Filipe Diniz, Democracia e Liberdade

Filipe Diniz,

Intervenção no Encontro do PCP "Democracia e Liberdade" de 27 de abril de 2007 

 

Para nós, comunistas, democracia e liberdade não constituem um qualquer referencial ideal, abstracto e intemporal. Constituem, para existir, um conjunto concreto de condições, meios e garantias através das quais são assegurados aos indivíduos e aos grupos sociais a intervenção, com os seus objectivos próprios, na configuração da sociedade. E essas condições, meios e garantias também não são intemporais nem abstractos. Têm um sentido e um critério de classe.

Nós temos um profundo amor à liberdade. Toda a nossa história é a história de uma luta constante pela conquista pelos trabalhadores e pelo povo das liberdades democráticas, e pela sua defesa e consolidação. Por isso mesmo, sabemos, e nunca devemos esquecer, que a liberdade é conquistada e construída na luta pelo exercício concreto de múltiplas liberdades. Se elas não existem, não existe liberdade.

Liberdade de reunião. Liberdade de associação. Liberdade de opinião. Liberdade de consciência. Liberdade de criação cultural. Liberdade de aprender e ensinar, para citar algumas das que estão consagradas na Constituição da República Portuguesa. Na nossa Constituição, liberdades, direitos e garantias constituem uma unidade indissociável.

Mas nesse campo, como noutros, uma coisa podem ser os preceitos constitucionais e outra coisa, bem diferente, podem ser as tendências efectivas de evolução do quadro social, político e ideológico dominante.

Há liberdades que certamente a Constituição não consagra, mas que são exercidas com todo o vigor.

E o seu exercício limita e anula direitos e garantias fundamentais. A Constituição não consagra a liberdade para o grande capital agravar até limites insuportáveis a exploração da força de trabalho.

Mas o grande capital exerce essa liberdade, e ao exercê-la anula o direito constitucional fundamental dos trabalhadores ao trabalho e a uma vida digna. A Constituição não consagra a liberdade da grande especulação imobiliária construir indiscriminadamente onde quer que lhe convenha. Mas a grande especulação imobiliária exerce essa liberdade, e ao exercê-la anula o direito fundamental dos cidadãos a um território ordenado e equilibradamente desenvolvido. A Constituição não consagra a liberdade de o grande capital exercer um férreo controlo político e ideológico sobre os grandes meios de comunicação social. Mas o grande capital exerce essa liberdade, e ao exercê-la anula o direito democrático a informar e ser informado sem impedimentos nem discriminações.

Esta situação é inseparável do processo de desfiguramento do regime democrático e de reconfiguração do papel do Estado que as políticas de direita têm vindo a realizar, e que o actual Governo acelera e radicaliza.

Faz parte do nosso património teórico e ideológico uma profunda compreensão da natureza e do papel do Estado na sociedade dividida em classes. É útil relembrarmos, no contexto actual, o que camarada Álvaro Cunhal escreveu no seu texto “A questão do Estado, questão central de cada revolução”, acerca das posições da burguesia liberal sobre as necessidades de modificação ou substituição do estado fascista pela revolução democrática: [existe uma] “íntima relação entre os objectivos políticos que cada sector atribui à revolução antifascista e as suas posições em relação ao problema do Estado: quanto menores são as transformações de ordem social e política encaradas, tanto menores são as exigências de modificação ou substituição do Estado fascista”.

O papel do Estado não pode ser o mesmo numa democracia anti-monopolista ou num regime em que o grande capital controla de forma cada vez mais determinante o poder político. O Estado não é neutro, e a sua intervenção ou é democrática, como instrumento de defesa e concretização dos direitos, aspirações e liberdades populares e dos trabalhadores, esmagadoramente maioritários, ou assume a defesa e concretização dos interesses do grande capital, dos exploradores, dos interesses infinitamente minoritários de todos aqueles cuja prosperidade reside na perpetuação das desigualdades, das injustiças, da hipoteca dos interesses nacionais, e, nesse caso, configura-se tendencialmente como um Estado antidemocrático.

Um Estado que prescinda das suas funções sociais é um Estado que não apenas prescinde de garantir os direitos universais de acesso à educação, à saúde, ao acesso à justiça, à cultura, à informação, mas que também prescinde do dever de garantir a liberdade de ensinar e aprender, a liberdade de informação, a liberdade de criação cultural. É o mesmo Estado cujo aparelho repressivo está presente quando se trate de defender os interesses do grande patronato, mas que nada sabe fazer quando se trate de defender os interesses dos trabalhadores.

Este Estado tendencialmente vinculado à defesa exclusiva e à perpetuação dos interesses da classe dominante corresponde cada vez mais ao perfil histórico da grande burguesia portuguesa: exploradora, parasitária, autoritária, retrógrada, dependente e subserviente em relação ao grande capital transnacional, inimiga das liberdades.

A luta em defesa da democracia e das liberdades não chegou agora à ordem do dia. Desde que, depois do 25 de Abril, o grande capital e a reacção conseguiram uma correlação de forças favorável e se lançaram na ofensiva contra-revolucionária que essa questão se tornou uma questão central. Cada passo dado na destruição das conquistas de Abril foi também um golpe dado no regime democrático e nas liberdades e direitos dos trabalhadores e do povo. Se a questão agora se coloca como tema cada vez mais central é porque, no plano nacional e no plano internacional, se acumulam sinais que justificam uma preocupação acrescida. A crescente agressividade do imperialismo. O recrudescimento da actividade de forças e organizações de extrema-direita e fascistas. A capitulação política e ideológica da social-democracia, o seu posicionamento e alianças cada vez mais à direita, o seu papel complementar na ofensiva imperialista global.

Quando nós vemos o Ministro do Trabalho do Governo do PS fazer afirmações que um Ministro das Corporações não desdenharia, quando vemos construir-se passo a passo um processo de governamentalização do aparelho da justiça, de centralização dos serviços de informações e das forças de segurança, de pressão e controle de toda a informação, já de si tão controlada e desprovida de pluralismo, quando vemos uma política que justifica toda sua iniciativa pela defesa dos grandes interesses económicos, ao mesmo tempo que conduz uma brutal ofensiva contra os direitos dos trabalhadores, é necessário um grito de alerta, porque há uma fronteira que pode estar prestes a ser ultrapassada.

Pela nossa parte faremos, como sempre fizemos, bastante mais do que lançar o alerta.

A democracia e as liberdades defendem-se exercendo-se. É pelo seu exercício determinado que os trabalhadores e o povo, que todos os que amam a liberdade e fazem dela, e de todas as liberdades concretas de que é feita, a sua razão de existir e de agir, combaterão, resistirão e, cedo ou tarde, triunfarão de vez.