Manuel Augusto Araújo, LOPES-GRAÇA, UM ARTISTA MILITANTE

LOPES-GRAÇA, UM ARTISTA MILITANTE
UM MILITANTE DA VIDA E DA ARTE
UM MILITANTE COMUNISTA

Manuel Augusto Araújo

(in Caderno Vermelho 14, Setembro 2006)

 “ Confesso-lhe com toda a sinceridade que prefiro, do ponto de vista de comunicação artística, deslocar-me com o Coro da Academia de Amadores de Música à mais esquecida vila alentejana ou beirã, ou à mais popular (e não alienada) colectividade filarmónica recreativa da Outra Banda, a receber os aplausos medidos e convencionais que na generalidade se dignam dispensar à minha música os frequentadores habituais das salas de concerto da capital.”

Com esta simplicidade Fernando Lopes-Graça traça os princípios de um programa de acção cultural que deveria ser motivo de reflexão por todos os que trabalham nas áreas culturais, sobretudo quando é comum fazerem-se acções pretensamente culturais e populares que escorregam ruidosamente no populismo mais rasca ou, no pólo oposto, realizam-se actividades de significações opacas que são pretensamente entendidas por uma meia dúzia de eleitos que fingem perceber o que estão a ver e a ouvir e que é a exploração do snobismo implantado na lapela como sinal distintivo de classe.

A declaração de Lopes-Graça é uma lição, uma lição penetrante na sua aparente naturalidade. Destaca a comunicação artística, a comunicação entre um Coro que é um exemplo de instituição democrática, onde convivem pessoas das mais diversas profissões e classes sociais, irmanados pelo gosto de praticarem música, aquela música e não uma outra qualquer, e o público que vibra com as mensagens veiculadas pelas canções desenvolvidas sobre linhas melódicas mais ou menos complexas que o compositor escrevia recuperando, estudando e inovando a tradição no seu sentido mais nobre e abjurante de perversões folclóricas. Naquela curta declaração de Lopes-Graça está igualmente subentendido que os caminhos da música percorrem-se sempre sem concessões, o que se pode extrapolar para todos os outros campos de actividade artística. Referindo-se implicitamente ao seu trabalho como um todo, está a explicitar que a sua escrita musical é tão depurada e rigorosa quando escreve uma canção regional como quando escreve o Requiem pelas Vitimas do Fascismo em Portugal, que quem ouve uma canção popular portuguesa de Lopes-Graça está a descobrir e a trabalhar o seu ouvido musical que fica mais apto a perceber as subtilezas das outras Canções Regionais ou do Concerto de Camera com violoncello obligato ou dos Sete Apótegmas.

Escrita musical sem concessões e em permanente autocrítica. É com extraordinária limpidez, sagacidade e concisão que Lopes-Graça explica, numa entrevista ao JL, como escreve música recusando a ideia platónica da inspiração: “…o próprio trabalho nos conduz ao que se chama inspiração. Há ideias que surgem e que são exploradas tecnicamente. O que se julga ser inspiração é sim o resultado de muitas horas, meses de trabalho, perscrutando os segredos da própria obra (…) A primeira palavra é a última e a última é a primeira. Depois há um processo de autocrítica (…) O trabalho é isso: uma autocrítica permanente sobre a tarefa que se tem entre mãos.” E quando, na sequência dessa declaração, quem o está a entrevistar pergunta ingenuamente qual tinha sido a peça musical que tinha motivado mais autocrítica o compositor explode “ Mas todas! Da mais simples à mais complexa! É que a autocrítica pode – e deve ser – um trabalho de reflexão. Tudo emotivo de reflexão. Não sou, pois, um compositor inspirado; sou um compositor que trabalha. Inspiração é uma palavra muito vaga que não resolve coisa nenhuma!”

É evidente que Fernando Lopes-Graça é um compositor inspirado. A ênfase que coloca no trabalho, tem o propósito de aproximar o trabalho manual com o trabalho intelectual, para emalhetar as suas especificidades e autonomias. Ele tem inspiração mas sempre trabalhou muito e fazia questão de não descurar nenhum dos seus outros compromissos. Não era por estar a compor uma grande obra sinfónica que deixava de ir ensaiar o Coro da Academia dos Amadores de Música ou de o ir dirigir num concerto numa distante colectividade ou de se empenhar num comício político afirmando a sua paixão pela liberdade e pelo futuro do socialismo, actividade militante que manteve até ao fim da sua vida e que estava presente na sua obra musical.

Nessa área as “Heróicas” são um caso extremo “ … canções politicamente empenhadas. Politicamente empenhadas no sentido, ou na medida em que pretenderam contribuir – e que cremos que, de facto contribuíram – para a luta do povo português, a que primordialmente foram destinadas, contra o regime despótico, antidemocrático e violentador de corpos e almas que durante cinquenta anos lhe foi imposto.” E de que modo contribuíram aliando a palavra dos poetas – Nada poderá deter-nos / nada poderá vencer-nos/ vimos do cabo do mundo / com este passo seguro / de quem sabe para onde vai (Joaquim Namorado); Vozes ao alto! / Vozes ao alto! / Unidos como os dedos da mão / havemos de chegar ao fim da estrada / ao sol desta canção (José Gomes Ferreira) e as de Carlos Oliveira, Afonso Duarte, Mário Dionísio e tantos mais – à música inspirada e exaltante de Lopes-Graça.

A relação da sua música com a poesia é uma constante que se inicia em 1928 com a Primeira Anteriana e finda em 1987 com os Quatro Momentos de Álvaro de Campos. São muitos os poetas, refiram-se Adolfo Casais Monteiro, Fernando Pessoa, Camões, Armindo Rodrigues, Teixeira de Pascoaes, Federico Garcia Lorca, Mário Cesariny, Cabral Nascimento, Gil Vicente, Ricardo Reis, Sophia Mello Breyner, que inspiraram o trabalho do compositor e indiciam o enorme fundo cultural cultivado por Lopes-Graça. Homem de cultura, atento a todos fenómenos culturais e que, como homem de cultura, execrava os pedantismos, os tiques aquela ganga que produz os maiores estragos nas artes e nas filosofias das artes.

O trabalho de Lopes Graça alargou-se à divulgação da música moderna e aos compositores que estavam a escrever a nova música, nos alvores do século XX. É sobretudo a ele, através dos seus escritos, que se começam a conhecer em Portugal, por exemplo, Stravinsky, Hindemith, Bela Bartok, Schoenberg. São textos de grande concisão, de um homem muito atento ao que de novo se fazia na música o que, na época e sem os meios de reprodução e circulação de bens culturais que hoje existem mais todos os constrangimentos impostos pelo fascismo visceralmente desconfiado dos ventos da história, é um trabalho notável. Ler hoje os textos de Lopes-Graça continua a ser uma fonte de prazer.

Continua a não ser fácil conhecer a obra musical de Lopes-Graça. Só uma pequena parte está editada em registo fonográfico e enquanto as pautas não forem editadas dificilmente o serão. É a maldição dos pequenos países e de politicas estatais que não se empenham nas questões de fundo e transformam parte das políticas culturais em politicas de relações públicas, por vezes em promiscuidade chocante. É por demais sabido que os artistas são tanto mais conhecidos quanto mais tiverem nascido em países que tenham canhões e moeda forte para os protegerem e divulgarem. Sendo essa a realidade, é necessário que os estados David tenham politicas culturais concretas para se irem impondo aos estados Golias, mesmo que acordem subitamente ao som de um centenário, como é agora o caso.

Retornando a questões inicialmente referidas: quando Lopes-Graça põe a tónica no trabalho em confronto com a inspiração, ele bem sabe quanto trabalho dá ter inspiração, fá-lo com o propósito de não se circunscrever exclusivamente à prática artística. De aplicar, como ele fez, esses mesmos princípios a toda a sua vida, a todos os actos da sua vida, compondo música com o mesmo rigor com que escrevia, intervinha politicamente ou cozinhava. E sempre foi assim ao longo da sua vida. Com vinte e cinco ou com setenta e cinco anos a diferença encontrava-se nas experiências e nos conhecimentos adquiridos.

A verticalidade e a coragem com que enfrentou a vida não deixaram margem para que a repressão a que foi sujeito pelo fascismo o alquebrasse ou limitasse a sua actividade profissional. Este homem, este artista, este artista militante e militante comunista escrevia música, aprofundava princípios estéticos, desenvolvia uma intensa actividade pedagógica, agia politicamente estivesse onde estivesse, na sua casa em Lisboa ou na Parede, desterrado em Alpiarça, quando Alpiarça estava quase na fronteira do fim do mundo, ou exilado em Paris. Um artista e um patriota que enfrentando o cerco das inúmeras dificuldades com que o fascismo o perseguiu nunca perdeu o orgulho de ser português o que o fez recusar a cidadania que a França lhe ofereceu, reconhecendo-lhe o valor como artista e cidadão.

Um exemplo de artista militante e de militante comunista, não só para os comunistas como para toda a sociedade nestes tempos frívolos em que a arte corre atrás das modas, em que os princípios morais e políticos se perdem na voracidade de um pragmatismo amoral, em que se justificam com cinismo as traficâncias mais descaradas, em que a ética é contrabandeada e se faz a apologia da vulgaridade.

Um homem e uma obra que ficam para lá do tempo.