivindicativa, sempre foi um factor decisivo no desenvolvimento da sociedade.
Essa luta influencia o próprio processo de desenvolvimento da produção. A luta de classe dos trabalhadores é, com efeito, uma das principais razões que obrigam ao aperfeiçoamento técnico da produção: para o capitalista, por exemplo, a forma mais fácil de aumentar o seu lucro (sempre que a correlação de forças lho permite) é a intensificação da duração e do ritmo do trabalho e a redução do salário real.(5)
Mas a luta de classes tem sido e é, também, um factor indispensável para o desenvolvimento político da sociedade.
Como a história tem provado, os trabalhadores, a classe operária e os outros assalariados, estão vitalmente interessados no processo de democratização da sociedade, já que uma larga e real democracia lhes permite uma melhor defesa dos seus direitos e aspirações.
Por outro lado, a própria experiência dos trabalhadores, na defesa e aplicação dos seus direitos e aspirações, os conduz à compreensão das limitações da democracia capitalista e à necessidade da luta contra todo o sistema de exploração capitalista. (6)
É, aliás, na luta de classes, na sua experiência quotidiana, que melhor e mais amplamente se forma a consciência social e política dos trabalhadores. É aí que a luta de classes se revela mais claramente como uma realidade objectiva e uma força social, ganhando a dimensão da acção de massas. É aí que se forja, revigora e renova a consciência de classe necessária para a iniciativa e aprofundamento da acção política dos trabalhadores. E é principalmente com a sua luta de classe que os trabalhadores intervêm na criação da correlação de forças que, no plano político, pode alterar as condições de organização da sociedade.
Foi também isso que se verificou no processo da revolução portuguesa de Abril e no desenvolvimento das suas conquistas, comprovando-se, por outro lado, a importância decisiva do poder político para a concretização e defesa dessas conquistas.
Não é, portanto, possível separar a luta política dos trabalhadores da sua luta económica em formas “puras”. Vemos isso nos nossos dias. As reivindicações económicas tradicionais (elevação de salários, diminuição da jornada de trabalho, direitos sociais) ganham cada vez mais significado político, já que atingem também a política do Estado, subordinada aos interesses de classe do grande capital.
O próprio desenvolvimento da revolução técnica e científica se torna um factor importante a ter em conta na luta de classes na época actual. Conduz a alterações importantes no interior da classe operária, determina em grande parte o carácter das suas exigências, assim como as posições das outras forças sociais. Exige maior preparação cultural e técnica dos operários e reforça na sua actividade as operações ligadas ao trabalho intelectual, mas impõe-lhes maiores pressões e esforços psicológicos. Acelera a expropriação e liquidação das classes intermédias ligadas à produção, mas com isso alarga o assalariamento como processo fulcral do capitalismo, alargando também a aplicação do próprio conceito de “proletariado” (7) . Aumenta a produtividade mas cria crescentes massas de produções excedentes e de desempregados e excluídos, demonstrando a incapacidade de o capitalismo resolver os problemas do desenvolvimento da sociedade humana.
Notas:
(1) Carlos Brito, em “Tempo de Subversão”, onde relata estas greves, observa: “deve assinalar-se, a propósito, que da parte de militares, envolvidos no Movimento (dos Capitães) chegavam ao PCP apreciações que enalteciam as greves e que até encareciam a importância delas continuarem”.
(2) José Gregório, no relatório ao III Congresso do PCP, referia: “Pela maneira como organizou e conduziu as jornadas de Julho/Agosto, o nosso Partido dirigiu o maior movimento operário desde o advento do fascismo, obteve uma grande vitória política sobre o fascismo, tornando-se cada vez mais aos olhos do povo português o verdadeiro dirigente das massas operárias e camponesas”. (Relatório sobre “O Partido e as grandes greves de 1942 e 1943”).
(3) Sérgio Vilarigues, no “Avante” de 13.5.99, assinala: “Longe porém de intimidar os trabalhadores o Manifesto do Partido provocou o seu entusiasmo e galvanizou-os para a luta”.
(4) No prefácio da recente edição do seu relatório ao IV Congresso do PCP, Álvaro Cunhal destaca: “O Conselho Nacional (do MUNAF) tinha definido como objectivo «instaurar um governo Nacional Democrático em que estejam representadas todas as correntes de oposição antifascista e que dê ao povo Português a possibilidade de escolher, em eleições verdadeiramente livres, os seus governantes». Estes foram sempre, com pequenas variantes, os objectivos definidos pelo PCP na luta contra a ditadura”. (Edições “Avante!”, 1997).
(5) É também o que se regista, actualmente, com a transferência pelo capital de parte das suas empresas para países onde são menores os direitos dos trabalhadores, ao mesmo tempo que, aproveitando a actual favorável correlação de forças, lança nos seus países, a pretexto da competitividade, uma ofensiva contra direitos adquiridos dos trabalhadores, agravando as condições de trabalho (polivalência, flexibilidade, etc.) e retirando direitos sociais.
(6) A luta pela democracia não pode ser identificada com a luta pelo socialismo, mas também não se pode separar uma da outra. Como dizia Lénine: “… tal como não é possível um socialismo vitorioso não realizando uma democracia completa, assim também o proletariado não se pode preparar para a vitória sobre a burguesia sem conduzir uma luta consequente e revolucionária, sob todos os aspectos, pela democracia”.
(7) Numa nota à edição inglesa de 1888 do “Manifesto Comunista”, Engels, clarificando os conceitos de “burguesia” e “proletariado”, escrevia: “Por burguesia entende-se a classe dos capitalistas modernos, proprietários dos meios de produção social e empregadores do trabalho assalariado. Por proletariado, a classe dos trabalhadores assalariados modernos, os quais, não tendo meios próprios de produção, estão reduzidos a vender a sua força de trabalho para poderem viver”.
«O Militante» Nº 241 – Julho / Agosto – 1999