Fuga de Peniche – Um passo para a Revolução de Abril

Um passo para a Revolução de Abril

A luta contra a política de apagamento da memória do que foi o fascismo, dos seus símbolos e locais de repressão é também uma forma de luta pela defesa das liberdades. Passados 47 anos, a Câmara Municipal de Peniche realizou um conjunto de iniciativas para não esquecer e lembrar a mais famosa fuga de presos políticos do Forte de Peniche. Percorrendo os caminhos de uma construção da memória, foi ainda inaugurada uma exposição fotográfica intitulada «Vozes do Silêncio – Prisões Políticas Portuguesas».

O Forte de Peniche alberga muitas histórias que são parte da história do PCP e da resistência ao fascismo. Uma delas, pela sua coragem e importância, merece especial referência: a fuga de 3 de Janeiro de 1960 que devolveu à liberdade e à luta dez destacados dirigentes e militantes do PCP: Álvaro Cunhal, Joaquim Gomes, Carlos Costa, Jaime Serra, Francisco Miguel, José Carlos, Guilherme Carvalho, Pedro Soares, Rogério Carvalho e Francisco Martins Rodrigues.

Naquela que foi uma das prisões de mais alta segurança do fascismo, ainda hoje nos arrepiamos, pela sua «monstruosidade», quando entramos na grande fortaleza, monumento marcante para o visitante e para a história revolucionária do nosso País.

O mar, agitado por sinal, rebentava nas espessas muralhas do forte, provocando um estrondoso ruído. Do ar, as gaivotas marcavam presença com gritos ásperos que ecoavam pelos penhascos. Lá dentro, os ecos fazem-nos imaginar as vozes silenciadas, torturadas, caladas, a qualquer preço e de qualquer maneira.

Entretanto, com a ajuda de Carlos Costa e Jaime Serra, até porque dela fizeram parte, do dia 3 de Janeiro de 2007 recuámos no tempo e no nosso imaginário para a famosa fuga de Peniche, uma das mais espectaculares da história do fascismo português.

Também ao final da tarde, agora acompanhados por uma extensa comitiva, os dois comunistas, após uma largada de pombos, fizeram o mesmo percurso que, há 47 anos, haviam feito, rumo à liberdade. Segundo iam contando e a história não os deixa esquecer, parou, frente ao Forte, um carro com o porta-bagagens aberto. Era o sinal de que, do exterior, estava tudo a postos. Quem deu o sinal foi Rogério Paulo, actor, já falecido.

Dado e recebido o sinal, no interior do Forte dá-se início à acção planeada. Segundo relataram, o carcereiro foi neutralizado com uma anestesia e com a ajuda de uma sentinela – José Alves – integrado na organização da fuga. Os fugitivos passaram, então, sem serem notados, a parte mais exposta do percurso.

Estando no piso superior, desceram para o piso de baixo por uma árvore. Daí correm para a muralha exterior para descerem, um a um, através de uma corda feita de lençóis para o fosso exterior do forte. Tiveram ainda que saltar um muro para chegar à vila, onde estavam à espera os automóveis que os haviam de transportar para as casas clandestinas onde deveriam passar a noite.

Esta fuga, segundo contaram, só foi possível graças a um planeamento muito rigoroso e uma grande coordenação entre o exterior e o interior da prisão. De fora, a ajuda partiu de Pires Jorge e António Dias Lourenço, com a ajuda de Octávio Pato, Rui Perdigão e Rogério Paulo.

«Vozes do Silêncio – Prisões Políticas Portuguesas»

Percorrendo os caminhos de uma construção da memória, foi ainda inaugurada uma exposição fotográfica intitulada «Vozes do Silêncio – Prisões Políticas Portuguesas», de Pedro Medeiros. A exposição começou no Porto, na Cadeia da Relação, seguiu para Coimbra, nas Prisões Académicas da Biblioteca Joanina, passou pela Associação 25 de Abril, em Lisboa, e agora poderá ser vista, até 31 de Março, no Forte de Peniche.

«Pela sua memória histórica, pelo impacto e pela força destas paredes, que representam uma página negra da nossa história, que foi a opressão e o fascismo em Portugal, considero que este é o local mais forte onde a exposição já esteve até este momento», afirmou Pedro Medeiros, esclarecendo que a ideia deste trabalho surgiu em 1999 aquando de uma visita ao Campo de Concentração do Tarrafal, denominado Campo da Morte Lenta.

«Além da minha própria consciência política, este é um compromisso que tenho como cidadão e uma homenagem a todos aqueles que resistiram e lutaram contra o fascismo», disse, lamentando, no entanto, «existirem pessoas interessadas em fazer desaparecer a memória».

Nesta exposição, dividida em três núcleos, podem ser vistas imagens fotográficas feitas na Cadeia do Aljube, no Forte de Peniche, no Campo de Concentração do Tarrafal, em Caxias e nas sedes da Pide em Lisboa, Porto e Coimbra. Existe ainda uma instalação de vídeo, com imagens cedidas pelos arquivos da RTP, e, na cela onde estão expostos os desenhos de Álvaro Cunhal, poderão ser escutadas as «Vozes do Silêncio».

Encontro com a história

A exposição «Vozes do Silêncio – Prisões Políticas Portuguesas» propõe-nos, mais do que um encontro com a história, um fascinante e perturbante encontro connosco próprios.

«Estamos numa das mais tragicamente célebres prisões políticas, o Forte de Peniche, um cenário simultaneamente grandioso e aterrador, pelos dramas e pelas tragédias que aqui sabemos que existiram», afirmou Manuela Cruzeiro, que falou em nome do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra, que colaborou e apoiou este projecto.

Manuela Cruzeiro, advertindo que «País que não tem passado não tem futuro», manifestou ainda a sua preocupação pelo défice de memória dos portugueses.

«Fomos sempre um povo que gostou pouco de lidar com a tragédia e com o desastre e gostou muito mais de se vangloriar e festejar os momentos mais felizes. Contamos com episódios muito negros da nossa história e um deles é justamente os 48 anos de fascismo. Foi um período negro, doloroso, mas nem por isso temos que o esquecer», acentuou.

Nesta linha de pensamento, tendo inspirado este projecto, Manuela Cruzeiro citou Eduardo Lourenço que disse, um dia, «o fascismo nunca existiu».

«É claro que esta frase não pode ser lida e entendida à letra. O que ele quer dizer é que o fascismo, enquanto existiu, teve ao seu serviço uma máquina gigantesca para silenciar tudo o que efectivamente não interessava. E é por isso que, ainda hoje, encontramos pessoas que até viveram aquela época e que se surpreendem com notícias e relatos de pessoas que falam de prisões, assassinatos políticos, de torturas, de censuras, do corte radical de todo e qualquer tipo de expressão de liberdade e manifestação de pensamento», continuou.

Referiu ainda um extracto de um poema de Borges Coelho, historiador, que disse: «para quê falar do passado, para quê remexer no passado?». «Para fazer, sobretudo, justiça aos mortos e aos vivos, porque, felizmente, temos ainda muitos vivos entre nós», respondeu, saudando, ali, Carlos Costa, Joaquim Gomes e António Dias Lourenço.

Preservação da memória

Para que as «vozes do silêncio» nunca se calem, Manuela Cruzeiro apelou ao presidente da Câmara Municipal para que se construa ali, no Forte de Peniche, «o museu da resistência, já que os outros locais se encontram desfigurados, transfigurados e incapazes de uma recuperação».
Respondendo ao apelo, António José Correia sublinhou que essa «não é uma tarefa fácil nem pacífica» e que não compete à autarquia, mas sim ao Estado, avançar com o projecto.

Por outro lado, informou que foi aprovado, em sessão de Câmara, com a abstenção do PS, um protocolo com a União de Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP) «na perspectiva de não apagar qualquer tipo de memória». Neste sentido, está patente, no Forte de Peniche, uma outra exposição sobre o 25 de Abril. «Podem estar descansados, da nossa parte, tudo faremos relativamente à preservação da memória», garantiu.

No seguimento do tema, Carlos Costa chamou à atenção dos presentes para «a não deturpação da memória». «Logo a seguir ao 25 de Abril foi criada uma comissão na qual, lamentavelmente, não fazia parte um único comunista. No entanto, 90 por cento dos presos políticos eram do PCP», salientou.
Por seu lado e na sua opinião bem vincada, Joaquim Gomes afirmou que «a Fuga de Peniche foi o começo do 25 de Abril e a liberdade de todos nós».

Não tendo participado na fuga de 1960, mas havendo também conseguido evadir-se desta cadeia numa histórica fuga individual, António Dias Lourenço, felicitando a Câmara Municipal e o pelouro da Cultura por aquela iniciativa, salientou a «natureza antifascista e humanista da população de Peniche que sempre nos ajudou e às nossas famílias».

Na ocasião, foi ainda dada a informação, por Jorge Amador, vice-presidente da autarquia, de um «telefonema muito especial» de Eugénia Cunhal, irmã de Álvaro Cunhal, que transmitiu «uma palavra de força» para todos aqueles que estão no Poder Local democrático e que «defendem que o Forte de Peniche seja um espaço de excelência para lembrar aquilo que se passou e não para o esquecer».

Forte de Peniche – Um símbolo da repressão e da resistência

O Forte de Peniche foi edificado no século XVI na então ilha de Peniche e destinava-se, como várias outras fortificações ao longo da costa, à defesa das populações das incursões dos corsários.
Embora começasse a ser utilizado como prisão no século XVII e se tenha alargado essa função no decorrer das guerras liberais (século XIX), foi com a instauração da ditadura fascista, e consequente reforço de todo o sistema de organização repressiva que se seguiu, que o uso do Forte de Peniche como prisão se tornou regular, tornando-se desde então a sua história, até ao 25 de Abril de 1974, indissociável da repressão fascista e da resistência à ditadura.

Com a sua entrega, em 1934, à jurisdição da PVDE (Polícia de Vigilância de Defesa do Estado) – primeira designação da PIDE -, o Forte de Peniche tornou-se, das várias prisões fascistas no continente, a mais importante prisão para presos políticos.

Por aqui passou a esmagadora maioria dos presos políticos condenados a longas prisões, com destaque para os membros do PCP – a esmagadora maioria das sucessivas levas de presos que permaneceu na cadeia de Peniche.

O regime prisional vigente no Forte de Peniche foi sempre dos mais rigorosos e em muitos aspectos pautado pela arbitrariedade: vigilância permanente, regime alimentar deficiente, limitações no contacto com as famílias e isolamento, jornais mutilados e mesmo proibição de acesso a livros.

As profundas alterações operadas nas instalações da cadeia, com a construção iniciada em 1956 de novos pavilhões, que levou à configuração actual e que era a que existia à data do 25 de Abril de 1974, tendo embora melhorado as instalações prisionais, visava essencialmente aumentar a capacidade da prisão, reforçar a sua segurança e endurecer o regime prisional, nomeadamente sujeitando os presos a um maior isolamento.

Com a criação de um posto da PIDE na própria vila de Peniche acentuou-se o seu controlo sobre a vida e o refinado regime prisional, visando atingir o equilíbrio emocional dos presos e a sua resistência moral.

Desde então, a vigilância da PIDE estendeu-se também aos familiares que visitavam os presos, vigiando todos os seus passos, nomeadamente com quem conviviam, as casas onde se instalavam, os cafés onde iam, as pessoas de que se faziam acompanhar e registando as matrículas dos carros em que se deslocavam.

Lutar contra o fascismo – Defender a liberdade

Mas a cadeia de Peniche, como outras cadeias, foi também um local de luta contra o fascismo.
Apesar de toda a vigilância, do isolamento, das medidas repressivas e das pressões psicológicas, a cadeia foi, graças à determinação dos presos, à sua combatividade e à organização interna, palco de importantes lutas, em muitos casos em ligação com as famílias, contra a arbitrariedade dos carcereiros, por melhores condições de alimentação, assistência médica e de vida prisional, pelo desenvolvimento cultural dos presos.

A existência de uma organização permanente no interior da cadeia – que os carcereiros nunca conseguiram impedir -, assegurando uma regular comunicação e informação entre os pavilhões e, no exterior, com a direcção do Partido, foi determinante para a coesão e a unidade do colectivo prisional face aos carcereiros, para a sua combatividade e conhecimento da situação política.

No longo historial da luta e da resistência dos presos políticos ocorreram momentos relevantes no conjunto das fugas do Forte de Peniche, e das quais se destacam:

• A 3 de Novembro de 1950 fogem de uma antiga «caserna» situada na parte Norte do Forte, Francisco Miguel e Jaime Serra;

• A 4 de Dezembro de 1954 fugiu do «segredo» da prisão, saltando de grande altura para o mar, António Dias Lourenço;

• A 3 de Janeiro de 1960, pela sua complexidade, importância política e papel na vida do Partido, teve lugar uma das mais importantes fugas de toda a história do fascismo, recuperando para a luta um importante e destacado número de quadros do Partido: Álvaro Cunhal, Carlos Costa, Francisco Miguel, Francisco Martins Rodrigues (este mais tarde afastado do Partido), Guilherme Carvalho, Jaime Serra, Joaquim Gomes, José Carlos, Pedro Soares e Rogério de Carvalho.

(in Avante! de 11 Janeiro 2007)