A situação das liberdades nos EUA: agressão externa, golpe constitucional interno
André Levy
(in Caderno Vermelho 14, Setembro 2006)
A política imperial da Administração Bush, incluindo a invasão e ocupação do Afeganistão e Iraque, as suas ingerências na Venezuela e as ameaças à Coreia do Norte, Irão e Síria (para só mencionar alguns aspectos), tem uma face doméstica com fortes traços totalitários. Do mesmo modo que os ataques do Onze de Setembro de 2001 (9/11) facilitaram a aceitação de uma estratégia militar preemptiva, com base em mentiras e distorções, estes também abriram caminho para uma crescente concentração de poder sob a influência da Casa Branca, a limitação da fiscalização democrática, um combate à dissensão popular, e a limitação de direitos e liberdades fundamentais dos seus cidadãos.
É certo que já antes do 9/11 havia plano de ocupação do Iraque e planos de agressão a outros membros do “eixo do mal”. Também já vem de trás o assalto ao poder por parte do Partido Republicano, subvertendo os mecanismos constitucionais. Recorde-se a tentativa de impeachment de Bill Clinton, ou a interjeição do Tribunal Supremo, maioritariamente Republicano, na eleição presidencial de 2001. O 9/11 poderá não ter marcado o surgimento destas tendências, mas terá certamente apressado e intensificado o processo em curso. Quando os ataques tiveram lugar, o Partido Republicano dominava o teatro político, ocupando a Casa Branca, tendo uma maioria nas duas casas do Congresso, uma larga influência sobre o ramo judicial (com perspectivas de alargamento e reforço), e um claro domínio sobre a comunicação social. O momento era tectónico, não só na política internacional (i) como domesticamente.
Sob o espectro de novas ameaças, capitalizando o clima de medo, Bush logrou mobilizar a maioria dos estado-unidenses em torno do lema “guerra ao terror”. O mundo e as opiniões ficaram reduzidos a um contraste maniqueísta: “ou se está connosco ou se está com os terroristas”. O carácter indefinido desta “guerra”, tanto no tempo, como no alcance geográfico e no objecto a combater, deu cobertura para um conjunto de medidas que alteraram o balanço de poderes, entre elas:
a) a Autorização do Uso de Força Militar (AUMF), aprovado meros 3 dias depois de 9/11, que dá poderes ao Presidente para “usar toda a força necessária e apropriada” contra “nações, organizações, ou pessoas” que ele determine “planearam, autorizaram, realizaram ou assistiram” nos ataques de 9/11.
b) uma Ordem Militar Presidencial (13 de Novembro de 2001) que autoriza o uso de tribunais militares, exclusivamente sob a jurisdição do Executivo, em investigações relacionadas com terrorismo, tradicionalmente a cargo do ramo Judicial.
c) o Acto USA PATRIOT (ii) aprovado em finais de Outubro de 2001 por um período experimental de 5 anos. Este calhamaço legislativo alargou os poderes governativos de vigilância sobre os seus cidadãos, limitando simultaneamente a regulação judicial, a responsabilidade de apresentar ‘causa provável’ publicamente e a possibilidade de apelo em tribunal.
Os Democratas no Congresso temiam confrontar-se com um Presidente popular numa atmosfera de patriotismo empolado, e alinharam sistematicamente com as suas medidas. O debate público era uniforme, sempre condicionado pela advertência do então Procurador-Geral, John Ashcroft: “aos que querem assustar os amantes da paz com fantasmas de liberdades perdidas, a minha mensagem é esta: as vossas tácticas só ajudam os terroristas – pois corroem a unidade nacional e diminuem a nossa resolução. Dá munição aos inimigos dos EUA.” (iii)
Sob o novo clima cometeram-se atentados aos direitos constitucionais de milhares de cidadãos. Há quem tenha sido preso por usar uma t-shirt apelando à paz. Ou multado por ter no seu automóvel um autocolante crítico ao Presidente. Cartoonistas despedidos por serem críticos ao governo. Professores afastados por ensinarem que o diálogo é uma alternativa à guerra. Vigilância dos livros comprados ou requisitados na biblioteca. Reuniões de activistas pela paz infiltradas por agentes policiais. Filmagens durante protestos e recolha de informação sobre manifestantes pelo FBI. E em concordância com o clima de medo e suspeita, há até uma linha telefónica para os bufos: um cidadão pode relatar anonimamente o comportamento suspeito de um seu vizinho directamente aos militares fazendo um telefonema gratuito para 1-800-CALL-SPY.
Ao abrigo do USA PATRIOT, o governo pode solicitar mandatos de vigilância a um juiz de um tribunal estabelecido pelo Pentágono, o Tribunal de Vigilância de Inteligência Estrangeira (FISA) (iv) , que regula a vigilância e colecção de inteligência estrangeira conduzida domesticamente. Mas este tribunal reúne-se em segredo, sem registo público. Apenas o Juiz do FISA conhece o caso exposto. Tudo indica que os juízes se limitam a aprovar os pedidos: dos mais de doze mil mandatos pedindo escutas, vigilância e buscas, apenas um foi negado. Comparativamente, este tribunal concedeu mais mandatos que os mais de mil juízes distritais do sistema federal.
No final de 2005, o New York Times reportou que Bush havia emitido em uma ordem executiva em 2002 que autoriza a Agência de Segurança Nacional (NSA) a realizar vigilância electrónica sem mandato judicial de pessoas que possam estar ligadas ao al-Qaeda. Ao abrigo desta ordem, foram monitorizadas chamadas telefónicas e correio electrónicos internacionais de milhares de pessoas dentro dos EUA. Igualmente grave: o NYT deteve a notícia durante um ano, a pedido da Casa Branca, que alegou que a sua publicação poria em causa investigações em curso.
Esta Casa Branca tem usado todo o tipo de mecanismos para concentrar mais poder no ramo executivo, desvirtuando o balanço de poderes instituindo pela constituição. Um dos mecanismos é as declarações presidenciais. O Presidente pode aprovar ou vetar uma lei do Congresso. Bush Jr., porem, tem feito uso de um anexo presidencial no qual consta que o Presidente considera existirem problemas na lei e que não é sua intenção cumpri-la ou fazê-la cumprir, ou porque a considera inconstitucional ou por pensar interferir com os seus poderes. Ao não vetar a lei, impede o Congresso de modificar a lei ou aprová-la com maioria de 2/3 sobrepondo-se ao veto presidencial.
Este mecanismo precede a Presidência de Bush (tinham sido emitidas 600 durante todas as anteriores presidenciais), mas ganha com este uma nova vida: Bush Jr. já anexou 800 declarações presidenciais. Entre elas uma que isenta o presidente de cumprir a recente lei regulado a aplicação de tortura, patrocinada pelo Sen. John McCain, outra que o escusa de informar o Congresso sobre quaisquer abusos na aplicação da USA PATRIOT.
Além de concentrar mais poderes no executivo e corroer os mecanismos da sua fiscalização, esta Casa Branca tem infectado os restantes ramos de poder colocando-os sob seu controle. O ano passado teve uma oportunidade histórica para estampar de forma duradoura o Supremo Tribunal dos EUA com uma presença conservadora.
Em Julho de 2005, a Juíza Sandra Day O’Connor anunciou que iria retirar-se (v) , e Bush nomeou John Roberts para a substituir, um juiz distrital conservador com um passado de limitar direitos cívicos, da mulher, dos deficientes, e que serviu no Departamento de Justiça sob Reagan. Porém em Setembro, enquanto Roberts aguardava a conclusão do debate sobre sua confirmação, faleceu o então Chefe do Tribunal Supremo, William Rehnquist. Bush passou então a nomear Roberts directamente para a chefia do tribunal, tendo pedido ao Congresso para apressar a sua confirmação de forma a não deixar o tribunal sem liderança. O momento serviu para abafar dúvidas sobre Roberts e permitiu a sua confirmação, ficando ainda o posto da moderada O’Conner por preencher. Bush nomeou Samuel Alito, confirmado em Janeiro último. Alito foi um dos estrategas legais por detrás dos mais de cem despachos presidenciais que expandiram os seus poderes, permitindo legitimar acções presidenciais, por vezes secretas, sem o consentimento do Congresso. Defende, segundo as suas próprias palavras, “aumentar o poder do Executivo para moldar a lei.”
Assim, sob o novo Tribunal Supremo, de confortável maioria conservadora, existe não só o risco de reverter liberdades reprodutivos (encapsuladas na decisão Roe v. Wade) ou a separação entre estado e religião. Segundo vários analistas, abrem-se as portas para uma profunda alteração da repartição de poderes. Existem vários casos pendentes perante o Tribunal Supremo que poderão cimentar a expansão de poderes presidenciais, entre os quais os casos de Yaser Hamdi e Jose Padilla, ambos cidadãos dos EUA detidos indefinidamente como “combatentes inimigos” e excluídos dos seus direitos constitucionais.
Em Março, entre a controvérsia sobre as vigilâncias, Bush logrou também a renovação do USA PATRIOT, rematando que não se sentia obrigado a obedecer a exigência de informar o Congresso sobre como estão a ser usados os poderes expandidos do FBI. O Procurador-Geral Alberto Gonzalez deixou entender que nem a comunicação com advogados ou médicos estará excluído de intercepção. Tal é a concentração de poderes no Executivo, vários analistas falam já em crise constitucional. As eleições intercalares para o Congresso em Novembro podem contribuir para conter o processo. Mas só se acompanhada por uma resistência popular determinada a defender os seus direitos e a evitar a lenta construção de um totalitarismo sob uma fina máscara democrática.
i “O Onze de Setembro foi um dos raros tremores de terra que causam câmbios tectónicos duradouros a política internacional” Condoleezza Rice, Wall Street Journal, 26 de Março 2003
ii O seu nome mais extenso (Uniting and Strengthening America by Providing Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism Act of 2001) foi propositadamente estruturado para formar um acrónimo a condizer com o espírito do momento.
iii Declarações perante o Comité Judicial do Senado, 6 de Dezembro 2001
iv O tribunal foi instituido pelo Foreign Intelligence Services Act (FISA).
v O Tribunal Supremo é composto por nove juízes, de mandato vitalício, nomeados pelo Presidente e confirmados pelo Senado.