MUD Juvenil e a repressão fascista

MUD Juvenil e a repressão fascista

Pedro Ramos de Almeida

O papel do MUD Juvenil na mobilização e organização da juventude para a resistência ao fascismo e no quadro do longo historial da unidade antifascista, foi de tal modo marcante que a sua importância e experiências se mantêm como factos históricos de grande actualidade, apesar de se terem passado 60 anos desde a sua criação, em Abril de 1946, e a realidade de hoje ser muito diversa da de então.

A criação do MUD Juvenil não é inseparável do desenvolvimento da luta antifascista à época, das perspectivas que se abriam de luta democrática na sequência da derrota do nazi-fascismo na II Guerra Mundial e da acção do PCP para desenvolver a luta de resistência e alargar a unidade antifascista.

O MUD Juvenil terá sido, até hoje, o mais destacado movimento de unidade democrática e patriótica da juventude na história portuguesa.

De início, o MUD Juvenil é sobretudo um movimento que, lutando pela confraternização da juventude, pela liberdade política, pelo direito de associação e liberdade de expressão, faz da unidade juvenil, dentro e fora do MUD Juvenil – que em 1946/1948 chega a agrupar cerca de 20.000 jovens aderentes –, a grande base de iniciativa legal juvenil.

Desde a sua fundação até 1958 (1) , o MUD Juvenil travou uma persistente e audaciosa luta com vistas a forçar um espaço de intervenção legal e mesmo semi-legal, que, apesar de ferozmente reprimida, se inscreve em alguns dos grandes feitos da resistência à ditadura.

Em 1947, segundo informações do agente da PIDE Corte Real, de 09.12.1947 (2), já todos os 13 membros do CC do MUD Juvenil teriam, pelo menos, um processo: Maria Fernanda da Silva,  estudante de direito – Proc.º 654/SR/46; Francisco Salgado Zenha, Proc.º 172/SR/45; João Sá da Costa, Proc.º 173/47; José Borrego, Proc.º 1659/SR; Júlio Pomar, pintor, Proc.º 720/SR/46; Mário Sacramento, Proc.º 1661/SR, Proc.º 423/SR/147; Mário Soares, estudante de Letras, Proc.º 126/SR/46; Nuno Fidelino Figueiredo, Proc.º 50/SR/46; Octávio Rodrigues (Pato), empregado; Oscar dos Reis, operário, Proc.º 1253/SR/47; Manuel Moutinho, operário, Proc.º 827/SR/47 ou 866/SR/47 (?); António Abreu, professor do ensino técnico, Proc.º 378/SR/47; Rui Grácio, professor do ensino particular.

Mas o movimento caminha!

Em 1948, o MUD Juvenil lança, à escala nacional, a Semana da Juventude, já em colaboração com a Federação Nacional da Juventude Democrática; em 1949, fazendo parte integrante da campanha «eleitoral» presidencial do General Norton de Matos, organiza, designadamente, 20 sessões próprias; em 1950, já o Movimento Nacional de Estudantes é uma realidade em destaque, com relevo para as Reuniões das Três Academias (Lisboa, Coimbra e Porto); em 1952, o MUD Juvenil elabora um texto nacional contra o Pacto do Atlântico que será assinado por dezenas de individualidades, juvenis e não juvenis, presentes e futuros dirigentes dos movimentos de libertação de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, artistas, escritores, professores, médicos, advogados, etc., etc.; em 1951, 1952, 1953 e 1954, o MUD Juvenil colhe milhares de assinaturas para o Apelo de Estocolmo contra as armas atómicas e por um Pacto de Paz entre as cinco grandes potências; em 1951 e 1954, apoia a luta dos goeses pela Paz e autonomia da Índia; em 1953 e anos seguintes, com os jovens das ex-colónias portuguesas, lança apelos em favor da autodeterminação e independência dos povos coloniais, designadamente, a partir do IV Festival Mundial da Juventude, em Bucareste.
 
A Eng.ª Virgínia Moura denuncia, em 1956, as violências e torturas aplicadas, sob cobertura judicial, a dezenas de jovens do MUD Juvenil

Na instrução contraditória, requerida pela Defesa, no processo contra o MUD Juvenil (PIDE e Tribunal «Plenário» do Porto, 1955/1957), a Eng.ª Virgínia Moura, dirigente do Movimento Nacional Democático, MND, depôs (9.4.1956) no 1º Juízo Criminal (3) como testemunha de Maria Cecília Alves, membro da Comissão Central do MUD Juvenil – em causa estava a ofensiva de terror policial, da PIDE e do governo de Salazar, contra o MUD Juvenil e a unidade democrática juvenil:

«A depoente contactando com a Maria Cecília em Caxias (reduto Norte do Forte de), esta logo referiu as violências que sobre ela foram exercidas, pela PIDE, quando detida aqui no Porto, cerca de 15 dias, depois do que foi remetida para Caxias. Referiu-lhe então que tinha sido, logo na altura em que foi presa, tratada com menos delicadeza pela PIDE, que a agarrou com certa violência, chegando mesmo a agredi-la, e uma vez nas prisões da PIDE, foi metida num cubículo de acanhadas dimensões, com uma janela que dava sobre um corredor, e se a abrisse ficava tal cubículo devassado pelos olhares dos guardas e polícias que andavam por tal corredor.

Em Caxias, a depoente também constatara que para com a arguida se usava de um tratamento reprovável e impróprio para com uma senhora. Recusavam-lhe visitas diárias, recreio, tratamento médico e dietas, e pretendendo escrever-se com seu marido, dirigiu para isso uma carta à Polícia Internacional, sendo-lhe negada tal autorização, com a alegação de que pertencia ao Partido Comunista, que estava, portanto, a soldo do estrangeiro, o que não era digno de ter para com ela qualquer consideração.

A depoente veio, depois, de Caxias para o Porto, Cadeia da PIDE, e numa altura em que estavam no auge as investigações referentes ao presente processo.

Apercebeu-se então, e pelo que se refere aos arguidos neste mesmo processo, grande parte deles ali detidos, que entre eles reinava um grande ambiente de terror e como consequência de pressões, tanto de ordem física como moral, que sobre os detidos eram exercidas e muitos deles teriam feito neste ambiente de terror declarações comprometedoras mas que, na verdade, não podiam ser assim consideradas, porque não eram prestadas livremente e fora do ambiente de coacção e terror.

Usou-se e abusou-se da violência, batendo em alguns, obrigando outros a fazer estátua durante dias consecutivos, longos períodos de incomunicabilidade, enclausuramento em segredos, internamentos no Conde Ferreira (hospital psiquiátrico de então, no Porto), transferência de jovens para Caxias, e muito concretamente, entre outros, foram vítimas de violência os arguidos PMR de Almeida (22 anos, estudante de Direito de Lisboa), sete dias e sete noites sem dormir e dois (leia-se quatro) meses de segredo; Dinis Fernandes Miranda (25 anos, trabalhador rural, Montoito), selvaticamente espancado três dias e três noites e com grande período de incomunicabilidade e segredo; José Augusto Baptista Seabra (18 anos, estudante de Direito, Coimbra), agredido violentamente à bofetada, a pontapé, a cavalo marinho e 11 dias e 11 noites sem dormir; Henrique Verdial (18 anos, estudante liceal, Porto), violentamente agredido com boxe metálico, chegando a desmaiar; Albino da Silva (21 anos, electricista, Matosinhos), espancado a pontapé e a murro e mantido em pé e sem dormir cinco dias e cinco noites; David Cunha (27 anos, saqueiro, do Movimento da Paz, no Porto), agredido a murros, pontapés e cavalo marinho e mantido em pé e sem dormir quatro dias e quatro noites; Artur Almeida (A. Oliveira A., de 30 anos, ajudante de motorista, V. N. de Gaia), espancado a murro e a pontapé e mantido em estátua vários dias; Vítor Alegria Lobo, agredido à bofetada pelo próprio sub-director da PIDE, do Porto, Tenente Coelho Dias, e três noites e três dias sem dormir, além de longos períodos no segredo e incomunicabilidade; Humberto Morais Lima (27 anos, engenheiro, Porto), sete dias e sete noites sem dormir; Luís Fonseca de Carvalho (21 anos, estudante de Medicina, hoje médico, Porto), cinco dias e cinco noites de pé e sem dormir; Álvaro Teixeira Lopes (22 anos, estudante de Medicina, depois médico, Porto), tortura da estátua e do sono de alguns dias; António Emílio Teixeira Lopes (23 anos, estudante de Arquitectura e depois arquitecto), apesar de sofrer de uma doença pulmonar foi obrigado a permanecer de pé e sem dormir 60 horas; Raúl J. H. Ferreira (24 anos, estudante de Arquitectura e depois arquitecto), foi agredido a murro e mantido de pé e sem dormir cinco dias e cinco noites; Rui de Oliveira (22 anos, estudante de Engenharia, em Lisboa e Porto); Luís Fidalgo (19 anos, estudante liceal, Porto), espancado a murro, pontapé e bofetada; Fernando Miguel Bernardes (21 anos, estudante de Coimbra, empregado comercial), nove dias e nove noites sem dormir, tendo no seu curso feito a greve da fome; Júlio Rebelo (22 anos, empregado comercial, Movimento da Paz, Porto), foi agredido à bofetada; Fernando Fernandes (26 anos, empregado comercial), foi mantido sem dormir durante três dias e três noites; Francisco Delgado (18 anos, estudante liceal, Porto), de pé, sem dormir, dois dias e duas noites; João Carlos Teixeira Lopes (18 anos, estudante liceal, Porto), obrigado a fazer estátua durante 24 horas; Alfredo Calheiros (21 anos, estudante de Medicina), foram-lhe feitas muitas promessas e ameaças e foi transferido para o Forte de Caxias; Maria Manuela Macário (22 anos, estudante de Engenharia, Porto), esteve encarcerada durante longo tempo num quarto com apenas 4m2 de superfície, no meio de duas retretes, sem luz e com mau cheiro, que a depoente conhece muito bem por lá ter estado durante oito meses; Manuel Canijo (25 anos, estudante do 5.º ano de Medicina, Porto), esteve durante longo tempo isolado nesse quarto; Maria Luísa Marvão (22 anos, doméstica), quatro meses isolada, longos interrogatórios nocturnos, castigada de incomunicabilidade por reclamar contra os maus tratos infligidos a seu irmão Hermínio Marvão (25 anos, estudante da Faculdade de Economia, do Porto), obrigado a estar de pé e sem dormir durante 56 horas, seguidas de mais 60 horas sentado no chão e sem dormir, sendo, aliás, um doente pulmonar, estando ainda internado numa ala subterrânea durante quatro meses; Hernâni Silva (28 anos, empregado de escritório, Porto), esbofeteado pelo chefe de brigada Pinto Soares, e que em Caxias e no Porto foi conhecendo, durante semanas e semanas, sucessivos segredos; Silas Coutinho Cerqueira (25 anos, do Movimento da Paz), esteve sempre em incomunicabilidade em consequência dos castigos que lhe foram aplicados; Antónia Lapa (27 anos, da Faculdade de Medicina de Lisboa, que em 1951 já tinha sido presa como membro da Direcção Universitária de Lisboa, do MUD Juvenil), durante o tempo que esteve presa no Porto, teve a janela pregada, e porque reclamasse contra isso foi castigada, e enquanto esteve em Caxias nunca a deixaram escrever a seu marido (S. Cerqueira).

De uma maneira geral pode afirmar-se que, quanto a visitas, nenhum preso as teve durante as horas regulamentares, nem recreios, não lhes eram permitidos contactos com advogados e não eram respeitados os seus direitos, a ponto de para se fazerem ouvir terem de recorrer alguns dos arguidos à greve de fome, o que motivou a polícia, sem qualquer exame psiquiátrico, a enviar cinco arguidos para o Hospital Conde Ferreira, do Porto (hospital psiquiátrico, hoje extinto); a polícia manteve as famílias na ignorância do que se passava, chegando a deitar fora comidas que a família enviava, para se não aperceberem da situação dos seus familiares.

As violências exercidas sobre estes jovens já ultrapassaram até as fronteiras portuguesas, e até jornais como o Combat, francês, e o brasileiro Jornal dos Debates têm feito alusão a tais violências. Aquele jornal referirá que importantes individualidades como Duhamel, Cocteau e Mauriac, da Academia Francesa, dirigiram uma representação ao Sr. Presidente da República sobre o caso».

Julgamento, condenações e absolvições
     
E a lentidão  do processo contra o MUD Juvenil, comissões, Movimento da Paz e Partido Comunista Português lá irá confirmando, alargando e prolongando os seus actos e a recusa de libertação dos dirigentes juvenis presos.

A promoção do processo no 1º Juízo Criminal (já então com 2 457 fls. em 16 volumes!) é executada em 15.07.1955, cinco meses depois do início das detenções, a partir de Janeiro de 1955.

À maioria dos presos é fixada caução e admitida a sua libertação condicional até ao julgamento.

Entretanto, a excepção é constituída por seis réus, acusados de serem membros da Comissão Central do MUD Juvenil – Maria Cecília Alves, Agostinho Neto, Angelo Veloso, Hernâni Silva, Hermínio Marvão e Pedro Ramos de Almeida (Denis Miranda, que também era membro da Comissão Central, e até do seu Executivo, mas sem conhecimento da PIDE, também foi caucionado). António Borges Coelho, que será preso em outras circunstâncias, já bastante afastadas no tempo e não já como aderente do MUD Juvenil, será exactamente por isso que a PIDE o procurará integrar no processo contra o MUD Juvenil, acrescentando-o aos restantes 51 réus. Mas como António Borges Coelho sempre fora um quadro responsável do MUD Juvenil, a confusão não resultará.

Os réus presos sabiam que o requerimento da instrução contraditória (i.c.)  poderia fazer adiar ainda mais o seu julgamento e prolongar a sua detenção, eventualmente por mais um ano. Entretanto, era também indiscutível que ela faria crescer a denúncia da repressão salazarista e as forças dos que a podiam travar.

Em 04.081955, António Agostinho Neto e os restantes réus presos voltam a reclamar contra a paragem do processo em férias. A resposta é notável: há arguidos que ainda não foram presos, há conveniência em apreciar em conjunto as instruções contraditórias (i.c.) e até daqueles que as não apresentaram ainda.

Em 10.12.1956, têm lugar, finalmente, os depoimentos de Pedro Ramos de Almeida, Angelo Matos Mendes Veloso e António Agostinho Neto em i.c..

Começam também a ser ouvidas como testemunhas de defesa da i.c., e depois no julgamento propriamente dito, alguns dos primeiros dirigentes e até da primeira Comissão Central, como Alberto Vilaça, Francisco Salgado Zenha, Joaquim Angelo Caldeira Rodrigues, Júlio Pomar, Mário Sacramento, Mário Soares, Oscar dos Reis e muitos outros; são ouvidos companheiros dos movimentos de libertação das colónias portuguesas, como Lúcio Lara, Antero Abreu, António Neto, David Bernardino, etc. etc. e escritores portugueses como Afonso Duarte, Alves Redol, Alexandre O´Neill, Alexandre Cabral, Domingos e Mário Monteiro Pereira, Ferreira de Castro, João de  Barros, João Gaspar Simões, José Cardoso Pires, José Gomes Ferreira, José Rodrigues Miguéis, Luís Veiga Leitão, Manuel Mendes, Manuel Rodrigues Lapa, Papiniano Carlos, Tomaz da Fonseca, Victor Sá, etc., etc..

Em 15 de Fevereiro e 2 de Março de 1957, a PIDE do Porto – na sua prisão da Rua do Heroísmo, onde se encontravam ainda presos os dirigentes do MUD Juvenil que estavam a ser julgados no Plenário do Porto – tortura até à morte os operários sexagenários Joaquim Lemos de Oliveira, de Fafe, e Manuel Fiuza, de Viana do Castelo. A PIDE tenta encobrir o seu assassínio com dois suicídios fabricados.

Os réus do MUD Juvenil e os das Comissões de Paz impõem um minuto de silêncio em pleno Tribunal Plenário. Setenta e dois advogados, 38 do Porto e 34 de Lisboa, entre os quais dezenas de participantes na defesa dos Processos contra o MUD Juvenil, reclamam, em meados de Março, do Ministro da Presidência, Marcelo Caetano, a abertura de um «amplo e rigoroso inquérito» a estas duas mortes e às dezenas de reclamações apresentadas pelos réus do Processo do Porto às torturas de que foram vítimas.

O juiz da Comarca de Vinhais, António Alexandre Santos Tomé, aceita proceder a esse inquérito, que inicia os seus primeiros passos quando o julgamento já está terminado.

Com efeito, o acórdão final do julgamento, lido a 12.06.1957 no Tribunal Plenário do Porto, absolve 30 réus, que manda em paz, e condena 22 a penas que vão até aos dois anos e medidas de segurança não inferiores a seis meses, o que significou para mais de uma dezena a duplicação do tempo da prisão.

Os crimes já tinham sido praticados.

Os réus já estavam condenados.

Com o fim do MUD Juvenil a luta da juventude não terminou, antes adquiriu novas formas e novos traços, nomeadamente no que respeita à luta contra as guerras coloniais.

A juventude portuguesa com a sua luta generosa e abnegada, deu um contributo inestimável para a conquista da liberdade pelo povo português, para a revolução libertadora do 25 de Abril. Na longa lista das vítimas do fascismo que passaram pelas cadeias e pelo Campo de Concentração, e que foram torturados e assassinados, não são poucos os jovens que constam dessa trágica lista.

Não esquecê-los, lutar para defender as liberdades sempre ameaçadas, é uma obrigação e um tributo das gerações presentes para com o seu legado de luta e heroicidade.

(1) O MUD Juvenil, ilegalmente extinto em 20 de Junho de 1957 por acórdão do Tribunal Criminal Plenário do Porto, continuou a desenvolver actividade, nomeadamente no movimento estudantil de Lisboa (luta contra o decreto-lei 40900, etc.).
(2) O original encontra-se arquivado no Proc.º 58, vide Torre do Tombo, “Organizações Avançadas” (diversos).  
(3) Processo contra o MUD Juvenil, no Porto, Fls. 3.477 e segs. (cópia de depoimento feito à mão pelo Dr. Fernando de Abranches Ferrão).