Debate racismo

Debate “Contra o racismo, pela inclusão, numa Lisboa de todos” Construir em conjunto a cidade de todos

 
Debate racismo
A exclusão, o racismo, a discriminação, as dificuldades das comunidades imigrantes, ciganas e afro-descendentes no acesso ao trabalho, à educação, habitação, mas também ao lazer e ao usufruto da cidade estiveram em debate na iniciativa da CDU, “Contra o racismo, pela inclusão, numa Lisboa de todos”, que contou com activistas e dirigentes associativos, académicos e assistentes sociais.
 
“O direito à cidade como o entendemos não é uma abstracção. É um direito feito do direito à

habitação, ao emprego, aos transportes – que vai muito além de despejar força de trabalho no local de trabalho e depois levá-la de volta a casa; é o direito à mobilidade para a fruição de todas as dimensões da vida”, disse o candidato da CDU à Câmara Municipal de Lisboa, João Ferreira. “Os poderes municipais têm de perceber isto. Mas devem meter mãos à obra para transformar a cidade também.” O direito à cidade só se cumprirá, continuou, “quando esta for uma realidade para todos os que aqui vivem, sobretudo para aqueles que têm sido as maiores vítimas de desigualdades e de exclusão”.
 
 
Cidade do trabalho e do lazer
 
Para Flávio Almada, da Associação Cultural Moinho da Juventude, na Cova da Moura, Lisboa continua vedada a muitos jovens da periferia. A cidade “pertence a um determinado grupo” que decide “quem tem o direito, como dizem os miúdos da periferia, a ‘entrar na cidade’. Os jovens da periferia não têm liberdade mesmo quando estão na avenida que se chama Liberdade.”
A pandemia veio pôr a nu uma série de problemas sistémicos. Mas também tornar evidente o esforço quotidiano de um “exército de trabalhadores essenciais”, que não confinaram, para que a vida da cidade continuasse. Quem sustenta Lisboa?, pergunta Flávio Almada. São os uberizados, entregadores de plataformas digitais, a maioria imigrantes, mulheres da limpeza. “A cidade só funciona por causa das empregadas domésticas que não vivem em Lisboa, mas trabalham em Lisboa na casa ou no escritório a fazer limpeza.” A questão do transporte é real e a pandemia veio mostrá-lo: “O comboio suburbano lotado foi praticamente patologizado e responsabilizado pela pandemia, porque as pessoas não podiam ficar em casa e morrer de fome.”
Jackilson Pereira, também do Moinho da Juventude, corrobora: “A cidade do lazer não é igual à cidade que sustenta o trabalho. Nas primeiras horas da manhã, há duas Lisboas que se encontram: uma a sair do lazer, outra a entrar no trabalho. Há pessoas que nunca se cruzam com os trabalhadores dos escritórios. Isso diz muito sobre invisibilização.” Henrique Chaves, da Frente Anti-Racista e Frente de Imigrantes Brasileiros em Portugal, explica que esse processo acontece também nos bairros municipais. “Há um distanciamento entre nós do bairro e Lisboa. Há pessoas em Marvila que me dizem que ‘não estão na cidade’ a não ser quando vão trabalhar. Não usufruem dela. Há uma racialização do espaço público: a cidade é mais negra a certas horas do dia, mas depois na hora do lazer ou do encontro é completamente branca. Há também uma racialização do lazer.”
 
“Não é por acaso que as pessoas que moram nestes bairros se referem à cidade como o sítio onde trabalham mas não o sítio onde vivem”, diz António Brito Guterres, assistente social e investigador, para quem Lisboa é “uma cidade que não é de cidadãos”. Explica que uma população de 100 a 115 mil estrangeiros num total de 500 mil habitantes tem “um impacto brutal”. Apesar de não haver recolha de dados étnico-raciais, “quem está e trabalha na cidade sabe muita coisa”. Sabe, por exemplo, que “articular a questão do racismo com a exclusão é fundamental para o debate”.
 
Quando se colocam frente a frente duas margens da Avenida de Berna, de um lado temos a Fundação Gulbenkian, do outro o Bairro do Rego, onde trabalha Joana Mouta, da Associação Passa Sabi. “Ao lado de um dos metros quadrados mais caros de Lisboa, temos abandono escolar, emprego desqualificado, habitações precárias, baixa escolaridade, isolamento de idosos”, conta. A escola pública tem um papel que não se tem cumprido: “É uma opressão tripla, camuflada. Tecnicamente está-se a dar educação. Mas a igualdade está a ser servida com a capa da equidade. A educação que acompanha os bairros sociais, as zonas periféricas, acompanha esta invisibilidade e reforça a desigualdade.” E enfraquece a possibilidade de “criação de um tecido social cívico, com massa crítica que pode decidir sobre a sua vida”.
 
O mapeamento do território cruza realidades distintas separadas por poucos quilómetros. Brito Guterres dá o exemplo de taxas de retenção de alunos do 5º e 6º anos em escolas com diferentes realidades sociais: “Dados sobre Portugal e a pobreza mostram que demoramos cinco gerações a ter mobilidade social. Essas pessoas são as destes bairros”, diz Brito Guterres. Não é só “dar casa”, explica Joana Mouta. É fazer um “acompanhamento total para perceber o que se passa na vida das pessoas. A descapitalização das escolas impede as pessoas de participar nas suas próprias vidas. Passam cinco gerações e o elevador social está avariado, não funcionou.” Bárbara Ferreira, investigadora do ISCTE que trabalha nos Grupos Comunitários, explica o “efeito de bairro”: “Se acompanhamos estas pessoas ao longo dos anos, vemos como a sorte ou azar de crescer em determinado bairro vai condicionar a sua situação. Se a isto juntarmos ser mulher, cor da pele, sexualidade, outras dimensões de exclusão e injustiça, chegamos a uma percentagem de pessoas que não consegue sair do ciclo de pobreza.”
 
Brito Guterres diz que os responsáveis políticos têm tido uma “visão de funil” sobre as comunidades. “Tem-se trabalhado para uma ‘assimilação’ e é preciso trabalhar em várias linguagens, cores, varias línguas e pensamentos, é isso que nos enriquece.” É preciso ter uma “visão interseccional do território”. O poder central é “demasiado vertical”. Tratar de um elemento isoladamente não resolve problemas: “É um mito pensar que ter acesso à habitação acaba com a pobreza.”
 
 
Burocracia e participação
 
O direito ao trabalho é uma questão comum, sobretudo quando se enumeram obstáculos para as comunidades imigrantes. Naryan Subedi, da associação de Nepaleses Residentes em Portugal, explica que muitas das dificuldades dos nepaleses se prendem com condições de trabalho, mas sobretudo com a língua. “É muito complicado quando não falamos português, é um problema”, explica, porque acentua a “dificuldade em obter papeis” para a regularização dos trabalhadores.
 
Para a comunidade brasileira a situação agrava-se com a falta de formação de técnicos que acompanham processos dos imigrantes. Victor Hastenreiter, da Casa do Brasil, diz que “é uma luta conseguir número de identificação fiscal, confirmações de morada nas juntas de freguesia, empecilhos à regularização”. A regularização é importante para que os imigrantes “sintam que são também parte do país e da cidade”, por isso Hastenreiter apela a que “haja mais atenção às associações, que fazem muitas vezes o papel dos técnicos, de informação: é preciso valorizar esse trabalho e o Estado não o tem feito.”
 
Entre o concreto e o simbólico, Ângela Coutinho, da Associação Cabo-Verdiana, sublinha a importância de trabalhar ao nível das representações, das mentalidades. Lisboa é uma cidade pós-colonial, vivida por comunidades que vieram do antigo império. “Houve pessoas afro-descendentes que marcaram a cidade e a história, que viveram em Lisboa, e que contribuíram para um imaginário”, diz. “Desconhecemos a nossa história. Por isso, actuar ao nível simbólico”, da educação, da memória é “também reconhecer que temos uma história, de contradições e de tensões”.
 
É nos livros, na história e nos dicionários que estão marcados 500 anos da presença da comunidade cigana em Portugal. “Marcadas nas mentalidades, nos políticos, na polícia, nos agentes de serviço público”, diz Rogério Roque Amaro, professor no ISCTE que trabalha com 15 grupos comunitários. “Estas comunidades vieram para a cidade com o 25 de Abril e nós não estávamos preparados para os receber. E continuamos a vê-los como um caso de polícia e não como um caso social”, continua. Roque Amaro explica que os poderes públicos continuam a olhar para “as comunidade ciganas, no plural” de forma errada: “Primeiro, ao pô-los todos no mesmo saco. Não há uma só comunidade cigana. Depois, a vê-los pelos nossos olhos, a nossa ignorância. Isso leva a erros de percepção, de acção e de propostas.”
 
Os activistas lembram que muitas das mudanças se devem sobretudo a processos de resistência. Muitas lutas só foram possíveis porque “houve no terreno capacidade de protestar, de nos mexermos pelos colectivos. Houve uma luta que não só reivindicou, mas também propôs, construindo”, diz Roque Amaro. A solução tem de passar pelas comunidades, pelos comuns. É nos grupos comunitários, diz, “que ponho muitas das minhas lutas e convicções, para pensar o político e confinar o privado. Precisamos de construir uma cidade com as comunidades e trazer para a discussão política este terceiro elemento que tem faltado: a comunidade.”