A desesperada missão do Marcelismo

A desesperada missão do Marcelismo

Aurélio Santos

Nos seus números de 2002 O Militante abordou alguns dos principais acontecimentos da década de 60 do Século XX, com a importância que eles tiveram para as condições em que Portugal virou a página negra do fascismo na sua História. Mas nessa História, foi na década de 70 que se deram os acontecimentos decisivos que mudaram radicalmente o país, lhe abriram novas condições e perspectivas e deixaram em aberto questões fundamentais das quais, ainda hoje, depende o futuro.

Iniciamos neste número uma abordagem de alguns acontecimentos que marcaram essa década decisiva da história portuguesa.

A 6 de Setembro de 1968 António de Oliveira Salazar caiu da sua cadeira, vítima de um acidente cerebral.

Salazar deixava o país numa grave situação, em que se acumulavam problemas insanáveis para o regime fascista. O agravamento da situação económica e social, as consequências das guerras coloniais, a amplitude do descontentamento e da luta contra o regime em várias frentes, a redução das suas bases de apoio, tanto no plano nacional como internacional, levavam a divisões, conflitos, deserções e confrontos no próprio campo social, político, institucional e militar da ditadura.

No seio do regime desenhavam-se duas tendências que, convergindo nos objectivos, divergiam nos meios: os "ultras", defendiam o endurecimento do carácter repressivo e fascista do regime, para consolidação das suas posições; os “liberalizantes”, consideravam necessário que o regime desse alguns sinais de descompressão e mudança, para salvar o essencial da sua política.

O governo de Marcelo Caetano, anunciado pelo Almirante Thomaz em 26/9, foi, como logo nessa ocasião o classificou o PCP, “um compromisso entre liberalizantes e ultras”, numa tentativa para salvar o regime nesse aperto (1) .

A missão que o salazarismo confiou a Marcelo Caetano foi salvar os interesses das camadas sociais de que o regime salazarista foi expressão e instrumento. Caetano tentou, diligente e obstinadamente, fazê-lo, subordinando-se àqueles que em toda a sua vida política aplicadamente servira.

Caetano, fazendo um desesperado esforço para encobrir a verdadeira natureza do regime sem a alterar, lançou uma manobra que o PCP logo caracterizou como “demagogia liberalizante”(2) . A chamada liberalização marcelista, na maior parte dos casos, não passou de simples mudança vocabular de fachada: o “Estado Novo” salazarista foi crismado “Estado Social”; a “União Nacional” mudou para “Acção Nacional Popular”; o órgão fascista “Diário da Manhã” passou a ser “A Época”; e o “império colonial” salazarista passou a ser designado como “Portugal pluricontinental” e “pátria pluriracial”. Anunciou “tolerância de ideias” mas limitando a “tolerância” a quem estivesse disposto a “colaborar com o Governo”. Anunciou a “liberalização” da vida sindical e logo fez aprovar decretos e normas que dificultaram ainda mais a acção dos trabalhadores nos "sindicatos nacionais". Anunciou a liquidação da PIDE, mas a única coisa que fez foi pôr-lhe o novo nome de "DGS". Anunciou a “autonomia política” das colónias e mais tarde trocou o nome de “províncias ultramarinas” pelo de “Estados”, mas intensificou a guerra e levou ainda mais longe a política de terrorismo (assassínio de Amílcar Cabral) e de agressão em África (contra a Guiné-Conacry, Senegal e Zâmbia).

A manobra da demagogia liberalizante obteve, no entanto, acolhimento em sectores da Oposição, virados para uma conciliação com o regime. Chamaram-lhe “um raio de esperança para o nosso povo”(3) , elogiaram um “clima novo, de renovação e de esperança “que só mereceu aplausos”, consideravam a política de Caetano “a única possível”, “uma saída pacífica”, “uma transição inteligente e gradual”(4) .

Os sectores socialistas de direita aconselhavam a cessação das actividades clandestinas e da luta popular por “assustarem os liberalizantes” e por “prejudicarem a liberalização”(5) . Recusavam acções unitárias com o mesmo pretexto. Correspondendo às ofertas do Governo quanto a possibilidades de acção desde que numa base anticomunista, logo declararam a sua condenação do “socialismo totalitário”, como penhor para alcançarem uma legalidade preferencial(6) . Nas “eleições” de 1969, com o mesmo objectivo e a mesma esperança, romperam a unidade e formaram, em oposição às CDE (Comissões Democráticas Eleitorais), comissões divisionistas.

A nova fase da crise do regime estimulou também a vaga de esquerdismo anarquisante e anticomunista dos intermitentes grupos autodesignados “marxistas-leninistas”. Curiosamente ou não o radicalismo esquerdista deu à manobra fascista uma interpretação semelhante à dos oportunistas de direita. Para ales, o fascismo acabara. O fascismo estaria concedendo a liberdade sindical e tentando instaurar um “sistema parlamentar”.

Mas a demagogia liberalizante começou rapidamente a fracassar nos seus objectivos, ante dois factores fundamentais: o inevitável agravamento da situação económica, social, política e militar, resultantes de uma política de completa subordinação aos interesses do capital monopolista; e a luta popular e de sectores cada vez mais vastos contra essa política.

Quando se registam variadas tentativas de branqueamento do regime fascista e de apresentar o “marcelismo” como uma eventual alternativa ao 25 de Abril (lamentando-se que este tenha “interrompido” essa “experiência” e dando cobertura ideológica e política a eventuais novas versões "marcelistas") vale a pena recordar o que ele realmente foi, a natureza, os métodos e valores que o caracterizaram. Principalmente tendo em conta aqueles que não viveram esses tempos e que, sendo já hoje, felizmente, a maioria da população portuguesa, só os podem conhecer e avaliar através de referências, muitas vezes falseadas.

A verdadeira natureza do marcelismo

A verdadeira natureza do marcelismo cedo se revelou na sua política económica e financeira.

Em pouco tempo, os factos desmentiram as concepções que viam no “marcelismo” uma nova fase de expansão do que chamavam o capital “empreendedor” ou “progressista”. O marcelismo só veio confirmar o agravamento das contradições que se tinham criado pela instauração do capitalismo monopolista de Estado sem um correspondente desenvolvimento das forças produtivas.

A “política de desenvolvimento” e o “Estado Social” anunciados por Marcelo Caetano morreram antes de nascer. Os monopólios dominantes e os seus governos mostraram-se sempre incapazes de promover o aproveitamento dos recursos nacionais, de superar as próprias contradições e de encontrar uma saída para as dificuldades.

Todas as versões de uma “política de desenvolvimento” subordinada ao capitalismo monopolista multiplicaram e aprofundaram contradições que, nos primeiros anos da década de 70, se vieram a manifestar de súbito, numa rede tão densa que, conforme na altura foi anotado, a resolução de um problema arriscava agravar a agudeza de outros.

Os últimos anos da ditadura foram marcados por uma brutal intensificação da exploração. Foram proibidas durante dois anos modificações nos Contratos Colectivos de Trabalho. Foi autorizado o pagamento de salários abaixo do fixado. Foram aumentados a jornada de trabalho e o número de horas semanais. Foi agravada a intensificação do trabalho sob a capa da “produtividade”. Foi acentuada a política fiscal “regressiva”, protegendo os grandes e fazendo pagar mais aos trabalhadores e às classes médias(7) .

A centralização de capitais pelos grupos monopolistas continuou a verificar-se, mas, nesses anos, devido, em grande parte, a um processo especulativo sem ligação com a actividade produtiva(8) .

A especulação bolsista, através da qual o capital financeiro se apossou dos capitais disponíveis e das pequenas economias, levando a cabo uma gigantesca centralização sem um correspondente aumento das actividades produtivas, torna-se um traço característico dos últimos anos do regime fascista(9) .

Esta evolução, depois de criar a aparência de prosperidade, mas com uma base produtiva cada vez mais frágil, foi agravada pela crise internacional capitalista de 1974 e conduzia inevitavelmente a uma súbita ruptura de todo o sistema(10) .

O 25 de Abril interrompeu e paralisou a dinâmica especulativa do capitalismo monopolista português. Sem ele, a economia portuguesa teria caído numa crise profunda, provocando um súbito e dramático agravamento da miséria geral.

Na medida em que se revelava o aprofundamento da crise e as ameaças que pesavam sobre a ditadura, os ultras reclamavam a liquidação efectiva da oposição e uma ofensiva repressiva mais violenta. Os “liberalizantes”, designadamente a chamada ala liberal da Assembleia, reclamavam mais “aberturas”, reais ou demagógicas. Durante os primeiros anos do governo de Marcelo Caetano “ultras” e “liberalizantes” estiveram unidos numa “aliança sagrada”. As cisões e dissidências tornaram-se inevitáveis, quando a situação revelou que, nem unidos, nem qualquer deles em separado podia já salvar a ditadura.

O “marcelismo”, numa fase crucial do capitalismo português, foi a prova não só da contradição insanável desses interesses com os interesses do país como da sua incapacidade para os resolver.

Tal como hoje acontece.

A outra face da crise

Os últimos anos do regime comprovaram, ao limite, o erro dos que punham as suas esperanças numa “desagregação automática da ditadura” que, ao longo da sua duração, paralisou alguns sectores da Oposição.

Por si só, o agravamento da situação económica, financeira e social não levariam à queda do regime. Levariam sim a uma maior ruína do país e maiores sofrimentos para o povo português.

O regime fascista foi derrubado por ter defrontado uma luta persistente, tenaz, continuada, por parte de amplas camadas do povo português, e por essa luta ter forças políticas capazes de apontar alternativas ao poder fascista.

As greves de 1969, deram uma primeira grande resposta de massas à manobra “liberalizante” de Marcelo Caetano.

Acentuou-se a influência recíproca do movimento operário e do movimento democrático, que recebeu, em 1969, o impulso dado directamente pelos trabalhadores através dos “grupos socio-profissionais” da CDE.

Uma contribuição decisiva para o desenvolvimento da luta dos trabalhadores e para o aumento do seu papel no quadro do movimento antifascista foi a luta que se desenvolveu nos sindicatos fascistas, e que conduziu, em Setembro de 1970, à criação da Intersindical, no seguimento das estruturas de coordenação das direcções sindicais da confiança dos trabalhadores.

O Governo passou à acção repressiva, publicou decretos modificando a vida interna dos sindicatos, declarou que a Intersindical era ilegal, procurou impedir, com grande aparato policial, que as reuniões se efectuassem, suspendeu e demitiu direcções sindicais, estabeleceu a censura prévia nos boletins internos, destruiu sedes e encerrou sindicatos.

Não conseguiu porém o seu objectivo. Grandes manifestações responderam às medidas repressivas. E embora escolhendo desde então novas formas de trabalho, a acção da Inter e de sindicatos continuou sem interrupção. Quando surge o 25 de Abril, o número de associados nos sindicatos participantes na Intersindical elevava-se a meio milhão.

Outras importantes frentes de luta se desenvolveram também, agravando o isolamento e crise do regime. Dentre elas destacou-se a luta dos estudantes, com greves, manifestações e confrontos com a polícia nas três Universidades, estendendo-se também ao Secundário, e com corajosas formas de confrontação política ao regime. Também os intelectuais confirmaram, por variadas formas, as suas fortes posições antifascistas, num quadro social que, alargando-se a muitos sectores da pequena e média burguesia, ganhava crescentemente o carácter de um grande movimento nacional.

Neste quadro de amplo alargamento da luta, o movimento democrático ganhou também novos impulsos. Desenvolveu amplas estruturas orgânicas, rompeu o colete-de-forças imposto pela ditadura, saltou por cima das interdições fascistas, resistiu à repressão e conseguiu mobilizar massas e desenvolver uma ampla actividade política.

O Congresso da Oposição Democrática, realizado em Aveiro em Abril de 1973, confirmou a já tão evidente fragilidade da ditadura e a força dominante da opinião democrática. Desse Congresso, que teve a participação empenhada e decisiva dos comunistas, saíram linhas essenciais para um programa de governo democrático.

A grande campanha política por altura das “eleições” para a Assembleia Nacional fascista (Outubro/1973), foi outro momento de grande importância nesta fase final de luta contra a ditadura. Tendo como reclamações fundamentais as liberdades, o fim da guerra colonial, a luta contra a carestia de vida, foi uma vigorosa afirmação de unidade, combatividade e apoio popular do movimento democrático.

O Governo procurou impedir o desenvolvimento da campanha fazendo prender e espancar candidatos da Oposição Democrática, membros das Comissões Eleitorais, democratas, trabalhadores e jovens, fazendo assaltar e roubar sedes da Oposição, interrompendo sessões e comícios com forças repressivas armadas de metralhadoras.

Apesar dessas medidas, a campanha confirmou a organização, a vitalidade e a combatividade do movimento democrático.

Logo em seguida, nos primeiros meses de 1974, o surto de greves e as outras lutas operárias deram decisivo impulso à passagem da luta antifascista para níveis mais altos.

De Outubro de 1973 até ao 25 de Abril, além de muitas centenas de pequenas lutas nas empresas, mais de 100.000 trabalhadores dos centros industriais e milhares de trabalhadores agrícolas do Alentejo e do Ribatejo participaram numa vaga de greves que vibrou golpes repetidos, incessantes e vigorosos no abalado edifício do regime fascista.

Isto explica o papel determinante que o movimento operário e popular exerceu no levantamento popular que, no dia 25 de Abril, se sucedeu à acção militar dos “capitães” do MFA e ao levantamento militar. Explica as extraordinárias manifestações de massas que imediatamente se seguiram, nomeadamente no 1º de Maio, o gigantesco comício em Lisboa, convocado pela Intersindical.

A guerra colonial e a derrota do colonialismo

A dominação colonial constituiu, a par da ditadura fascista, o segundo pilar que deu ao capital financeiro monopolista a força e as condições para impor a Portugal a sua dominação. Não só lhe assegurou um terreno privilegiado para a acumulação de super-lucros, através da exploração colonial, como lhe serviu de moeda de troca para reforço do apoio ao regime fascista por parte do imperialismo, a troco da partilha dessa exploração, em condição subordinada ao capital estrangeiro. Daí a obstinação cega com que o regime quis manter, a todo o custo, a dominação colonial.

O PCP já em 1957 aprovara como um dos objectivos do seu Programa o reconhecimento do direito dos povos das colónias portuguesas à autodeterminação e independência.

Entretanto, em Portugal, durante anos, a questão colonial criou dificuldades à unidade das forças antifascistas.

A burguesia liberal, no seu “Programa para a Democratização da República” (1961), incluía a plataforma de uma política neocolonialista, com conceitos de “integração” e de defesa da “soberania” portuguesa nessas “parcelas do território nacional”.

Os socialistas, em 1966, falavam “numa consulta directa às populações interessadas” e de “referendo em Portugal, sobre política ultramarina”(11) . Em 1969, opunham-se a que o movimento democrático abordasse a questão da guerra colonial, defendiam a fórmula “não ao abandono, não à guerra” e a “autonomia progressiva”(12) , negavam-se em conferências internacionais a assinar documentos em que figurasse o reconhecimento do direito dos povos das colónias portuguesas à completa e imediata independência(13) .

O governo fascista pensou, com a guerra, agitando falsos slogans “patrióticos”, não só manter as colónias como reforçar a ditadura. Mas com as transformações revolucionárias do século XX, a luta libertadora dos povos e das nações, apoiados pela solidariedade internacionalista, conduzia imparavelmente ao ruir do colonialismo.

A imparável luta dos movimentos de libertação e a crescente oposição do povo português às guerras de África fizeram da questão colonial uma das mais graves que se colocavam ao regime e constituíram uma das causas do seu derrubamento.

Os efeitos das guerra sentiam-se na vida económica, social e política e dentro das próprias forças armadas. A situação foi-se agravando ainda mais na medida em que os movimentos de libertação da Guiné-Bissau, Moçambique e Angola alcançaram sérios êxitos na luta armada.

O próprio apoio que o fascismo português recebia do imperialismo (principal beneficiário da exploração colonial portuguesa) fraquejou numa conjuntura internacional marcada pela forte presença e influência dos países socialistas e dos países recém-libertados, designadamente na ONU.

O grande movimento de deserção traduzia a oposição da juventude à guerra. Contra a continuação da guerra e os seus crimes passaram também a manifestar-se vários sectores católicos. O movimento de opinião contra a guerra colonial tornara-se um grande e poderoso movimento contra a política marcelista, aparecendo com vigor em assembleias, manifestações de rua, reuniões, conferências, colóquios e nas mais variadas iniciativas políticas.

Quando da mascarada “eleitoral” para a Assembleia Nacional em Outubro de 1973, as forças democráticas, contra o parecer de oportunistas receosos da repressão, aproveitaram as possibilidades momentaneamente abertas para desencadear uma vigorosa campanha contra a guerra colonial e o colonialismo.

Foi porém nas forças armadas que a guerra colonial provocou mais divergências, defecções, deserções e confrontos e uma alteração das mentalidades. Tendo sido suporte basilar da ditadura fascista, é das forças armadas que, nesta ponta final da luta contra a ditadura, parte a iniciativa da intervenção armada que lhe põe fim.

O descontentamento profundo que se estabeleceu nas Forças Armadas e a sua sintonia com os sentimentos do povo português teve como resultado que, a partir de um movimento inicialmente de carácter corporativo dos oficiais de carreira, se tenha gerado o Movimento das Forças Armadas (o MFA), que, embora com contradições internas, definiu como objectivos, pôr fim à guerra e à ditadura.

Já não querer e já não poder

Uma definição clássica para uma situação revolucionária diz que ela se verifica quando os governantes já não conseguem continuar a governar como antes, nem os governados querem continuar a ser assim governados.

As situações revolucionárias – isto é, quando uma transformação política revolucionária tem condições para ser lançada, com perspectivas de êxito (embora tendo em conta os desenvolvimentos contraditórios e imprevisíveis de um processo revolucionário) – não se produzem com aventuras voluntaristas. Criam-se com uma acção coerente, por vezes prolongada, também ela com avanços e recuos, que assegurem à acção revolucionária a base social de apoio indispensável para o seu triunfo.

Esse era o quadro existente em Portugal nos últimos meses do marcelismo.

O PCP, com a sua luta ao longo de muitos anos, teve um papel determinante em todo o processo que levou a essa situação, e sua acção foi decisiva para o desmascaramento e derrota da manobra de demagogia liberalizante lançada por Marcelo Caetano.

O ascenso impetuoso da luta popular e o seu desenvolvimento, a elevação do grau de consciência de classe e de organização da classe operária, a progressiva entrada em luta dos mais variados sectores sociais, a radicalização das classes intermédias, as manifestações crescentes de descontentamento e de revolta nas forças armadas, mostravam que as classes dominadas e exploradas pelo poder terrorista dos monopólios e dos latifundiários não queriam mais viver na situação existente e estavam determinadas a pôr fim ao fascismo e à guerra e a instaurar um regime democrático.

Esta era a situação do lado dos que não queriam continuar a ser governados assim.

Quanto aos que já não conseguiam governar como antes – vale a pena ler as confissões feitas por Marcelo Caetano no seu livro “Depoimento”, escrito no exílio depois do 25 de Abril.

Aí se diz:

O Partido Comunista, “em quantos sindicatos pôde conquistou posições nos respectivos corpos gerentes”, e “dentro de pouco tempo estava formado um grupo de sindicatos a trabalhar concertadamente segundo as directrizes do partido”. E, num lamento, Caetano refere: “o espírito corporativo do sindicalismo português foi cedendo o passo à concepção marxista, assistindo-se progressivamente à transformação dos sindicatos em instrumentos de luta de classes”.

Quanto às lutas da juventude lamentava Caetano que as associações académicas se tivessem tornado numa afirmação do “poder estudantil”. “As escolas superiores, (escreveu Caetano) iam sendo persistente e habilmente trabalhadas pelo partido comunista”.

Queixando-se do “crescente atrevimento da subversão interna” e da actividade do movimento operário, reconhecia, também, que nas forças armadas e na guerra colonial “era dominante a ideologia vinda do movimento estudantil, as ideias de contestação da ordem social existente e da legitimidade da manutenção do Ultramar português”.

Uma confissão clara de que os governantes já não podiam governar como antes.

E a revolução de Abril aconteceu.

Notas:

(1) Em 22 de Set./1968, o PCP transmitia pela Rádio Portugal Livre uma Proclamação em que se afirmava: "Só o povo português, só as massas populares, só a acção unida e organizada dos democratas portugueses, só o desencadeamnento de um grande e poderoso movimento nacional pela liberdade, poderá desalojar os fascistas do governo e instaurar em Portugal um regime democrático." – Ver Documentos do Comité Central – 1965/74, Edições «Avante!»

(2) Reunido no próprio momento em que Caetano, tendo constituído governo, anunciava a manobra liberalizante, o CC do PCP desmascarou os seus objectivos: semear ilusões de que a camarilha fascista poderia imprimir novo rumo, atrair sectores vacilantes da Oposição, fomentar a expectativa e inércia das massas populares. (Avante!, Out.-Nov.-68)

(3) Portugal Socialista, Out./1968.

(4)(5)(6) Manifesto "À Nação", Dez./1968.

(7) Em consequência desta política, a parte do Rendimento Nacional correspondente a salários e ordenados, que era já das mais baixas da Europa capitalista, desceu ainda mais, passando de 35,8% em 1972 para 34,2% em 1973.

(8) De 1968 para 1972, os 12 principais bancos acusaram o aumento de 7,3 para 13,3 milhões de contos do capital e fundos de reserva. Em 100 das maiores companhias dos grupos monopolistas, a subida é de 36,6 para 545 milhões de contos.

(9) As acções das companhias de seguros na Bolsa de Lisboa foram cotadas 10 vezes acima do valor nominal em 1972 e 32 vezes acima em 1973 (Relatório do Banco de Portugal).

(10) As cotações na bolsa sofreram, nos primeiros meses de 1974, uma queda de 47 pontos, anunciando um descalabro que deixaria arruínadas milhares de pessoas que tinham convertido em acções as suas economias.

(11) Mário Soares, “Projecto de Exposição ao Presidente da República a propósito dos 40 Anos do Estado Novo”, em Escritos Políticos.

(12) Sousa Tavares à Vida Mundial, 3 de Outubro/1969.

(13) Conferência de Solidariedade à luta dos povos das colónias portuguesas, Roma, 27/29-6-1970.

 

 

 

 

«O Militante» – N.º 262 Janeiro/Fevereiro de 2003