Luisa Tovar, A “Dialéctica da Natureza”, actual e imprescindível

A “Dialéctica da Natureza”, actual e imprescindível

Comunicação apresentada no II Encontro Civilização ou Barbárie, realizado em Serpa nos dias 5, 6 e 7 de Outubro de 2007.

Luisa Tovar

 
1 INTRODUÇÃO

Hoje, a relação dos Homens com a Natureza sofre um tremendo ataque pela expansão do sistema capitalista, sendo já evidentes sintomas de rotura daí resultantes, não só na deterioração do estado do “habitat” das espécies vivas e nos indícios de exaustão de recursos endógenos, mas também na inviabilidade de sobrevivência, cada vez mais acentuada, das populações cuja subsistência se baseia na utilização directa dos recursos naturais do espaço que ocupam, ou seja, cerca de ¾ da população do planeta.

Não será necessário sublinhar a relevância política que essas questões assumem hoje, nem seria possível aqui elencá-las, muito menos debater as suas causas e consequências.

A preocupação que pretendia partilhar convosco é sobre a enorme brecha de defesas face à fortíssima investida imperialista neste domínio e à sua afirmação crescente, principalmente desde os anos 80.

Colmatar esta brecha é essencial, não só para o sucesso das numerosíssimas e diversas lutas que hoje se travam por todo o mundo contra a ofensiva capitalista nestes domínios, mas na resistência e luta em todas as frentes de exploração do homem pelo homem, incluindo as relações laborais e a guerra.

Creio que a principal causa dessa brecha é ideológica, de permeabilidade às concepções idealistas e metafísicas da natureza e da relação dos homens com a natureza.

A “Dialéctica da Natureza” de Engels proporciona o meio de trabalho e a arma para essas lutas de hoje, a dialéctica materialista, ensina a usá-la para os processos naturais e conexões com eles.

Sempre foi importante, mas agora tornou-se de uma urgência premente.

Urgente na aplicação prática, porque a relação com a natureza assumiu uma importância nas lutas de classe que não tinha no século XIX nem no início do século XX. A teoria exposta na “Dialéctica da Natureza” é agora essencial à prática, porque hoje, também neste campo, o regime de propriedade e as relações de produção evoluíram para formas avançadas de capitalismo, desencadeando por todo o mundo revoltas dos espoliados.

Imprescindível no debate ideológico, na desmontagem da propaganda capitalista que assume hoje proporções e expansão incomparavelmente mais graves que as filosofias pós-hegelianas, cujo perigo, à época, justificou a interrupção de outros trabalhos de Marx e Engels para rebater as teorias como as de Duhring e de Feuerbach.

2 A “DIALÉCTICA DA NATUREZA”

A obra de Engels sobre a “Dialéctica da Natureza” é relativamente pouco conhecida hoje. A única tradução portuguesa [1] , feita a partir da francesa e incompleta, esgotou-se há muito, não está digitalizada e é dificílima de encontrar, mesmo nos alfarrabistas. É também difícil comprar o livro noutras línguas, mas têm vindo a ser disponibilizadas recentemente várias digitalizações na internet [2] .

Quando referida é frequentemente associada aos manuscritos de juventude de Marx e de Engels, sendo, pelo contrário, uma obra de maturidade da interpretação marxista do mundo, desenvolvida 40 anos depois da “ideologia alemã”, contemporânea do 2º e 3º Livros de “O Capital”.

Engels ocupou-se dessa obra durante treze anos, de 1873 a 1886. Interrompeu-a várias vezes por tarefas mais prementes, destacando-se o “Anti-Duhring”, concluído em 1878, no qual terá utilizado materiais recolhidos para a Dialéctica da Natureza. Retomou-a a seguir e em Novembro de 1882 escrevia a Marx que devia então terminá-la. Mas Marx morreu poucos meses depois, Engels teve de ocupar-se da publicação dos escritos inacabados de Marx, principalmente os Livros 2 e 3 de “O Capital”, assumindo ainda todo o trabalho de direcção do movimento operário internacional. Em 1884 publica “A origem da Família, da Propriedade e do Estado”, que refere como um “legado” de Marx. Até 1886 Engels acrescentou ainda alguns materiais à Dialéctica da Natureza e nesse ano publica três artigos sobre a crítica à filosofia de Feuerbach, que, revistos e complementados, deram origem a “Ludwig Feuerbach e o fim da Filosofia Alemã Clássica”, publicado em 1888. Não teve mais disponibilidade para a “Dialéctica da Natureza”. O Livro 3 de “O Capital” só fica pronto para publicação em 1894, encontrando-se então Engels já muito enfraquecido pela doença que o vitimou em Agosto do ano seguinte.

A “Dialéctica da Natureza” nunca foi concluída. Mas o conjunto de textos e notas que chegaram até hoje formam um todo coerente, uno no desenvolvimento teórico fundamental e harmonioso com o plano (monumental) da obra.

Engels apresenta aí a dialéctica, a ciência do movimento, que apreende as coisas na suas ligações recíprocas ao invés de as apreender isoladamente, como a forma de pensar mais importante para as ciências da natureza, porque é única a proporcionar o método de explicação para os processos evolutivos da natureza, para as ligações de conjunto, para as passagens de um domínio científico a outro.

A “Dialéctica da Natureza” mostra a dialéctica como a ciência das conexões e das leis mais universais de todo o movimento. Leis válidas para o movimento da natureza, assim como para o movimento da história humana e para o movimento do pensamento.

“É da história da natureza e da história da sociedade humana que são abstraídas as leis da dialéctica. Elas são apenas as leis mais gerais dessas duas fases do desenvolvimento histórico, assim como do próprio pensamento.” [3]

“O erro (de Hegel) consiste em pretender impor as leis da dialéctica “de cima” à natureza e à história, como “leis do pensamento”, ao invés de deduzi-las daí. (…) Se invertermos a coisa, tudo toma um aspecto muito simples e as leis dialécticas, que na filosofia idealista parecem extremamente misteriosas, ficam logo simples e claras como o dia.” [4]

Engels mostra que as leis dialécticas são verdadeiras leis de desenvolvimento da Natureza, portanto válidas também para a ciência teórica da Natureza. Mais ainda, mostra como são deduzidas da natureza e, ao passo que avançamos na leitura, a dialéctica torna-se “simples e clara como o dia”, começamos a ver nós mesmos o funcionamento dialéctico de tudo o que nos cerca, a estabelecer conexões entre os conhecimentos que aprendemos estanques, fragmentados e dispersos…

Pela universalidade da maneira de compreensão, também as conexões e relações recíprocas entre os processos da natureza e a história da sociedade humana se evidenciam. Ao longo dos textos, os processos naturais, a relação das sociedades com a natureza, as descobertas da ciência, a história da Terra e a história humana interligam-se e comunicam, num todo uno e coerente de conexões dinâmicas, interacções e transformações.

Assim, muito para além de proporcionar a teorização indispensável à compreensão integrada da enorme massa de conhecimentos acumulados em cada domínio de investigação científica, a “Dialéctica da Natureza” incorpora o conhecimento teórico da natureza e das relações entre o homem e a natureza, no riquíssimo património de compreensão e intervenção na história desenvolvido por Marx e Engels.

3 A ALTERAÇÃO DAS RELAÇÕES DE PRODUÇÃO E DE PROPRIEDADE

É repetidamente sublinhado na obra de Marx e muito especialmente em “O Capital”, que o estádio mais avançado da propriedade e contradições sociais resultantes se verificava, na sua época histórica, na produção industrial, nomeadamente na indústria transformadora.

São aí já apontados indícios de paralelo nalguns casos (raros na época) de produção agrícola industrializada, mas em forma embrionária e muito dispersa, num estádio ainda sem potencial de impulsionar transformações qualitativas. São também considerados muitos outros aspectos da relação com a natureza, como as indústrias extractivas em geral, a pesca, a caça, o uso da água e outras utilizações directas de recursos naturais, evidenciando relações de produção correspondentes a formas mais primitivas de propriedade e, portanto, sem o desenvolvimento das contradições potenciadoras de uma transformação revolucionária.

 
Essas condições estão agora alteradas, porque se registam formas avançadas de acumulação capitalista praticamente em todos os sectores, incluindo a interacção mais directa com a natureza.

Assistimos à delapidação crescente e desarvorada dos recursos que oferece à humanidade este planeta finito, da perturbação cega dos processos naturais pelas actuações individuais visando apenas do curto prazo. O lançamento na água, no solo e na atmosfera de toda a espécie de substâncias e resíduos associa-se à utilização selvagem do território para causar perturbações não prevenidas ao funcionamento dos ciclos bio-geo-químicos da natureza, provocando, mais tarde ou mais cedo, alterações qualitativas.

Há também alterações importantes ao papel da propriedade nas relações de produção:
Na agricultura, reportam MAZOYER e ROUDART[5] que no início da industrialização agrícola (fins do século XIX, início do século XX) a relação de produtividade agrícola por trabalhador entre as explorações não equipadas e as mecanizadas era de 1/10. No início do século XXI, com a intensificação mecânica e de sistemas de regadio, os adubos sintéticos e os biócidas, o apuramento de sementes e os OGM, as alterações paralelas à criação e alimentação do gado, essa relação de produtividade é de 1/500.

Ou seja, hoje, o trabalhador de uma exploração industrializada “de topo” produz 500 vezes mais que o agricultor de uma exploração não equipada. Estes últimos, a vastíssima maioria dos trabalhadores agrícolas, vêem assim baixar drasticamente o preço de venda da sua produção, inviabilizando, não só qualquer hipótese de acesso aos meios de trabalho industriais, como a própria aquisição dos instrumentos tradicionais, da mecanização mais rudimentar ou de trabalho animal.

Estas profundas modificações à forma e relações de produção na agricultura têm paralelos com a revolução industrial do século XIX. Mas a agropecuária está no cerne da relação humana com a natureza, a mais metabólica, básica e necessária, a alimentação quotidiana. Encadeiam-se estreitamente os efeitos sociais e na natureza, agravando-se e potenciando-se reciprocamente.

Na extracção, a colecta directa dos recursos da Natureza, verificam-se alterações da forma de propriedade ainda mais radicais, destacando-se os sistemas de “cotas” de exploração ou poluição comerciáveis, que são na maioria dos casos verdadeiras acções licitadas nas bolsas de valores[6] . Os recursos da natureza e a própria degradação se torna capital acumulável e reprodutivo – dos minérios aos recursos vivos selvagens, da água da natureza à poluição atmosférica. O capital apropria-se da natureza em “acções” ou “cotas”, que lhe permitem não só exauri-la e degradá-la como fazer a exploração dessa propriedade e excluir do seu acesso todos os não proprietários. O assalto do capital neste âmbito visa estender a toda a relação com a natureza a especulação já instalada pontualmente em relação a solos, ao carbono e à água.

Alterou-se também profundamente a dependência energética dos processos produtivos. De 1950 a 2000 o consumo global de combustíveis fósseis aumentou 4,6 vezes e o consumo (médio) mundial de energia corresponde hoje à capacidade de realizar trabalho somático (metabólico) de 300 mil milhões de homens (50 vezes a população da Terra) [7] . Mudou qualitativamente o papel do controlo/propriedade dos recursos energéticos, das centrais de produção eléctrica e das redes de distribuição, e a sua importância como meios de produção, ao mesmo tempo que se agudizam as ameaças de exaustão dos combustíveis fósseis, exacerbam as guerras por petróleo e se desencadeiam promoções desarvoradas de fontes alternativas, sem olhar às consequências na sociedade e na natureza.

A criação e comercialização de OGM privados, o patenteamento de códigos genéticos, de fármacos, das tecnologias e instrumentos de produção são outras das formas actuais de acumulação de capital, que, associadas aos sistemas de financiamento da investigação, canalizam a ciência e tecnologia para alterações aos processos produtivos com efeitos sociais e na natureza cada vez mais graves. Investigação científica e tecnológica torna-se capital privado acumulável pelo patronato, nos mesmos moldes que o produto do trabalho operário, deixando de contribuir para o desenvolvimento social para se tornar apenas capital reprodutivo e predador.

Em todas estas frentes se acendem lutas e confrontos, um pouco por todo o mundo, em quase todas se envolvem organizações de trabalhadores, sindicatos e partidos progressistas. Muitíssimas são lutas de classe, mas a maioria não se reconhece nem age organizadamente como tal.

4 PROPAGANDA

A oposição à investida capitalista, muito especialmente em matéria dos efeitos na natureza e de apropriação capitalista da natureza, tem sido teoricamente frágil, fragmentada e desintegrada da crítica de fundo ao capitalismo.

Neste vastíssimo campo, a oposição ao imperialismo teve um retrocesso significativo, no plano teórico, em relação ao século XIX. E um retrocesso também muito preocupante no plano teórico assim como no enquadramento teórico das acções práticas, em relação ao período muito mais recente de 1960 a 1980.

Entretanto, a propaganda ideológica capitalista, mesmo a mais grosseira, tem dominado a percepção e teorização neste campo. Para além da veiculação pelos grandes órgãos de comunicação habituais, estabeleceu-se nas escolas, em miríades de instituições oficiais e não oficiais, na literatura técnica e pseudo-científica, nos relatórios técnicos e estatísticas, na legislação e acordos internacionais, em quase toda a bibliografia acessível, particularmente a gratuita, em eventos como conferências, seminários e congressos.

A departamentação das especializações científicas, a fragmentação do conhecimento e a profusão de “slogans” camuflados na vastíssima maioria dos instrumentos de divulgação contribui para o alheamento dos próprios trabalhadores científicos sobre tudo o que é externo à sua especialidade, mesmo os campos mais relacionados, mesmo os efeitos e inter-relações directos e imediatos da sua actuação.

A coordenação científica, a instrução das decisões, os documentos e relatórios para a sua justificação pública, a direcção da enorme maioria das publicações e programas científicos são, de facto, acometidos às várias hierarquias do exército de propaganda capitalista, quadros cuidadosamente preparados na aplicação e propagação da ideologia “do mercado”. Para esse exército vem adquirindo peso crescente o recrutamento nas áreas das ciências e engenharias, em especial jovens “cérebros” e personagens que tenham adquirido notoriedade nos meios científicos. [8]

Crescentemente a propaganda ideológica se insidia com roupagem científica e de divulgação científica, impregnando manuais universitários, publicações científicas especializadas, documentários aparentemente neutros e visualmente atraentes como os de “Discovery” e “National Geographic”, artigos em revistas genéricas, livros de divulgação, historinhas infantis, materiais juvenis e escolares.

Essa propaganda tem obtido resultados na fragmentação e distorção do conhecimento, a representação das conexões exclusivamente como operações de troca quantitativa, a substituição da teoria geral da ciência e da relação humana com a natureza pelo receituário da “economia de mercado”.

A crítica e oposição, no entanto crescente e vivamente participada, desde as posições políticas e institucionais a movimentos de massas relevantes por todo o mundo, é frequentemente fragmentada, dirigida a questões e itens particularizados, carecendo de suporte teórico e integração filosófica, caindo frequentemente na argumentação e na própria linguagem da propaganda capitalista.

A bibliografia teórica de enquadramento dessas lutas é escassíssima e pouco integrada e as referências bibliográficas a documentação anterior são praticamente nulas.

Hoje, para além de textos demasiado genéricos para o enquadramento de acções políticas e lutas concretas, como por exemplo as lutas que grassam em todo o mundo em defesa do acesso à água, as referências a textos clássicos marxistas, através de citações reverentes ou em contextos acentuadamente eruditos, parecem cristalizá-las e remetê-las para o foro arqueológico, afastando-as das lutas concretas de hoje.

Quanto a obras mais recentes que entroncam nessas, nomeadamente as da década de 1970, parecem ter sido banidas sem deixar rasto, com uma eficiência moderna de censura fascista.

Mas a ofensiva ideológica capitalista, mais que “apagar” todo o passado histórico e enquadramento filosófico marxista neste domínio, tem vindo a distorcê-lo e a substituí-lo por toda a espécie de trapalhices, invenções e falsidades, mil vezes repetidas e publicadas com as mais diversas chancelas de idoneidade, até se tornarem lugares comuns.

Desde os anos 70 multiplicam-se as publicações de denegrimento e falsificação da história da URSS neste domínio, também propagando falsidades, mas sobretudo ocultando as importantíssimas realizações positivas nestes domínios e empolando aspectos negativos, nomeadamente com base na identificação de problemas referidos nos planos soviéticos com vista à sua correcção. É em 1972, o ano em que é fotografada a menina vietnamita correndo queimada pelo napalm e enquanto os EUA envenenavam com toneladas de “agente laranja” e outros violentos biócidas vastíssimas áreas do Vietname, que Marshal Goldman publica o seu citadíssimo livro sobre a poluição na URSS [9] . A desmontagem das acusações de Goldman, nomeadamente por Laptev[10] , nunca é referida, assim como não são inventariados os danos contemporâneos na natureza internos nos países capitalistas, muito menos dos danos que provocaram em países terceiros, de cujos recursos se alimentam. O mesmo discurso, incansavelmente repetido sobre a URSS e os países socialistas de Leste, é agora, passo por passo, proclamado sobre os países socialistas em abstracto e elegendo a China como alvo preferido na actualidade, sem pejo pela absoluta contradição com o panorama mostrado pelos únicos indicadores genéricos que actualmente são calculados, como a “pegada ecológica” [11] e a “pegada de água” [12] .

O relatório GEO3[13] apresentado pelo Programa das Nações Unidas para o Ambiente (UNEP) à Cimeira sobre desenvolvimento sustentável de 2002, em Joanesburgo, é um exemplo, entre muitos, do despudor na propaganda por repetição de slogans falsos, que “deixam de carecer demonstração”. Abrindo a primeira página do primeiro capítulo[14] com uma citação do famigerado artigo “A tragédia dos comuns” [15] decreta logo a seguir a “preocupação no ocidente” versus a “destruição comunista do ambiente” [16] .

Sugestivamente, é das políticas da natureza que se ocupa há vários anos Mikhail Gorbachev, fundador da “Cruz Verde Internacional” e seu primeiro presidente, cujo posicionamento proeminente na área do “ambiente”, ilustra a importância estratégica das questões da natureza na propaganda ideológica anticomunista.

Com estas três componentes simultâneas – o controlo das instituições científicas e órgãos de decisão, a imposição do seu absurdo discurso e a intensa ofensiva anticomunista – a propaganda e prática capitalista é hoje avassaladoramente omnipresente no tratamento de toda a relação com a natureza.

Mesmo os que rejeitam e combatem o capitalismo acabam por sofrer a sua influência. As fragilidades de preparação teórica transformam-se em permeabilidades. Até muitos comunistas acreditam candidamente nas falsificações da história proclamadas, sem cuidar de estudar comparações de dados entre países capitalistas e socialistas, nem sequer de confrontar “outras versões” da mesma história. A constante repetição da “novidade” dos temas, as confusões entre a pertinência de acompanhamento das descobertas científicas recentes e a durabilidade do método de interpretação e estruturação do conhecimento da realidade, as dificuldades de acesso, ou sequer de identificação, da formação teórica adequada e o bombardeamento com obras pressupostamente científicas e idóneas recheadas de propaganda, causam uma desorientação permanente que boicota e desvia a intervenção individual e a colectiva, mesmo a mais consciente.

5 A ACTUALIDADE DA “DIALÉCTICA DA NATUREZA”

A aplicação da dialéctica da natureza à realidade de hoje não é apenas actual, mas avançadíssima em relação ao discurso oficial sobre políticas de “ambiente” e de “recursos naturais”.

O discurso capitalista actual dispensou o suporte teórico, que substitui pelo receituário da “economia de mercado”, servido como “moderníssimos preceitos” nas escolas, nas comunicações das mais apregoadas conferências internacionais e na bibliografia de numerosos institutos científicos como o mais recente primor de pensamento actual. A técnica utilizada é de atordoamento por repetição e a total incongruência com o conhecimento actual da realidade só consegue ser disfarçada pelo poderosíssimo aparelho de mistificação e propaganda instalado.

É sobre-excedentária a argumentação com que Engels critica filosofias muito mais sofisticadas e desenvolvidas – Kant, Hegel, Duhring, Feuerbach, entre outros – e, se continua a ser relevante na contestação de obras de filosofia mais recentes, seria inadequado utilizá-la na refutação de um arrazoado inconsistente de frases feitas com que são justificadas hoje as políticas de apropriação da natureza.

São as leis gerais da dialéctica, que tão claramente a “Dialéctica da Natureza” nos mostra como reconhecer e evidenciar, os mais eficazes meios para implosão do argumentário político capitalista.
Vejam-se quatro exemplos:

– Mostrando a dinâmica da natureza e a sua história de transformação, arrasa-se toda a construção dos modelos de “impactos no ambiente” que se baseiam na referência à “situação pristina”, um estádio idealizado de natureza impoluta e estática sem a perversa existência humana. É toda baseada nesse mito a Directiva Quadro Europeia da Política da Água[17] , que conforma o normativo da UE sobre qualidade da água e em cumprimento da qual estão agora a ser desenvolvidos simultaneamente em todos os estados membros os “planos de gestão de bacias hidrográficas” [18] .

– Chamando a atenção para as relações ao invés da consideração dos elementos pulverizados e apreciados isoladamente e cada um de per si, invalidam-se todos os critérios estabelecidos para avaliação individualizada dos efeitos de acções humanas na natureza. Invalida-se, nomeadamente, a “justificação teórica” dos mercados de cotas de poluição (o mercado de emissões de carbono e os de cotas de poluição da água).

– Mostrando no concreto que as mudanças quantitativas originam mudanças qualitativas em transformações bruscas, por saltos, destroçam-se todos os paradigmas de suporte das legislações, normas e princípios das políticas de ambiente dominantes, fundamentadas na linearidade da acumulação dos efeitos, no todo como soma aritmética regular dos fragmentos, a única representação conciliável com “gestão pelo mercado”.

– Evidenciar o ciclo da água e a sua interrelação com o metabolismo humano, olhando-o como um fluxo a que se liga a própria circulação do sangue em cada indivíduo, proporciona uma consciência da realidade (como ela é) absolutamente incompatível com a privatização.

Mas a “Dialéctica da Natureza” é, sobretudo, construtiva. Proporciona a maneira de compreender a Natureza e a relação do homem com ela, compreender numa perspectiva activa, para transformar essa relação e edificar deliberadamente a história futura.

Apesar de incompleta e com as imperfeições resultantes da descodificação e compilação de manuscritos e fragmentos que não se destinavam à publicação nessa forma, é um exemplo extraordinário, creio que não superado, da aplicação do materialismo dialéctico e do materialismo histórico à compreensão da natureza, das relações do homem com ela, relações que incluem as ciências, em especial as ciências da natureza.

Salienta e desenvolve este enfoque específico integrado e coerente com a maneira de compreensão da realidade no seu todo, da sociedade e da natureza, interactivas, em constante transformação e indissociáveis das suas histórias.

Para os muitos cuja formação científica ou mesmo o contacto e observação da natureza predomina sobre o conhecimento das correntes filosóficas e da história económica, a “Dialéctica da Natureza” será culturalmente mais acessível que outros escritos de Marx ou Engels, por se referir predominantemente a fenómenos naturais. Para esses, será talvez a “Dialéctica da Natureza” a mais apelativa e conseguida introdução que se poderia fazer à compreensão marxista do mundo.

A brilhante e clara exposição de Engels, com trechos de deliciosa ironia, torna um prazer o estudo dos capítulos. Os apontamentos dispersos, quase como num caderno de exercícios, levam o leitor a descobrir as leis gerais da dialéctica “por toda a parte” na natureza. Observações em notas soltam surpreendem amiúde pelas “evidências” relevantes de que nunca nos tínhamos apercebido…

É uma obra genial, à qual o tempo não retirou uma centelha do brilho. Para quem se ocupe de algum dos muitos aspectos estilhaçados da “gestão da relação com a natureza”, para quem estude, procure compreender e intervir nesse campo tão amplo, descobrir a “Dialéctica da Natureza” é uma surpresa extraordinária, um deslumbramento.

Porque é, de facto, descobrir a dialéctica materialista como maneira de pensar, aperceber-se de que é uma forma de raciocínio poderosíssima que, de repente, aparece acessível e natural.

Refere-se Engels à dialéctica materialista como “o nosso melhor meio de trabalho e a nossa arma mais afiada” [19] .

É esse insuperável meio de trabalho, essa arma acutilante, que nos oferece a “Dialéctica da Natureza”, urgentemente necessária e imprescindível nas lutas de hoje.

6 A DIALÉCTICA DA NATUREZA NAS LUTAS DA DÉCADA DE 70

Refere-se ao início da década de 70 a origem, a construção das bases teóricas e organizativas da investida capitalista na propaganda sobre “ambiente”. Nessa década, e desde os últimos anos da década anterior, houve importantes confrontos, claramente ideológicos e de classe, coerentes e organizados. O assalto capitalista não só foi contido, como teve de fazer recuos. E vendo-se acossado, iniciou enormes investimentos na campanha ideológica que cresceu até ao que conhecemos hoje.

Importa assim revisitar esse período, não só porque dele datam as principais referências da propaganda a desmontar, mas mais ainda porque é necessário aprender e transportar para o confronto de hoje a força e a coerência ideológica das lutas dessa época.

Realça-se que o domínio do materialismo dialéctico, como “meio de trabalho” e como “arma” terá sido uma componente importante dessa força. Há várias obras dessa época claramente entroncadas na Dialéctica da Natureza, integradas nos mesmos conceitos e método, que o testemunham. Dessas, referem-se aqui apenas dois autores, Gus Hall e Ivan Laptev, que, nos EUA e na URSS, fazem registos complementares, importantes como exemplo de intervenção na luta e também na desmontagem do discurso actualmente dominante.

No livrinho “Ecologia: podemos sobreviver sob o capitalismo?” [20]Gus Hall, Secretário Geral do Partido Comunista dos EUA, foca especialmente esse país e a comparação entre as experiências capitalista e socialista. Numa perspectiva mais orientada para o enquadramento da acção e da tomada de posições políticas, tem um âmbito mais amplo de apreciação da situação, debate ideológico e propostas. É riquíssimo em informação “do terreno”, muita vinculada por sindicatos e militantes, sobre a realidade e lutas dessa época cujo registo nos chega totalmente falseado pela propaganda. A crise energética (um tema tão actual) é tratada noutro livro, mais extenso, do mesmo autor[21].
Em “O planeta da razão – um estudo sociológico da relação homem-natureza” [22] e em “Os homens e a natureza” [23], o jovem cientista Ivan Laptev, com uma abordagem mais filosófica e ecológica da panorâmica mundial, extensamente documentada, convence-nos que “podemos sobreviver no socialismo”, não porque seja isento de erros e de danos na natureza, mas pela sua poderosíssima capacidade de identificá-los, assumi-los e corrigi-los. Cita e discute, complementando ou refutando, as principais referências dos debates científicos, políticos e ideológicos sobre a relação com a natureza, com dados e argumentos que mantém toda a pertinência na desmontagem da propaganda presente, cujas referências de fundo são publicações desse período.

Mais ainda que a informação as sínteses proporcionadas, muito necessárias hoje para repor a verdade da história e compreendê-la, salientaria nestes dois autores tão diferentes o método comum de conhecimento e interpretação do mundo, o materialismo dialéctico. Dos confrontos da década de 70 haverá muito a transpor para o presente, que encontramos nestas obras e em muitas outras, também quase desaparecidas na devastadora falsificação de memória pela máquina de propaganda capitalista.

Mas o avanço dessa máquina foi possível também por um consentimento, uma quebra de resistência e de convicção dos que se lhe opunham, dos que não souberam, dos que não puderam e dos que não quiseram, defender com a firmeza necessária e ininterruptamente o formidável legado que está na base da sua força.

Felizmente esse legado existe. É tempo de o recuperar e colmatar as tremendas brechas que entretanto deixámos abrir.

7 CONCLUSÃO

Haveria muitíssimo mais para dizer mas por agora não vou alongar-me mais nesta exposição, esperando ter suscitado a vossa atenção para este tema, e ter-vos convencido do que afirmei no título, que a Dialéctica da Natureza é actual e imprescindível.

Gostaria de ter contribuído para reavivar o seu estudo e debate, para juntar a teoria à prática, nesta época em que transformar o mundo é tão difícil, mas, mais que necessário, se tornou uma questão de sobrevivência.

1.ENGELS, DIALÉCTICA DA NATUREZA , tradução de Joaquim José Moura Ramos e Eduardo Lúcio Nogueira, 2ª edição, Editorial Presença e Livraria Martins Fontes, 1978;
2.Alguns endereços na internet: “Les Classiques des Sciences Sociales” da Universidade de Quebec, disponibilizam uma boa tradução francesa, com base em “Dialectique de la Nature”; Paris, Editions Sociales, 1968; http://classiques.uqac.ca/classiques/Engels_friedrich/dialectique/dialectique.html ; “Arquivos Marxistas” apresenta ligações para arquivos digitalizados em diversas línguas em http://www.marxists.org, tradução inglesa em: http://www.marxists.org/archive/marx/works/1883/don/index.htm tradução espanhola em http://www.marxists.org/espanol/m-e/1880s/dianatura/index.htm
3.ENGELS, “A Dialéctica” – pag 52 da “Dialéctica da Natureza” na edição francesa digitalizada referida na nota anterior
4.idem, ibden
5.MAZOYER e ROUDART (2002) « Histoire des agricultures du monde – du neolithique à la crise contemporaine » – 2e edition, Editions du Seuil, Paris
6.RUI NAMORADO ROSA (2007) “Volta ao Mundo do Comércio do Carbono” http://www.odiario.info/articulo.php?p=307&more=1&c=1
7.RUI NAMORADO ROSA (2004) – “Imperialismo: seus limites e alternativas” – Comunicação apresentada ao 1º Encontro Internacional "Civilização ou Barbárie"; in “Civilização ou Barbárie – Os desafios do mundo contemporâneo” Comunicações, volume 2, Ed. Câmara Municipal de Serpa e resistir.info, 2005; http://resistir.info/rui/rui_n_rosa_20set04.html
8.SHARON BEDER (2002) – “Global Spin –The corporate assault on environmentalism”; Green Books; 2Rev Ed edition.
9.GOLDMAN, M.I. (1972) “The Spoils of Progress: Environmental Pollution in the Soviet Union”, MIT Press, Cambridge. (Esse acervo de propaganda e calúnias teve sucessivas reedições e está digitalizado na internet.)
10.LAPTEV, I. (1973) – “The planet of reason (A sociological Study of Man-Nature Relationship)” Tradução inglesa da edição russa revista, Progress Publishers, Moscovo, 1977
11.“ECOLOGICAL FOOTPRINT” – http://www.ecologicalfootprint.org/ ; Para o ano de 2002 a “pegada ecológica” atribuída aos EUA é de 109 hectares por pessoa, e à China a “pegada ecológica” de 12 hectares por pessoa. Baseado na “pegada ecológica e no “índice de desenvolvimento humano” das Nações Unidas, a WWF, organização insuspeita de simpatia comunista, conclui que em todo o mundo, Cuba é o único país que satisfaz os critérios de desenvolvimento sustentável. ( “No region, nor the world as a whole, met both criteria for sustainable development. Cuba alone did.” – WWF, “Living Planet Report 2006”, pag 19 http://assets.panda.org/downloads/living_planet_report.pdf )
12.“WATER FOOTPRINT” – http://www.waterfootprint.org/ ; Em 2004 apresenta uma “pegada de água” de 2483 m3/capita/ano para os EUA e para a China 702 m3/capita/ano; (Research data, Appendix xx – “water footprint of nations” http://www.waterfootprint.org/Reports/ResearchData/Appendix%20XX.xls )
13.UNEP (2002) – GEO3 “Global Environment Outlook” 3rd report – http://www.unep.org/GEO/geo3/ ; United Nations Environment Program (UNEP)
14.Iden, ibden ; “Chapter 1: Integrating Environment and Development: 1972-2002” http://www.unep.org/GEO/geo3/english/038.htm
15.GARRETT HARDIN (1968) – “The Tragedy of the Commons” , Science 162, 1243-1248, Washington http://www.sciencemag.org/sciext/sotp/pdfs/162-3859-1243.pdf
16.“ At the end of the 1960s, the voice of environmental concern was heard almost uniquely in the West. In the communist world, the relentless destruction of the environment in the name of industrialization continued unabated. In developing countries, environmental concerns were regarded as Western luxuries.” em UNEP (2002), referência acima.
17.“Directiva Quadro da Água” – Directiva 2000/60/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Outubro de 2000, que estabelece um quadro de acção comunitária no domínio da política da água – ver http://dqa.inag.pt/ e http://ec.europa.eu/environment/water/water-framework/index_en.html
18.FRANÇOIS SCHMIDT, “l’homme cet intrus” – La revue des resources, 26/6/2005 http://www.larevuedesressources.org/article.php3?id_article=453 ; (A Directiva Quadro da Água e a “situação pristina”)
19.ENGELS (1888) – “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia alemã clássica” ; pag 406 do Tomo III de “Marx e Engels – obras escolhidas em três tomos”, Editorial Avante!, Lisboa, 1985
20.GUS HALL (1972) “Ecology: can we survive under capitalism?”, International Publishers, New York
21.GUS HALL (1974) “The energy rip-off : Cause and Cure”, International Publishers, New York; tradução portuguesa “O problema da energia” , Editorial Estampa, 1975
22.I. LAPTEV (1973) – “The planet of reason (A sociological Study of Man-Nature Relationship)” Tradução inglesa da edição russa revista, Progress Publishers, Moscovo, 1977
23.I. LAPTEV (1978) – “Les Hommes et la nature” Tradução francesa do original russo, Editions du Progrés, Moscovo, 1979