Realizou-se no passado dia 10, no Centro de Trabalho Vitória do PCP, um debate com José Casanova, da Comissão Política do CC do PCP, sobre "O Informe político e o informe sobre o texto de Alvaro Cunhal, "O IV Congresso – 50 anos depois". O debate foi antecedido da inauguração de uma exposição sobre "5 obras de Alvaro Cunhal – contributos para a história e a luta dos comunistas e do povo português", no quadro de uma iniciativa nacional sob o mesmo lema. A exposição esteve até 17 de Setembro no CT Vitória, terminando o seu percurso em Lisboa no pavilhão do Casal Vistoso, no decorrer da 6ª Assembleia da ORL, a 18 de Novembro. (Para ler a intervenção de José Casanova na iniciativa carregue em ler mais) |
«O Informe Político e o Informe sobre Organização ao IV Congresso, e o Prefácio à sua reedição»
Ciclo de debates sobre 5 obras de Álvaro Cunhal
Intervenção de José Casanova
Na obra teórica de Álvaro Cunhal, traduzida em muitas centenas de textos: artigos, ensaios, discursos, relatórios, o Prefácio à edição do volume I dos materiais do IV Congresso – intitulado «O IV Congresso do PCP visto 50 anos depois» – ocupa lugar de relevo.
Trata-se de uma leitura do IV Congresso feita, 50 anos após a sua realização, por um dos seus principais protagonistas – uma espécie de visita guiada por alguém que lá esteve, e no decorrer da qual tomamos contacto com o contexto internacional, nacional e partidário em que o Congresso ocorreu; com os fundamentos das análises, orientações e linhas de acção por ele definidas – e também com a sua evolução no tempo e a sua actualidade, já que estamos perante uma leitura que, no que respeita às questões mais relevantes, nos vai remetendo para a futura realidade internacional, nacional e partidária, nomeadamente para os anos de 1965 (VI Congresso) e 1997 (data da elaboração deste texto).
Trata-se, como é característico nos textos de Álvaro Cunhal, do sublinhar de vitórias e de derrotas, sempre salientando a importância decisiva de avaliarmos umas e outras, e de umas e de outras extrairmos os necessários ensinamentos e lições.
Trata-se, como sempre acontece em Álvaro Cunhal, de um texto de extremo rigor, de grande profundidade de análise, de assinalável sensibilidade política e ideológica, de notável lucidez – um texto que constitui tema de indispensável reflexão individual e colectiva e de debate partidário.
Neste texto, Álvaro Cunhal começa por enunciar as três razões pelas quais, na sua opinião, o Congresso assumiu uma «importância e significado muito particulares»:
«Por se realizar num momento crucial da História do século XX. Por traduzir um dos períodos de mais força e influência do PCP na luta contra a ditadura. Pelas múltiplas experiências e lições que resultam das suas análises, orientações e decisões.»
E é seguindo esta ordem de razões que procede à análise de um dos mais relevantes acontecimentos ocorridos na vida do Partido.
O IV Congresso realizou-se em Julho de 1946. Foi o II Congresso Ilegal do PCP e, significativamente, ocorreu 20 anos após o último congresso legal, e cerca de dois anos e meio após o I Ilegal.
Significativamente, porquê? Porque, em primeiro lugar, a realização do último congresso legal (29 e 30 de Maio de 1926) coincidiu com o golpe de 28 de Maio que instaurou a ditadura, desencadeou uma brutal repressão sobre todas as forças democráticas e particularmente sobre os comunistas e obrigou o Partido a optar pela clandestinidade; em segundo lugar, porque, profundamente afectado por essa onda repressiva, o Partido só conseguiu realizar o congresso seguinte 17 anos depois, em 1943; e, em terceiro lugar, porque a realização do IV Congresso apenas dois anos e meio após o anterior, foi a confirmação dos importantes passos em frente entretanto dados no reforço do Partido e na sua capacidade de resistência à perseguição e repressão fascistas.
Como sabemos, à instauração da ditadura seguira-se, sob a direcção de Salazar, todo o processo de fascização do Estado culminado em 1936, e do qual sobressaía a criação de um poderoso aparelho repressivo que tinha como alvo preferencial e prioritário o PCP e os militantes comunistas.
O Partido, sem a preparação necessária para fazer frente à repressão, sofrera graves desaires. Quando da Conferência de Abril de 1929, o PCP, com apenas 40 militantes – sem experiência de trabalho partidário clandestino, sem experiência de luta em condições de repressão e com uma preparação ideológica incipiente – debatia-se com extremas dificuldades. E sendo certo que a Conferência, no decorrer da qual Bento Gonçalves foi designado secretário-geral do Partido, marcou uma importante viragem para a reorganização do Partido na clandestinidade e para a transformação do PCP num partido marxista-leninista, também é certo que a repressão prosseguia, intensificava-se, e desferia profundos golpes na organização partidária.
Apesar disso, em 1935, na intervenção proferida no VII Congresso da Internacional Comunista, em Moscovo, Bento Gonçalves assinala a existência de cerca de 500 militantes. Todavia, o próprio Bento Gonçalves e, com ele os restantes elementos do secretariado, são presos ainda nesse ano de 1935.
Bento Gonçalves viria a morrer no Tarrafal sete anos depois, quando o nazi-fascismo avançava no seu projecto de domínio do mundo e os regimes fascistas então existentes, entre eles o português, sofriam um forte impulso, se fortaleciam, intensificavam a repressão.
Apesar disso, no entanto, em 1940, com a libertação de um conjunto de destacados militantes – entre eles Álvaro Cunhal, Militão Ribeiro, Sérgio Vilarigues, Joaquim Pires Jorge, José Gregório, Pedro Soares, Manuel Guedes, Júlio Fogaça – iniciara-se a «reorganização de 40-41». Tratou-se de um importante processo de reforço do Partido e da sua intervenção, que criou melhores condições de defesa face à repressão fascista, que proporcionou grandes avanços na direcção, organização, actividade e influência partidárias e abriu caminhos novos em aspectos relacionados com o funcionamento democrático, o trabalho colectivo e a identidade do Partido – todas elas direcções de trabalho que o III Congresso (I Ilegal) realizado em 1943, viria a desenvolver e a aprofundar.
Entretanto, o mundo mudava. O nazi-fascismo fora derrotado. O seu projecto de conquista do mundo – para o qual contara, inicialmente, com a cumplicidade da Inglaterra e da França, todos visando a destruição da União Soviética – fora derrotado. Nessa derrota, a União Soviética, que sozinha, e à custa da perda de 20 milhões de vidas, fez frente durante três anos, aos exércitos hitlerianos, desempenhou papel determinante – e, como acentua Álvaro Cunhal, «havia razões bastantes para o IV Congresso sublinhar que a URSS se encontrava na “vanguarda da luta pela paz e pela liberdade dos povos”, que “a democracia caminhava no mundo”, que o PCP se propunha ser «o Partido da vitória antifascista”, a grande tarefa na situação existente.»
Comecemos, então, por aí, pelo novo contexto internacional existente, pelas profundas alterações produzidas por efeito da derrota do nazi-fascismo, de entre elas o ascenso fulgurante do movimento comunista, por todo o conjunto de factores que faziam do momento em que se realizou o IV Congresso, um «momento crucial do século XX» – já que é por aí que começa o Informe Político apresentado ao IV Congresso por Duarte (Álvaro Cunhal) e é por aí que começa, cinquenta anos depois, o texto de Álvaro Cunhal que aqui nos trouxe.
O referido Informe Político sublinha, de forma circunstanciada e exaustiva, as diferenças operadas na situação internacional e nacional no espaço que mediou entre o III e o IV congressos e este Prefácio segue-lhe as pisadas, sublinhando aspectos mais relevantes, aprofundando caracterizações, recorrendo a outros ângulos de análise, clarificando afirmações circunstanciais, concluindo o que, agora, era possível concluir e naquele tempo não era – e evidenciando a actualidade, nas questões de fundo, das conclusões então tiradas.
Lendo, hoje, os documentos do IV Congresso dir-se-ia estarmos a ler uma resposta à actual campanha de branqueamento de Salazar e do regime fascista – uma resposta demolidora que estilhaça, com exemplos concretos, as teses da inexistência em Portugal de uma ditadura fascista.
A demonstração de que, após a derrota do nazismo, a reacção mundial se reagrupava, que a política anticomunista e anti-soviética se acentuava, que a ofensiva capitalista seguia novas linhas de intervenção, é feita através da apresentação de múltiplos exemplos – confirmando a pertinência e a justeza do combate do IV Congresso à ilusão, sustentada por alguns, do apoio dos países capitalistas de democracia burguesa à luta do povo português pela liberdade, pela democracia, pelo progresso social. Como incisivamente acentua Álvaro Cunhal neste Prefácio, essa pertinência e essa justeza decorriam do «conhecimento de que estavam no Poder nesses países forças ao serviço do capitalismo e que o capitalismo tem os seus interesses como determinante da sua política.» Sempre assim foi e sempre assim será enquanto houver capitalismo, conhecida que é a sua essência exploradora e o seu objectivo do lucro a todo o custo. E Álvaro Cunhal faz questão de o sublinhar, dando um salto no tempo e olhando para a realidade nacional em 1997. Escreve ele: «Não é das forças do capital dos outros países nem dos governos ao seu serviço que o povo português pode esperar apoio a uma política nacional e democrática. Hoje como então, do estrangeiro, dos países mais ricos e poderosos, nomeadamente os da União Europeia, não há a esperar apoio ao povo português para uma política de desenvolvimento da democracia e independência nacional, porque ela contraria planos de domínio económico e político.»
Com isto remetendo para a ideia, válida tanto em 1946 como em 1997, que o que permitirá ao povo português assegurar o seu futuro livre, próspero e independente, é a luta em defesa dos seus interesses e direitos. Ou, dito por outras palavras no Informe Político ao IV Congresso: «As lutas de massas – esta tem sido a escola do nosso Partido e do nosso povo, nestes últimos anos, este tem sido o caminho da luta do povo português contra o fascismo salazarista. É por este caminho que nos devemos esforçar por que as massas continuem caminhando.»
Com isto, referenciando também uma tese central do IV Congresso: a da ligação indissolúvel entra a luta pela liberdade e a democracia e a luta pela independência nacional. Tese tão totalmente ajustada aos 48 anos de ditadura fascista, como ao período da revolução de Abril, como ao tempo da instauração e institucionalização do novo regime democrático, como aos trinta anos de desenvolvimento do processo contra-revolucionário.
Então, nesse «momento crucial», pleno de perspectivas positivas mas simultaneamente apresentando novos perigos e ameaças; nesse momento que Salazar tenta aproveitar para, através de uma manobra pseudo democrática, isolar o PCP, desencadeando uma brutal vaga repressiva sobre os comunistas e, ao mesmo tempo, abrindo possibilidades de acção política a todos os outros sectores da oposição sob a condição de se afastarem dos comunistas, o IV Congresso do PCP proclama e defende uma «Política de Unidade Nacional Antifascista» para a conquista da democracia. Salazar tinha em mira a divisão e o desaparecimento do MUNAF e do Conselho Nacional de Unidade Antifascista, e contava com o aparecimento de oportunistas que, a troco de facilidades concedidas pelo fascismo e apresentando-se como as forças e os dirigentes da oposição, constituiriam a «oposição» que interessava ao ditador: uma «oposição inofensiva», que tinha ainda a suprema vantagem de credibilizar a manobra pseudo-democrática do ditador.
«De facto, surgiram oportunistas a fazer tal préstimo» – comenta Álvaro Cunhal no Prefácio, e acrescenta: «como os do Partido Socialista Português, que então praticamente não existia, a promoverem um convénio público em Lisboa, que foi logo autorizado e ao qual foi dada projecção nacional e internacional.»
Salazar necessitava de mostrar aos seus novos amigos a «democratização» do regime – uma democratização de fachada, sabia-o ele, Salazar, e sabiam-no os seus novos amigos, as democracias burguesas europeias. «Então, como sempre, o oportunismo, quando se manifesta em sectores do campo democrático, serve, sempre, os inimigos da democracia» – acentua Álvaro Cunhal.
Todavia, e nisso reside um dos grandes méritos do IV Congresso, o PCP define e avança com uma política de unidade nacional, com uma ampla política de alianças que, congregando as forças que se opunham ao regime e conseguindo largo apoio e participação das massas populares, logra frustrar os objectivos do ditador: não foi o PCP que ficou isolado, mas sim a ditadura fascista.
Álvaro Cunhal sublinha o facto de, apesar das hesitações, manobras, decisões abusivas, imposições arbitrárias de alguns elementos e sectores, o Movimento de Unidade Democrática (MUD) ter dado «aos olhos da nação e do mundo», como é salientado no Informe Político, «o espectáculo da mais larga, compreensiva e patriótica unidade» e de um poderoso movimento nacional de massas. No Prefácio, e a propósito da política de alianças do Partido e da sua amplitude, é ainda salientada a particular atenção que IV congresso dedicou à «unidade com os católicos» e os resultados dessa orientação traduzidos na «participação de milhares de católicos», de organizações das Juventudes Católicas, e até de sacerdotes, nas lutas contra a ditadura – tudo isto apesar do obstáculo que, para eles, constituía a política reaccionária do Vaticano e a defesa da ditadura fascista pela Igreja Católica portuguesa.
Álvaro Cunhal refere, igualmente, o facto de – em 1946!, exclama ele – o IV Congresso do PCP ter considerado «os militares como força política» e ter colocado a questão da necessidade da «união patriótica das massas populares com as forças armadas» – «união patriótica das massas populares com as forças armadas»: é uma citação do Informe Político – uma citação que vinte e oito anos depois aparecia expressa como aliança do Povo com o MFA…
Ainda no quadro dos caminhos visando a unidade das forças democráticas contra o fascismo, o IV Congresso aponta para a criação de «um amplo movimento juvenil de massas e uma vasta organização juvenil de massas» com actividade legal e semi-legal – um movimento nacional da juventude que correspondesse, em amplitude, à amplitude da Unidade Nacional Antifascista. Os Informes sobre «Organização» (apresentado por Álvaro Cunhal) e sobre «Movimento Nacional da Juventude» (apresentado Luís Guedes da Silva), propunham duas conclusões essenciais: a de que a derrota do nazi-fascismo, a manobra pseudo democrática de Salazar e a criação e actividade do MUD tornavam possível a criação e organização imediata de um forte e amplo «movimento político democrático da juventude» – o MUD Juvenil, agindo «legalmente» à semelhança do MUD – e que se impunha aproveitar essas condições desde logo e com audácia. Todavia, e sendo certo que o Movimento de Unidade Nacional tivera no PCP o seu criador, organizador e dinamizador, a realidade mostrava que a Federação das Juventudes Comunistas Portuguesas – pelas condições de profunda clandestinidade em que actuava e funcionando como «um partido da juventude comunista» – não reunia condições para desempenhar igual papel. Certo era também, contudo, que só os jovens comunistas estariam em condições de levar por diante tal tarefa. Daí a proposta criativa realçada por Álvaro Cunhal: «A iniciativa e a acção têm de partir dos próprios jovens comunistas, mas dissolvendo a FJCP e entrando em massa» no MUD Juvenil.
Naturalmente, os comunistas, ao criarem o MUD Juvenil – que tinha como tarefa essencial a mobilização das amplas massas juvenis para lutas com objectivos concretos – não lhe atribuíram a ideologia marxista-leninista. Contudo, Álvaro Cunhal chama a atenção para o facto, por de mais significativo e de validade perene, de o Informe sobre Organização referir que «a educação dos jovens no espírito do marxismo-leninismo» se faz e se desenvolve «nas lutas de massas, na sua dinâmica, na tomada de consciência política que as lutas estimulam “ e não em organismos estreitos e sectários, separados da vida corrente da juventude, dos seus problemas decisivos, das suas dificuldades e angústias”. De valor actual são, igualmente, as orientações definidas pelo IV Congresso a propósito do movimento juvenil, no que respeita à concepção do que é a vanguarda revolucionária. E merece destaque o facto de uma das características essenciais do conceito de vanguarda do PCP e da sua identidade de classe ao longo dos anos – quer na luta contra o fascismo, quer na revolução de Abril, quer na luta travada desde o início do processo contra-revolucionário – ter a sua origem fundamental na concepção formulada pelo IV Congresso e, neste Prefácio, acentuada por Álvaro Cunhal: «Ser, e não apenas afirmar-se, vanguarda, não se compadece com o isolamento de uma força política e uma intervenção separada das massas. Exige, sim, a par de uma orientação política correcta, uma profunda ligação com as massas, a capacidade de ganhar as massas para a luta, de unir as massas na luta, de fundir a acção dos militantes de vanguarda com a acção das próprias massas.»
O IV Congresso explicita de forma clara o entendimento do PCP sobre conquista da liberdade e da democracia: «o derrubamento do fascismo, a instauração das liberdades democráticas fundamentais e a realização de eleições livres»; explicita o que entende por liberdades democráticas fundamentais: «manifestar livremente as sua opiniões pela palavra ou por escrito, poder reunir-se, poder organizar-se segundo as afinidades ideológicas»; explicita o seu entendimento de «eleições livres»: «eleições através das quais o povo possa escolher livremente os seus governantes e a forma de governo». Estes objectivos seriam desenvolvidos no VI Congresso, em 1965, e são de indispensável leitura para, também neste aspecto, desmentir os falsificadores, lembrando-lhes e demonstrando-lhes que tais objectivos foram reafirmados e defendidos desde a primeira hora – Álvaro Cunhal sublinha: «literalmente desde a primeira hora da revolução de Abril e que nenhuma outra força política mais do que o PCP se empenhou para que fossem alcançados.»
Mérito maior do IV Congresso foi o de – dando combate às ilusões de sectores antifascistas na manobra pseudo democrática da Salazar e dos que sonhavam com milagres vindos das democracias burguesas europeias – ter sublinhado, em 1946 registe-se, que a libertação do povo português teria que ser obra do próprio povo e de que «Salazar e a sua camarilha pela força e só pela força se têm mantido no poder», pelo que «para os derrubar será preciso o emprego da força» – e que a via para alcançar esse objectivo era, não o golpe militar putschista, não um golpe palaciano, mas o «levantamento nacional», «a insurreição nacional». Esclarecendo, no entanto, que a concretização dessa via não estava, na altura, na ordem do dia e só podia ter lugar numa situação de «crise geral do regime fascista», o IV Congresso apontava o caminho da luta de massas e do reforço da unidade antifascista como meios essenciais para criar as condições para o «levantamento nacional».
A linha do «levantamento nacional como caminho para o derrubamento do fascismo» deparou com opiniões e tendências contrárias no Partido, inclusive na sua Direcção. Foi o caso da política de transição debatida e criticada no Congresso. Tratava-se de um conjunto de ideias elaboradas por um grupo de destacados militantes presos no Tarrafal, e naturalmente dispondo de muito poucas informações sobre a situação concreta que se vivia em Portugal – mas que, após a sua libertação, em 1945, insistiram na apresentação dessa política como orientação do Partido, procurando rectificar e substituir a orientação aprovada pelo III Congresso, em 1943. Em que consistia a «política de transição»? Álvaro Cunhal explica: «A linha política e táctica do Partido deveriam ter como objectivo provocar “a desagregação do fascismo», da qual resultaria a “queda pacífica” de Salazar, uma “saída doce” para a situação e a formação de “um governo de transição”, “embora com elementos do fascismo e de correntes moderadas”. No quadro da “desagregação” preconizada, propunham que o Partido colocasse no conselho Nacional de Unidade Antifascista a “ideia de um golpe de Estado por cima”, que pudesse ter o apoio dos Estados Unidos e da Inglaterra, “muito reaccionários para apoiar movimentos populares”. Para obter tal resultado, o Partido deveria pôr totalmente de lado a consigna do “levantamento nacional”, da “insurreição nacional contra o fascismo e deveria deixar de falar e agir para a mobilização de massas. A sua orientação, propaganda e acção deveriam preocupar-se fundamentalmente em tranquilizar os não salazaristas, mesmos que fascistas.»
Ora, a análise produzida e a consequente rejeição destas teses pelo IV Congresso foram, como facilmente se depreende, de importância fundamental quer porque, assim tendo sido, se assegurou a continuação do Partido como grande partido nacional da resistência antifascista pela liberdade e pela democracia; quer porque se assegurou a salvaguarda da sua natureza de classe, da sua identidade política e ideológica, da sua unidade.
Álvaro Cunhal chama a atenção para o facto, relevante, de os mais destacados camaradas defensores da «política de transição» terem estado presentes no Congresso, nele terem defendido as suas opiniões e terem, depois, aceite, comprometendo-se a cumpri-las, as conclusões e orientações aprovadas colectivamente. Digno de registo é, igualmente, o facto de cinco desses camaradas terem sido eleitos para o Comité Central. Vale a pena ler as considerações produzidas por Álvaro Cunhal em torno das auto-críticas feitas pelos camaradas que defendiam a «política de transição», bem como no que respeita ao debate crítico e autocrítico sobre a actividade do Partido – nessas considerações encontramos a ideia de que o IV Congresso «deu exemplo de que rebater divergências consideradas erróneas, reconhecer erros e tirar conclusões e ensinamentos é uma prática elementar da aprendizagem política» e que, assim agindo, o IV Congresso «considerou a crítica e a autocrítica uma constante da actividade do Partido e um dos traços fundamentais da sua identidade. Ao apontar-se os erros e deficiências, sublinha-se que isso é um índice de seriedade política do Partido e insiste-se na necessidade de, por um lado, “valorizar e tirar todos os ensinamentos das nossas vitórias” e, por outro lado, “aferir a cada passo a justeza da nossa orientação, rectificar a cada passo as nossas deficiências e erros».
A via do «levantamento nacional» viria a ser novamente posta em causa e, até, abandonada em Congresso (no V realizado em 1957), sendo substituída pela «solução pacífica» que – pondo em causa igualmente não apenas o caminho para o derrubamento do fascismo mas também a identidade e o papel do próprio Partido – constituiu um aspecto essencial da linha e da actividade do Partido em 1956-1959 – o «desvio de direita» cujo início da rectificação viria a ocorrer na reunião do Comité Central de Março de 1961.
São extremamente pertinentes e actuais os alertas de Álvaro Cunhal sobre a necessidade, sempre, de se tirarem as lições e ensinamentos dos erros cometidos e da experiência adquirida e de, dessas lições e experiência, «extrair princípios, linhas de orientação e práticas de actuação» que impeçam a repetição dos erros – erros como os referidos ou métodos errados na crítica a erros, de que são exemplo as práticas utilizadas, em 1941, no combate ao chamado «grupelho provocatório». Escreve ele sobre essa matéria: «Num partido, o trabalho colectivo, a obrigatoriedade de prestação de contas, a liberdade e direito de crítica, a prática natural da autocrítica, são elementos necessários para diminuir os riscos de tão clamorosos erros e injustiças como os apontados. Ou de outros que, por serem menos clamorosos e de âmbito mais restrito, não deixam de ser igualmente condenáveis e inadmissíveis.»
O IV Congresso – dando expressão política à rica experiência das lutas desse período, procedendo a uma análise consequente da situação política nacional, reafirmando a política de unidade nacional antifascista, apontando o levantamento nacional contra a ditadura como caminho para o derrubamento do fascismo e para a defesa dos interesses nacionais – afirma-se como um momento maior da história do Partido e da sua capacidade de análise e de aprofundamento das situações. Por outro lado, e no que respeito ao Partido, às suas características e ao seu funcionamento, regista avanços notáveis que constituem parte grande do património teórico partidário. Como já foi sublinhado, o Informe sobre Organização, aponta para uma concepção de aplicação e desenvolvimento do conceito de centralismo democrático de grande criatividade – imprimindo «características próprias e originais aos princípios orgânicos do PCP e à concepção do Partido relativa a esse conceito e avançando para a construção inovadora daquilo que Álvaro Cunhal caracterizou como o «partido leninista definido com a experiência própria». O processo de preparação e o Congresso avançam igualmente na definição teórica da identidade do Partido e na concretização prática dessa identidade – uma identidade bem concreta e bem definida, feita na complementaridade indissociável de um conjunto de traços identitários que incorporam a natureza de classe, o projecto, a ideologia, as normas de funcionamento democrático interno, a estreita ligação às massas e à defesa dos seus interesses, o carácter simultaneamente patriótico e internacionalista.
O XV Congresso realizado em Dezembro de 1996, viria a confirmar as características fundamentais dessa identidade.
Uma das linhas fundamentais das tentativas, ao longo da história do movimento comunista, para a liquidação dos partidos comunistas é de tentar afastar os partidos comunistas da sua identidade comunista. O IV Congresso, debateu essa questão, não apenas reportando-se ao próprio Partido, mas também a fenómenos semelhantes ocorridos na altura em vários outros partidos comunistas. Abordando a questão, Álvaro Cunhal, sublinha que essas situações, apesar de terem sido decorrência do fim da Segunda Guerra Mundial, não só não são conjunturais, como comportam natureza e significado bem mais profundo. E refere duas experiências e lições verificadas na história do movimento comunista: a primeira que, «entre as concepções e actividade comunista e as concepções e actividade reformistas, pode haver acordos, alianças e acção comum, não fusão ideológica», a segunda que, «quando, em tal ou tal partido, se manifestam tendências reformistas que contrariam aspectos fundamentais da identidade partidária, a situação não é de consagração de tal divergência como característica do Partido, mas de efectivo confronto podendo conduzir à ruptura». Quer isto dizer que não é característica da identidade de um partido comunista «a coexistência dessas duas correntes num processo em que os “consensos” se convertessem em regra».
Como tem sido sublinhado e a experiência mostra, a identidade comunista dos partidos comunistas é o alvo primeiro de todas as ofensivas à escala mundial visando a liquidação desses partidos. Da mesma forma, as ofensivas internas e os seus objectivos de descaracterização do Partido, sempre vêem nessa identidade o obstáculo principal aos seus desígnios, a marca distintiva que é necessário generalizar para que deixe de o ser. Por vezes simulam, até, ter como alvo apenas um ou outro desses traços identitários, fingindo não saberem que abandonando este ou aquele todos os outros se desmoronariam inexoravelmente.
As ofensivas visando a descaracterização do PCP a partir de 1987 são exemplos claros do que acima é dito. E, como sempre acontece nestas situações ao longo da história, muitos dos que, então, escondiam o seu ataque à identidade do Partido por detrás de um fraseado de «queremos que o Partido seja mais comunista», «queremos que o Partido seja mais forte» – são hoje membros do PS ou do BE, membros do governo Sócrates, deputados ou autarcas do PS ou do BE, etc. etc.
Voltando ao IV Congresso, importa ainda referir que, por essa altura, o Partido vivia um momento alto da sua história, quer na capacidade de intervenção, quer na influência junto da classe operária, dos trabalhadores e dos antifascistas em geral. Informa Álvaro Cunhal que o número de militantes do Partido, na altura, era de mais de 5000, aos quais se juntavam 4000 simpatizantes. Uma força poderosa e em condições de levar por diante as orientações e decisões do Congresso. Como de facto aconteceu.
E apesar dos golpes da repressão e da prisão de numerosos quadros e militantes – que viriam a traduzir-se em grandes oscilações ao longo dos tempos no número de efectivos – o Partido manteve a sua influência de forma a ser, como foi, «a força determinante na criação de condições políticas que conduziram ao 25 de Abril, ao levantamento popular que se seguiu ao levantamento militar – e que confirmou a justeza da consigna do IV Congresso – e às grandes conquistas democráticas da Revolução».
Termino com uma longa mas notável citação de Álvaro Cunhal, da qual ressalta a sua inabalável confiança – confiança no Partido, nas massas trabalhadoras, no futuro; confiança sólida, porque fundamentada na análise da realidade.
Ouçamo-lo:
«A história ensina e a previsível complexidade da evolução da situação internacional e nacional adverte. O capitalismo tem força económica e formas poderosas de pressão e influência ideológica. A URSS desapareceu. No movimento comunista manifestam-se dúvidas e hesitações. Alguns partidos comunistas abandonam a sua identidade comunista. Uns transformam-se em partidos social-democratas. Outros desapareceram.
O capitalismo sobrestima e absolutiza entretanto o alcance histórico destes acontecimentos ao concluir que a construção de uma sociedade sem exploradores nem explorados (um “ideal generoso”, condescendem alguns) era um projecto irrealizável, era uma utopia. E cantam a “vitória histórica” do capitalismo que têm por definitiva.
A realidade porém é outra. O capitalismo atravessa uma crise profunda e confirma, não só ser incapaz de resolver os problemas da humanidade, como a sua política conduz a agravá-los.
A ideologia do capitalismo revela um misto de ilusão acerca dos seus méritos e de consciência dos seus pecados. Nunca ideólogos e propagandistas definiram de maneira tão falsa e idealizada as características, as realidades e as perspectivas de desenvolvimento da sociedade, como fazem os novos teóricos e propagandistas do capitalismo.
O capitalismo ter-se-ia superado a si próprio. Teria deixado de ser capitalismo, para ser agora “economia de mercado”. Já não haveria capitalistas mas “empresários”. Seria um “capitalismo civilizado”, sem classes antagónicas, um capitalismo sem proletários, sem luta de classes, nem natureza de classe de governos e de políticas, seria uma sociedade nova definitiva e final constituída por cidadãos conscientes, cordatos e mutuamente solidários, aceitando, assinando e cumprindo “pactos de regime”, “pactos sociais”, “pactos” e mais “pactos”pelos quais os cidadãos trabalhadores (agora dizemos nós) aceitariam renunciar a direitos fundamentais e vitais. Ou seja, ser explorados pelos cidadãos capitalistas e os cidadãos capitalistas continuarem a explorar os trabalhadores e a justificar-se perante a opinião pública através dos seus fantasiosos teorizadores.
A fantasia é tanta, a sociedade assim falsamente descrita é tão idealizada e irrealista no seu presente e na perspectiva do seu futuro, que se pode dizer que o capitalismo, desacreditado e abalado por uma crise profunda, inventa a sua própria utopia. Não como projecto de mudança, naturalmente, mas como mudança de linguagem pretendendo ocultar a realidade.
E a realidade é que o capitalismo mantém a sua natureza exploradora, opressora e agressiva. Contra ele, a luta dos trabalhadores e dos povos, continua e recrudesce. Os trabalhadores não podem dispensar um partido completamente independente dos interesses e da influência ideológica da burguesia e corajoso, dedicado e convicto.
O ideal comunista, esse não é uma utopia. Continua a ser válido e com futuro. Onde desapareçam partidos comunistas, os trabalhadores e os povos criá-los-ão de novo, com esse ou outro nome, com inevitáveis diferenças, mas com essas características essenciais.
Trata-se de uma necessidade e inevitabilidade da evolução social. Não é ao capitalismo mas ao comunismo que o futuro pertence.»