Com a resolução do PE, todos os problemas foram agravados e a Líbia mergulhou no inferno. A verdade é como o azeite, acaba sempre por vir ao de cima. Novamente se cumpre o adágio. Marisa Matias, no debate televisivo com Edgar Silva, respondendo à crítica de que tinha votado favoravelmente no Parlamento Europeu (PE) a intervenção militar externa na Líbia, afirmou e repetiu categoricamente três vezes que votou contra, por voto nominal, e aconselhou a consulta das respectivas actas. A resolução em discussão no PE, em Março de 2011, continha um parágrafo que solicitava à Alta Representante da UE e aos Estados-Membros a disponibilidade para uma decisão do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) sobre uma zona de exclusão aérea na Líbia (com a justificação demagógica de impedir o regime de atacar a população civil). Uma tal zona era o pretexto para a intervenção militar, pois assegurá-la exige meios militares.
O parágrafo, com a habitual linguagem diplomática, instava na verdade a Alta Representante e os Estados-Membros a cumprir a provável decisão do CSNU de impor essa zona e, mais do que isso, a reclamar essa decisão, através dos Estados-Membros que aí tinham assento (França e Reino Unido, membros permanentes, Alemanha e Portugal) e das pressões que a UE poderia fazer sobre alguns dos restantes. Marisa Matias, tal como eu, Ilda Figueiredo e outros, votou contra a inclusão deste parágrafo na proposta de resolução a submeter ao Parlamento. Mas o parágrafo foi mantido. Na votação final da resolução, que constituiu a deliberação do PE (Resolução RC-B7-0169/2011, de 10/03/2011) e que inclui o funesto parágrafo, Marisa Matias votou a favor, como se vê na acta a que aconselhou a consulta (p. 6). É transparente que faltou à verdade quando disse que votou contra. Além do mais contradiz-se. Invocou o facto de ter votado contra esse parágrafo, na votação prévia, para mostrar que votou contra a intervenção militar, reconhecendo assim que o parágrafo abria o caminho. Mas quando votou a favor da resolução final, que o continha, a intervenção militar desaparece, como se o parágrafo não constasse. Muito conveniente, mas inconsistente. O parágrafo é o mesmo nas duas votações. Só que a segunda era a definitiva e constituía a deliberação oficial da resolução do PE. Confrontada com o facto, em vez de admitir o duplo erro, o voto a favor e a falta à verdade, tenta virar o bico ao prego e acusa quem foi coerente do princípio ao fim. E fá-lo disparatando: afirma que o PCP decidiu legitimar o regime de Khadafi. Sucede que a resolução não tratava de legitimar ou deslegitimar o regime de Khadafi. O que pretendia, ocultando-o demagogicamente, era legitimar a intervenção militar. Como consta da declaração de voto dos deputados do PCP, disse Ilda Figueiredo na declaração de voto, “lamentavelmente, a Resolução do PE defende a intervenção militar, dado que não pode haver zona de exclusão aérea sem intervenção militar. Por isso, esta resolução, em vez de contribuir para uma solução pacífica, parece visar a preparação de actos de agressão, pelos EUA, a NATO e talvez da União Europeia, contra a Líbia, pelo que expressamos a nossa firme oposição a qualquer intervenção militar externa neste país.” Aprovada a resolução, os acontecimentos seguiram exactamente o guião estabelecido pelos falcões da guerra. Uma semana depois, o CSNU decidiu a imposição da “zona de exclusão aérea” e as forças militares, já em estado de prontidão, iniciaram em dois dias os ataques. Todos os problemas foram agravados e a Líbia mergulhou no inferno. O curso posterior dos acontecimentos, nomeadamente as vagas de refugiados que procuram atravessar o Mediterrâneo daí provenientes, são como pedras lançadas à cara da UE a recordar-lhe as responsabilidades na instabilidade, na guerra, na devastação e no colapso de um Estado agora muito mais falhado do que alguma vez o possa ter sido. O controlo dos recursos naturais líbios foi o motivo fundamental da intervenção militar, que nunca teve como verdadeira preocupação o povo líbio, tal como a intervenção militar foi o motivo fundamental da resolução (aprovada por Marisa Matias), que nunca teve como verdadeira preocupação os direitos humanos.
João Ferreira