Transportes Públicos Gratuitos: utopia, demagogia, ou projecto?

Transportes Públicos Gratuitos: utopia, demagogia, ou projecto?

in Caderno Vermelho, Setembro de 2016

A luta que se trava em torno dos transportes públicos, tal como em torno dos serviços públicos em geral, assenta na resistência a um conjunto de opções das classes dominantes mascaradas de inevitabilidades. E importa sublinhar o carácter de opção do que é apresentado como inevitável.

Um longo e laborioso caminho continua a ser percorrido, em Portugal e na União Europeia, para impor a liberalização do sector dos transportes: das directivas à sua transposição para a lei nacional, do endeusamento da concorrência à sua «livre» imposição, das limitações ao funcionamento das empresas públicas até ao apoio privilegiado às grandes multinacionais, da «flexibilização» das relações laborais à utilização da «capacidade acrescida de explorar» associada à «livre» concorrência como mecanismo para aumentar a taxa de exploração.

Essa longa ofensiva procura impor a crescente mercantilização dos transportes públicos, com a aplicação de princípios como o de utilizador-pagador, com o sistemático aumento de custos para os utentes a par da redução da mobilidade oferecida, com o objectivo cada vez mais assumido de que os transportes sejam uma mercadoria que se consome e não um serviço que se usa.

É nesse quadro que a reflexão proposta no título ganha sentido. Afinal, quem se atreve a assumir a recusa da hipótese de serviços público gratuitos? Mas é preciso ser realista, sério, dirão. Reflictamos sobre isso para desmitificar um conjunto de «verdades absolutas» que têm servido como instrumento para tentar paralisar a resistência e a luta dos trabalhadores e do povo.

Utopia?

Esta é aquela que mais facilmente podemos descartar. Utópico é o que não existe nem existirá, é o «em lado nenhum» para que aponta a sua raiz grega. Ora, transportes gratuitos existiram e existem ainda hoje. E já agora, em países socialistas e em países capitalistas. Na URSS e na generalidade dos países socialistas da Europa de Leste os transportes públicos estavam completamente desmercantilizados, e ou eram gratuitos ou exigiam pagamentos simbólicos, mais vinculados à utilização racional dos recursos que a uma operação de compra e venda de mercadorias. Se procurarem na Wikipédia «zero-fare public transport» encontrarão uma vasta lista de cidade, da capital da Estónia a dezenas de cidades nos Estados Unidos, onde os transportes públicos são completamente grátis hoje. E são cidades inseridas na economia capitalista.

Mas não só de gratuitidade temos de falar. Se olharmos para a percentagem de apoio estatal ao funcionamento da rede de transportes públicos veremos que a relação existente em Portugal é completamente contracorrente na própria União Europeia, particularmente por comparação com os países do centro.

Reparem no quadro nº1. A norma é cerca de 50% dos custos de exploração serem assegurados por apoios públicos (e isto independentemente da exploração ser pública ou privada). Ora em Portugal caminha-se para um sistema que finge ser de zero a comparticipação pública (e dizemos finge porque a consequência destas políticas tem sido o crescimento da dívida das empresas públicas, colocando-as nas mãos da banca e criando as condições para promover a «necessidade» de as privatizar por causa da dívida). Reparem que em 2014 o Estado já só assumia 3,4% e 14,8% dos custos operacionais da Carris e do Metropolitano de Lisboa. Mas no concurso para a subconcessão dessas empresas o Estado aceitava assumir a responsabilidade (via dívida das empresas públicas) de pagar mais de mil milhões de euros à multinacional que ganhou o concurso.

Que mesmo em países capitalistas possam existir níveis elevados de apoio público ao transporte público – mesmo onde este se encontra mercantilizado – tem várias origens (mas nascendo sempre de justas reivindicações populares) e várias explicações (desde esta poder ser uma forma de distribuição dos superlucros até algo tão simples como o facto de que uma eficaz rede de transportes públicos trazer vantagens para a economia, e no caso de uma sociedade capitalista, essas vantagens são essencialmente acumuladas pelos capitalistas). É reflexo do seu próprio atraso e da sua submissão neocolonial(*) que em Portugal a burguesia se submeta às posições neoliberais mais radicais.

Quadro 1

Dados da: European Metropolitan Transport Autorithies (2012)

Cobertura Dos Custos Operacionais

Pelas receitas das tarifas

 

Por subsídios Públicos

45,20%

Região Metropolitana de Barcelona

54,80%

48,90%

Berlin-Branderburg

51,10%

46,90%

Bruxelas Metropolitana

46,40%

49,40%

Helsinquia

50,60%

55,90%

Grande Londres

32,20%

44,00%

Comunidade Madrid

56,00%

36,00%

Turim

64,00%

31,00%

Varsóvia

59,50%

48,80%

Metropolitano Lisboa (2013)

27,30%

46,90%

Metropolitano Lisboa (2014)

14,80%

79,60%

Carris (2013)

18,60%

70,90%

Carris (2014)

3,40%

Demagogia?

Dirão alguns nesta fase: Ok, mas em Portugal isso não é possível, o país não tem recursos para realizar essa política e garantir esse nível de apoio público. E é aqui que surge tantas vezes a acusação de demagogia a quem propõe ou exige uma política radicalmente diferente para os transportes públicos.

É para essa discussão que o quadro 2 é particularmente útil. Para a empresa Metropolitano de Lisboa apresenta-nos o total de despesas de exploração e os custos assumidos em cada ano com o pagamento de juros e com as swaps. Veja-se: em 2013 o pagamento de juros e swaps teria sido suficiente para o Metro funcionar mais de 7 anos sem cobrar bilhetes! Em cada ano, aquilo que se paga em juros e swaps é sempre superior às receitas de bilheteira. E já devem ter ouvido falar da decisão de um Tribunal Inglês de que as Empresas Públicas portuguesas têm que pagar 1,8 mil milhões de euros ao Santander por causa de mais 9 swaps. Ou seja: só estas 9 swaps equivalem a 20 anos e uns meses de receitas do Metro. E elas vão ser pagas. Durante 20 anos vamos estar, literalmente, a desviar todas as receitas do Metro para pagar 9 swaps. Então, se não houvesse swaps não poderíamos prescindir dessas receitas? E porque é que há swaps?

Por que é que uns senhores perdem uma aposta sobre o valor futuro da taxa de juro (uma

swap é isso) e nós todos temos de pagar 1,8 mil milhões, mas não havia 1,8 mil milhões para o Metro funcionar gratuitamente durante vinte anos?

E não se pense que isto é uma situação excepcional. Não. É só um exemplo. Já se pagou mais que

isso noutras dezenas de swaps. E pagaram-se 374 milhões de euros em juros em 2014 só em 5 empresas públicas de transportes da AML. E pagaram-se-se mais de 1,5 mil milhões de euros em 2015 pelas PPP’s rodoviárias. E paga-se mais de 8 mil milhões em juros pelo Estado receber emprestado o seu próprio dinheiro. E há sempre dinheiro para a banca, para a especulação, para o grande capital. Só não há dinheiro para satisfazer as necessidades do povo e do país.

É que é central percebermos que da mesma forma que a austeridade é na realidade concentração de riqueza, também os recursos necessário para uma correcta política de transportes só faltam porque estão a ser desviados.

E optámos por dar aqui um exemplo fácil, escandaloso e impossível de contestar. Mas importa ter presente que os verdadeiros ganhos para o país de um eficaz sistema de transportes (ambiente, redução de importações, ordenamento urbano e do território, factura energética, dinamização económica, etc) superam em muito o valor que nesse sistema é preciso investir da parcela dos impostos arrecadados.

(E já agora, em jeito de nota de rodapé, incluímos no quadro os valores pagos aos trabalhadores, cuja comparação com os valores pago aos bancos deve ser útil para alguns cabeças mais intoxicadas pela propaganda contra os trabalhadores dos transportes e seus «privilégios».)

Quadro 2

Metropolitano de Lisboa

2013

2014

Antecipação do Pagamento de algumas Swaps para as anular

475,4 M€

 

Juros Pagos

136,9 M€

134,3 M€

Total Serviço da Dívida

612,3 M€

134,3 M€

     

Remunerações do Pessoal

46,4 M€

44,5 M€

(Número de anos de salários que seriam pagos com o que se gastou em swaps e juros NESSE ano)

13 anos e três meses

3 anos

     

Receitas Tráfego

78,6 M€

88 M€

(Número de anos que se poderia andar gratuitamente no Metro, só com o que se gastou em swaps e juros NESSE ano)

7 anos e 9 meses

1 ano e 6 meses

Projecto!

Chegados aqui, feita a demonstração que esta questão dos transportes públicos gratuitos não é nem uma utopia nem demagogia, falta tratar de uma última e decisiva «objecção»: mas o PCP não reivindica a gratuitidade dos transportes públicos.

Certo. E errado.

Errado porque o projecto do PCP para Portugal é o socialismo e o comunismo, e isso implica a progressiva desmercantilização da sociedade, e por acrescidas razões, de todos os serviços públicos.

Certo, na medida em que as reivindicações que hoje apresentamos, correspondendo à actual fase da luta, não assentam na gratuitidade.

O PCP tem-se batido incansavelmente contra os sucessivos aumentos de preços, contra a progressiva redução da oferta, contra a crescente limitação do uso do transporte público ao percurso casa-trabalho ou escola-trabalho. O PCP tem exigido que os apoios públicos sejam assegurados embora moralizados (uma coisa é apoiar os transportes públicos outra é em seu nome andar a financiar a especulação). O PCP opôs-se a todas as privatizações, e continua a lutar pelo regresso à posse pública do que já foi privatizado. O PCP tem denunciado o recolher obrigatório a que estão sujeitas as populações de vastas regiões e de bairros inteiros, uns sem qualquer sistema de transportes por longos períodos outros sem recursos para assumir os custos de «mercado» da utilização da rede pública de transportes. A campanha do PCP, em curso na área metropolitana de Lisboa, em defesa do alargamento do passe social intermodal a todos os operadores, todas as carreiras e toda a área metropolitana sem aumento de preços é um exemplo de uma medida que rompendo com o caminho da liberalização é concretizável sem rupturas mais vastas para as quais há que acumular mais forças.

Todas estas lutas – e tantas outras que aqui não cabem – apontam a que os transportes públicos se centrem nos utentes, nas suas necessidades, nos recursos existentes e na nossa organização colectiva para, através do trabalho emancipado, satisfazermos essas necessidades.

Apontam ao projecto comunista.

(*) Não é o objecto deste artigo, mas a política de liberalização dos transportes tem-se traduzido na concentração monopolista à escala europeia, com meia dúzia de multinacionais, a maioria de origem alemã ou francesa, a apossarem-se dos serviços públicos de cada vez mais paises, extraindo-lhes rendas. Em Portugal, a DB alemã (pública!) é dona da TST e de 30% da Barraqueiro, e a Transdev francesa tem a propriedade do essencial das rodoviárias do centro e norte do país.