Lisboa é uma cidade complexa, dinâmica, energética. Um conjunto intrincado de pessoas, tradições, actividades económicas, espaços sociais, como o são todas as capitais do mundo. Fazer um balanço ao seu “estado” é uma obrigação permanente dos que, como nós, fomos eleitos e participamos activamente no poder local democrático.
Nesta sua complexidade, existem em Lisboa os
mais diversos aspectos que podem ser abordados, sendo indispensável focar os principais problemas e desafios que persistem, os traços que marcam o quotidiano da cidade e de quem cá vive.
No plano social, intensifica-se a desertificação e gentrificação do tecido urbano. A famigerada lei das rendas que o governo PSD/CDS fez e o PS insiste em manter, e que pode e deve ser revogada o mais rapidamente possível, aliada à especulação imobiliária que transforma casas e edifícios de habitação permanente em unidades hoteleiras e de alojamento local, confluem em numerosos e muitas vezes dolorosos despejos e a um aumento das rendas para níveis incomportáveis. É a negação do direito à habitação. Pode-se afirmar que esta análise é fatalista mas a realidade ilustra tristemente o fenómeno e muitos dados estatísticos corroboram-no. Ainda ontem fizeram notícia os dados de um estudo que constatou que a taxa de esforço das famílias da cidade de Lisboa ao pagar a renda era de 67%. Para as casas compradas a taxa de esforço era de 58%. Mais de metade do rendimento (no caso do arrendamento são 2/3) do agregado familiar para garantir um tecto. É a negação do direito à habitação para milhares de pessoas! E estes dados são do final de 2018. Daí para cá, mantém-se a sucessão de anúncios de novos hotéis – veja-se o Quartel da Graça, monumento nacional que irá dar lugar a hotel com 120 quartos -, crescem os projectos de condomínios privados e habitação de luxo. Este mesmo estudo, feito pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa afirma que esta tendência de subida do peso da despesa em habitação no orçamento familiar pode originar “uma fragmentação e segregação nas cidades que ficam impedidas de fazer a renovação geracional e de diversidade que lhe são fundamentais”. Diz a FCSH, não é o PCP.
E há quem defenda que estes processos valem a pena e que, em nome da reabilitação urbana, Lisboa vai-se transformando. Mas essa reabilitação urbana não é neutra, do ponto de vista dos interesses que serve e das suas consequências sociais, não resultando, como podia e devia, numa melhoria das condições e do acesso à habitação. Pelo contrário. São milhares de pessoas que vão viver para outros concelhos e temos o tal do “mercado”, aquele que se deve deixar funcionar para que tudo corra lindamente, a abrir perspectivas de residência para muito poucos mas que garantem muito lucro a quem vai avançando nesta “reabilitação privada” que temos do edificado.
Ainda na questão da habitação é fundamental abordar os bairros de gestão municipal, onde se calcula que vivam mais de 60 mil lisboetas. Estes Bairros, habitados por população de mais baixos rendimentos e inúmeras vulnerabilidades, enfrentam um dia a dia em casas deterioradas, sem condições de habitabilidade; tipologias desfasadas das necessidades das famílias; prédios com espaços comuns degradados e sem manutenção; lojas abandonadas; um espaço público muitas vezes sujo e destroçado onde faltam equipamentos para crianças e idosos e espaços verdes; onde falta segurança e tranquilidade, actividades de lazer, cultura e desporto; onde faltam transportes, centros de saúde, farmácias ou, simplesmente, uma mercearia ou um multibanco. Bairros onde as poucas obras que se vão realizando pecam por tardias, longe das necessidades há muito identificadas e não poucas vezes mal executadas.
A gestão PS-BE da cidade opta por uma política que concentra os meios e o investimento na manutenção de algumas zonas nobres da cidade, para a promoção do turismo como único eixo de desenvolvimento económico, prejudicando e amputando a nossa diversidade económica, nomeadamente ao nível do sector produtivo. Essa opção é feita em detrimento das pessoas, das zonas habitacionais, dos bairros históricos e municipais e de uma real política de planificação do espaço urbano visando o bem-estar e o desenvolvimento económico, social e ambiental.
E se, mais uma vez, nos pretendem acusar de exagero e fatalismo, basta OUVIR as muitas dezenas de munícipes que passam por esta Assembleia Municipal, apresentando sistematicamente problemas com habitação e, em grande parte, com a habitação municipal.
Para o PCP, é uma exigência cumprir e efectivar o direito à habitação, um direito constitucionalmente consagrado. E, em Lisboa, afastamo-nos cada vez mais do cumprimento desse direito.
Outra vertente fundamental da vida numa cidade, não só para quem vive mas também para quem todos os dias para cá se desloca, é a acessibilidade, a mobilidade e os transportes públicos.
O PCP valoriza a importância do alargamento do passe social intermodal, e não podemos deixar de sublinhar o papel central que o PCP e a luta dos utentes e trabalhadores desempenharam para este avanço. Mas nestes tempos em que todas as forças políticas se esmeram em valorizar uma proposta que o PCP apresenta e defende desde 1997 – e que até 2016 encontrou oposição de PS, PSD e CDS e abstenção do BE -, é importante frisar que este avanço pode ser posto em causa se não se concretizarem um conjunto de outras medidas que ampliem a oferta e alarguem a redução tarifária a todo o Distrito, caminhando para a gratuitidade. Durante 20 anos disseram-nos que era impossível pôr de acordo todos os municípios e todos os operadores de transporte. Era impossível, até ser feito. Agora, é indispensável que se avance, nomeadamente com o investimento necessário para garantir um verdadeiro acesso ao transporte público.
Outra questão fundamental para o futuro e a acessibilidade na cidade é a nova linha do Metropolitano. Com a linha «circular» pretende-se unir as linhas Amarela e Verde no Campo Grande e Cais do Sodré, com duas novas estações em Santos e Estrela, o que, na nossa opinião, transformará a actual linha Amarela num ramal Telheiras-Odivelas. Este projecto, que vai custar centenas de milhões de euros e provocar transtornos gigantescos durante a fase de obra, implica a redução da oferta na Zona Norte de Lisboa, Odivelas e Loures, bem como o adiamento de outros investimentos – estes sim, úteis – como a expansão da rede à zona ocidental da cidade e a Loures. A população de Telheiras é prejudicada com o fim da sua ligação directa à linha Verde e as do Lumiar, Ameixoeira e Charneca com a perda da ligação à linha Amarela. Sem ligação directa à linha Amarela, fica também a população de Odivelas seriamente prejudicada, enquanto a de Loures continuará à espera de ver o Metro chegar ao seu concelho. As populações de Alcântara, Ajuda e Belém também vêm adiada ou mesmo comprometida a expansão da rede do Metropolitano para a zona ocidental da cidade. Já os moradores de Oeiras e Cascais serão prejudicados com os transtornos que a construção da linha «circular» vai provocar à linha ferroviária de Cascais e ficariam a ganhar com uma ligação de Alcântara à linha Vermelha do Metropolitano. Todos somos prejudicados quando se desviam centenas de milhões de euros para esta opção, recursos que fazem falta para colocar o Metropolitano a funcionar melhor (contratando os trabalhadores que continuam em falta; fazendo uma efectiva manutenção de escadas e elevadores; concluindo as obras do Areeiro e efectuando as de Arroios, apenas para dar alguns exemplos), e para construir as urgentes expansões a Loures e Alcântara, Ajuda e Belém. A linha circular é uma opção que só beneficia os interesses especulativos imobiliários na zona das novas estações e serve mais e mais a monocultura do turismo em detrimento da população da Área Metropolitana de Lisboa.
Ainda há tempo para travar o desbaratar de recursos (210 milhões de euros!) na linha “circular” do Metro. A Assembleia da República, em 5 de Julho passado, rejeitou este projecto e dessa deliberação resultou uma resolução na qual se recomenda ao Governo “a suspensão” do mesmo. Nesse sentido, na 5ª feira, dia 24 de Outubro, os moradores, utentes, trabalhadores e autarcas concentram-se às 16h, junto à estação do Campo Grande, numa acção de protesto contra a linha circular.
É necessária uma aposta na qualidade e na acessibilidade do transporte público, cobrindo toda a extensão da cidade mas com uma visão integrada dos diferentes modos de transporte à escala metropolitana.
Mas falar no estado da cidade também é falar do futuro, da aposta na qualificação, no compromisso com as novas gerações. O ponto de situação na educação em Lisboa evoluiu de mau para péssimo, perspectivando-se caótico a curto prazo. Senão, vejamos: tínhamos um conjunto de escolas sob responsabilidade da CML que se foram degradando, durante anos, com as queixas de pais e trabalhadores e sucessivas interpelações no plano institucional (o PCP apresentou dezenas de requerimentos sobre situações concretas, graves e urgentes). Oscilando entre a desvalorização perante os problemas apresentados e as respostas de que tudo estava a ser resolvido, assistimos a situações agigantarem-se e ganharem dimensões cada vez mais surreais e complicadas de resolver. A sistemática ausência de manutenção e reparação levou alguns edificados à “quase insolvência”, do ponto de vista arquitectónico. A repetida falta de equipamentos, de medidas de segurança, de pessoal, de materiais de apoio, coloca outros equipamentos na mira de pais e trabalhadores que não se conformam com a falta de respostas. Temos trazido aqui estes exemplos flagrantes de falta de investimento na educação, nas crianças da cidade. E para que não nos acusem do recorrente – que apresentamos uma realidade que não existe, de uma Lisboa que não é esta em que estamos e vivemos – relembro apenas algumas das escolas cujos problemas levantámos aqui (e também na CML, e em Assembleias de Freguesia, e nas próprias escolas, em visitas ou em solidariedade com os protestos): Escola Básica Professor Oliveira Marques (Calçada das Lajes – Penha de França), a Escola Fernanda de Castro (Tapada das Necessidades), a Escola Básica Alexandre Rodrigues Ferreira (Ajuda), a Escola Eurico Gonçalves (Santa Clara), a Escola EB1 Teixeira de Pascoais (Alvalade), a Escola EB1 Telheiras (Lumiar), só para relembrar algumas das escolas da cidade.
No início do ano lectivo, o sr. Presidente partilhou com esta Assembleia a satisfação com a evolução positiva no domínio da educação. Inaugurar 7 escolas na semana de abertura do ano lectivo – e 2 semanas antes das eleições legislativas – é de facto positivo para as crianças, pais e trabalhadores dessas SETE escolas. Mas o que dizer aos das outras 30 ou 40 escolas que têm problemas graves e antigos que urge resolver e que o relatório de avaliação do estado de conservação de Jardins de Infância e Escolas do 1º Ciclo do Ensino Básico do LNEC tão claramente traçou? Para essas escolas, para essas crianças, continuam a existir soluções adiadas e silêncios ensurdecedores. O vereador Manuel Grilo, em resposta recente a um requerimento do PCP, apresentou as “necessidades de intervenção de carácter urgente e inadiável” em estabelecimentos escolares do 1º Ciclo que começam na Páscoa (!) e continuam no Verão de 2020. Se tivessem começado, estas obras, ontem era tarde. Mas não, é para o ano.
Mas este quadro traça-se para o ensino básico da cidade. Que dizer sobre as novas competências, que emanam do acordo feito por PS e PSD, e que a maioria desta Câmara tão alegremente abraçou? – mesmo sem conhecer o estado dessas escolas nem estarem definidos os montantes para a sua gestão. Aceitar, receber, fazer inclusive a festa – como aconteceu na intervenção sobre o início do ano lectivo aqui – e depois, bem, depois logo se vê. Mais uma vez, reafirmamos a gravidade desta transferência de competências e alertamos para as consequências: são crianças, são estabelecimentos de ensino, são milhares de pessoas envolvidas. E muito mas mesmo muito poucas soluções à vista para tantos problemas e dificuldades. O programa de requalificação das escolas do 2º e 3º ciclos apresentado – e que fez parangonas nos jornais no dia seguinte à intervenção do sr. Presidente aqui – seria interessante se não fosse totalmente desfasado da (falta de) capacidade da CML demonstrada no estado e funcionamento das escolas que já estavam sob a sua gestão.
E os problemas não são apenas de edificado e de condições físicas de funcionamento. Nos últimos dias, foram várias as escolas do nosso concelho que tiveram protestos, redução de horário de abertura e mesmo encerramentos por falta de pessoal não docente. Nas escolas do Agrupamento Fernando Pessoa, nas escolas do Agrupamento Virgílio Ferreira, na escola Manuel da Maia, sucederam-se protestos de pais, alunos e pessoal não docente. São situações limite, insustentáveis: escolas que até podem cumprir os rácios pessoal não docente/número de alunos (já de si insuficientes e que era importante perceber o que tem feito a CML para pressionar o Governo para alterar o que está previsto na lei) mas ignorando os trabalhadores que estão de baixa ou em horários reduzidos; escolas que têm uma única funcionária para tomar conta de vários laboratórios mais a galeria de artes e ainda uma sala de ensino especial; escolas em que a mesma funcionária faz a portaria e a limpeza e que nenhuma das tarefas é cumprida na sua hora de almoço porque não há mais ninguém; escolas que “partilham” funcionários que fazem parte do seu horário num estabelecimento de ensino e o restante, noutro. O PCP esteve ao lado destes trabalhadores e dos pais e alunos, conhece esta realidade. Mas mesmo quem insiste em aligeirar o quadro e acusar de dramatismo quem o traça não pode ignorar a repercussão mediática da situação vivida nas nossas escolas.
Os trabalhadores não docentes destas escolas de Lisboa – infelizmente não são excepção, este é o cenário por todo o país agravado pela promessa feita pelo governo em fevereiro de reforço com mais 1.000 contratações, mas que não foi cumprida – são poucos, sobrecarregados, desvalorizados e encontram-se neste momento na pior situação laboral: já não são do Ministério da Educação e ainda não são da CML. Ambas as entidades lavam as mãos e descartam responsabilidades nesta situação. Os problemas vão manter-se e agravar-se se não forem tomadas medidas urgentes. As movimentações e as lutas, seguramente também irão manter-se.
A CML, a cidade!, com esta transferência de competências, herdou um problema gravíssimo. Como pretende o Bloco de Esquerda, responsável político deste pelouro, resolver o subfinanciamento crónico para estas escolas e onde encontrará a capacidade de intervenção e resolução de problemas para todos os graus de ensino, que tão duramente tem faltado para apenas o 1º ciclo de ensino?
As questões da habitação, os transportes e mobilidade, a educação, têm que ganhar centralidade num debate sobre a cidade que temos e a cidade que queremos, actualmente.
Uma cidade que deixe de ser um produto de consumo em si mesma mas que seja pensada e construída principalmente para os que a habitam e para os que da cidade dependem, porque aqui trabalham.
Uma cidade que preserve a sua matriz identitária, que valorize as actividades humanas – nas suas mais variadas expressões: trabalho, relações sociais e afectivas, cultura e memória – que são a base e o fundamento da densidade de Lisboa.
Uma cidade que promova a igualdade na sua fruição e fortaleça o exercício de direitos: o direito à habitação, ao emprego, à mobilidade, à cultura e ao lazer.
Uma cidade mais justa, mais desenvolvida e mais próxima dos seus bairros e populações.
É essa cidade que queremos e a que temos direito só é possível com uma outra política.