Rui Albuquerque, MCTES empobrece o ensino

MCTES empobrece o ensino

Rui Albuquerque

(in Caderno Vermelho 14, Setembro 2006)

Os resultados começam-se a fazer sentir.

O Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior relegou o Ensino Superior para um plano muito inferior ao que lhe era devido. Passado um ano sobre a eleição a nota é de desapontamento com uma política coerente e de visão, para não dizer independente e de esquerda, que se sonhava que o Ministro Mariano Gago pudesse trazer para a Ciência. E um vergar perante os ditames e a lógica internacional dos modelos de gestão de instituições científicas. Política essa, hoje em dia, distante de uma perspectiva social sobre o papel do ensino e submissa à vontade das empresas, da “economia” e da produtividade. O MCTES alinha pela prática neo-liberal no corte de financiamento e fecho de institutos, no silenciamento da participação estudantil, no empobrecimento da gestão democrática das escolas, na perpetuação da instabilidade do corpo docente, na subordinação dos recursos nacionais de Investigação ao gigante esfomeado da indústria e tecnologia globalizadas e imperialistas.

A realidade comprova que a Ciência e a Cultura requerem uma atenção muito mais forte por parte da sociedade, a começar pelo Estado. Que a participação de mais homens e mulheres na vida escolar ou a fruição de meios de acesso ao conhecimento, investimento que a sociedade faz em si mesma, é um valor a defender, independente dos resultados imediatos que daí advenham. Porque afinal — não há contra-exemplo que nos coíba de afirmar —, é esse investimento, é esse modelo de alargamento e conteúdo democrático, que perdura, transforma e torna possível a dignidade da espécie humana, em harmonia consigo e com o planeta. Por oposição ao modelo elitista, que não cresce e não é sustentável.

Nesta matéria, o Governo não ouve ninguém à esquerda, julga-se detentor da verdade, de competências e amizades ideais, de chaves do sucesso duma nova economia, desta vez baseada numa nova panaceia que dá pelo nome de “inovação”. Mariano Gago não é excepção. Está comprometido com Sócrates na mesma política de roubo e entrega de tudo o que é rentável aos privados, o que não deixa de transparecer na política específica do seu Ministério. Conducente à maior integração dos interesses privados nos meios académicos e ao caminho para a privatização das universidades, que mais tarde, mais à direita, outros, ou os mesmos, poderão folgadamente realizar.

Por outro lado, é justo afirmar que o desenvolvimento científico nacional foi extraordinário nos últimos 32 anos, pelo que os atrasos e insuficiências de que ainda sofre devem ser imputados a muitos outros factores endémicos e forças regressivas — aos quais, afinal, só uma política de firme oposição, de coerência ideológica e de esquerda foi, é e será capaz de ultrapassar.

Política de recursos científicos

É sintomático que este Governo ainda não tenha conferido o direito ao subsídio de desemprego para os docentes do Ensino Superior Público (ESP), como pretendeu defender e como diziam querer os sindicatos da sua área. Aliás, o Partido Socialista chumbou na Assembleia da República, no passado dia 30 de Novembro, a atribuição daquele direito, que dizia defender um ano antes. Esta situação leva ao repúdio total deste Governo e suas promessas para o ES, pois que é sabido que no ES Politécnico mais de 70% do pessoal docente está com contratos a prazo e no Universitário esta cifra chega aos 80%.

É uma situação de discórdia na sociedade, de provocação mesmo, haver tantos jovens licenciados, mestres, doutorados e até já post-doutorados sem emprego, numa altura em que se apela ao crescimento da economia. Para que serve este Governo se não organiza o emprego?! Apropria-se do trabalho dos investigadores bolseiros nos laboratórios e centros de investigação. Congela as carreiras e salários dos docentes e demais trabalhadores do Estado com a legitimidade de todas as maiorias absolutas contra os trabalhadores que passaram pela Assembleia da República. Na verdade, o número de pessoal afecto a actividades de Investigação e Desenvolvimento em Portugal é de 0,47%, enquanto na Europa dos 25, em média, ultrapassa o 1%. Portanto, deviam ser incorporados muitos mais jovens nas instituições de Investigação e ensino, ao contrário do que se está a passar, que é o decréscimo de 14,2% do número de efectivos em I&D no sector Estado em 2 anos, entre 2001 e 2003(dados do suplemento Sup ao Jornal da Fenprof n.205).

É escandaloso que o Governo da política de direita, que diz vir da esquerda, não se interrogue sobre esse cancro que são as propinas no ESP, opção traçada há mais de 15 anos pelo inefável Cavaco Silva, que não teve até hoje um defensor eleito que delas fizesse uma análise honesta, seja nos propósitos, seja nos resultados!

Mas o Governo antecipa o abandono escolar por causa das propinas e adivinha o seu aumento por via do Processo de Bolonha. É vergonhoso que o Ministro Mariano Gago fique como está perante os números de vagas por preencher no ESP.

Neste domínio, da falta de alunos, o que se vê é outro ataque ao Ensino. É outra briga da paixão pela educação, ao estilo do ministro Augusto Santos Silva no tempo do bom António Guterres. Com efeito, é inadmissível que, com ponderadas excepções, se fechem cursos que são essenciais para o progresso de todos e representam décadas de trabalho e conhecimentos acumulados. Porém, até 2009 o MCTES prevê implementar o fecho de cursos não de 10 alunos, mas todos os que não cheguem aos 20 alunos. É falso o seu propósito: a falta de alunos poderia ser muito melhor resolvida, e.g. com um projecto de passagem automática para outras escolas, quando se visse que um determinado curso não consegue criar as condições exigidas para um aluno, que ninguém quer ver isolado dos seus colegas. Isto poderia poupar recursos e aliviar o corpo docente para a sua investigação, nesse ano, não obrigando ao fecho do curso. Os cursos com princípio, meio e fins, não são entes descartáveis.

Aqui chegados constatamos a incapacidade do Ministério em ver que o sistema padece de outro problema. É que a sua análise não vê que nunca há falta de alunos nem o famoso problema demográfico nos cursos, por exemplo, de Direito, gestão de empresas, psicologias ou sociologias. Se há zero empregos nas ciências naturais e físicas e se estas requerem um dispêndio maior de energias, porque hão-de os alunos seguir ciências? E no meio de uma crise, que estímulo e concentração existe para estudar Matemática? Se confiarmos nas classes abastadas para estas tarefas, então é o caos. O Ministério, em vez de criar emprego no Estado e contrariar o modelo económico que destrói a indústria nacional e não perspectiva o futuro, refugia-se na história de que o mercado dita a “empregabilidade” e que, logo, o aluno (cliente) é que justifica o professor. Em consequência, induz na opinião pública(da) a ideia que os graves índices de fraca adesão dos jovens à ciência e engenharias, apesar da propaganda dominante e desta se dizer preocupada com isso, são obra do acaso e da falta de exigência e rigor dos pais dos adolescentes pré-universitários. Mas se até o abandono escolar aumenta no ES…

O que há de facto é fraco investimento financeiro do Estado nas condições de ensino, incapacidade de fazer justiça e uma exploração cada vez maior dos trabalhadores. O Governo trabalha para impossibilitar e quebrar a vontade de progresso da generalidade das famílias.

Processo de Bolonha e internacionalização

No plano da reestruturação de Bolonha o ensino está a sofrer um gravíssimo assalto na sua independência e liberdade, de que a memória nos lembra só ter acontecido em épocas de retrocesso cultural e civilizacional, daquelas em que o nosso país é pródigo. Os cursos iniciais de 3 anos, que insistem em vir a chamar de licenciaturas(!), ainda não foram minimamente justificados. Ou seja, ninguém sabe muito bem para que serve um bacharel, por exemplo, em Física ou Química, que viu passar em três anos um conjunto de ideias de difícil maturação, ainda mais fragmentadas do que aquilo que aprendia em quatro anos. Porque o que está escrito e previsto são, de facto, as reestruturações e aligeiramento dos planos curriculares (embora isso não tenha um décimo da atenção na comunicação social que tem aquela da miríade de jovens a viajar e estudar pela Europa fora, cada vez mais surreal para os estudantes portugueses).

As universidades e institutos, chantageados ora por falta de alunos e “empregabilidade” ora por ameaça de corte no financiamento, procuram resolver por meio de tais reformas uma crise para a qual não contribuíram, e assim, por imposição quase administrativa, vão empobrecendo os seus currículos.

Infelizmente, alguns responsáveis do corpo docente, por vezes como vozes de corpos empresariais inseridos nas universidades, aliam-se na sujeição aos ‘factos’, às ‘estratégias’ e aos ‘descritores’ (daqui ou dali) que lhes impõem. Em particular, a responsabilidade e anuência do CRUP e do CNAVES no empobrecimento dos cursos, de que falamos acima, também deve ser denunciada.

Em nome da “acreditação internacional”, do “desenvolvimento de competências pelos próprios alunos”, do ensino à distância, do “e-learning”, da racionalização de recursos, sempre complementada e salvaguardada pela formação de centros de excelência e de elite, vem o achincalhamento da imagem do ensino presencial, vem o preconceito com o ensino Politécnico e os ataques às escolas mais recentes, naturalmente com menores capacidades, mas que afinal demonstram ter feito os maiores progressos desde o 25 de Abril (por vezes excepcionais, como demonstra por exemplo o estudo “Uma reflexão sobre a história da Universidade de Évora” do qual citamos: «Em 1993, havia na Universidade de Évora um único projecto de investigação Europeu e o número de publicações reconhecidas no UE-ISI era de 67, correspondente ao período de 20 anos (1973-1993). No período de 1993 a 2005 (12 anos) são 630 as publicações reconhecidas à Universidade de Évora, ou seja cerca de 10 vezes mais!»).

Relativamente aos métodos de ensino, ponto felizmente nunca assente mas no qual muitos comentadores de serviço se aventuram, os novos paradigmas daquilo que deve ser um Professor, que aparecem agora para justificar Bolonha, dão-nos uma imagem de fraca dedicação aos alunos e primazia do papel do Investigador. A dedicação ao ensino não é mais vista como o cume da actividade de um professor, aquele momento em que objectivamente cumpre, de facto, uma função social de extrema necessidade. Naturalmente, a classe docente está sujeita à mesma pressão para se orientar pelo individualismo e carreirismo veiculada pela ideologia dominante. («Aprenda a ‘vender-se’ para subir na carreira», um título do DN de 13 de Fevereiro de 2006). Aliás, os critérios de financiamento e avaliação das instituições de ensino regem-se pelos índices de qualidade do seu corpo docente, mas dando privilégio para a parte da Investigação.

Sobre a investigação, muito mais haveria a dizer; desde logo, que ela é absolutamente indispensável no sistema de ES todo e que cada vez há mais espaço para novos intervenientes. O conhecimento evolui, formulando novos problemas. Diz-se que o conhecimento acumulado em todas as áreas está a duplicar todos os dois anos. Há que pôr as questões correctas, não esquecendo Albert Einstein que dizia que os problemas não podem ser resolvidos usando o mesmo tipo de pensamento com que foram criados. Afinal, em Portugal é urgente abrir as universidades aos jovens.

O problema do acesso ao Ensino é um problema que se mantém. De muito maior gravidade que o problema do ensino ao longo da vida e da “reactualização de competências” dos menos jovens, que este Ministério está a tratar, pois trata do direito à igualdade, que a Constituição Portuguesa confere.

O Processo de Bolonha implanta-se em conjunto com uma alienação inusitada das instituições de ensino e centros de investigação às estratégias pouco claras da Comunidade Europeia. Caminhamos para um sistema de subordinação e entrega dos melhores elementos às melhores universidades europeias ao estilo do sistema norte americano, a fim de produzir uma nova potência mundial, ou haverá possibilidade de crescimento para todos baseado num sistema justo e de salvaguarda do interesse nacional: não se pode negar que estes dois modelos estão em aberto, que há contradições entre eles e que o futuro depende da luta e da posição em que os povos se coloquem para o determinar (como em quase tudo, aliás, o que não fica mal lembrar). Para já, pelo exemplo do que foi a integração europeia nos outros sectores da vida nacional, pela negação da discussão havida no seio das escolas e pela condução que os últimos três governos lhe estão a dar, só poderemos estar de acordo com o repúdio geral do Processo de Bolonha.

Gravíssima, entre as medidas tomadas pelo Ministério neste último ano, é a entrega da avaliação das instituições do ensino superior portuguesas à OCDE (Despacho n.º 484/2006, DR n.º 6, II Série, de 9 de Janeiro). Sabemos como essa organização despreza a realidade da vida dos povos, privilegiando os factores económicos, e que se comporta como um organizador do capitalismo a nível mundial, posto em marcha pelos 30 Estados mais ricos que são os seus membros. Só uma grande cegueira ideológica pode justificar a bondade deste acto, que apresenta os contornos habituais de demissão política perante o interesse nacional.

Fala-se na necessidade de idoneidade e experiência reconhecidas. Não bastava o Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior (CNAVES), a Rede Europeia para a Garantia da Qualidade no Ensino Superior (ENQA), a Associação Europeia das Universidades (AEU) e a Associação Europeia de Instituições de Ensino Superior (EURASHE) terem diferentes papéis na avaliação internacional, é mesmo à OCDE que incumbe a “avaliação global do sistema do ensino superior português”. Será por um inconfessável receio do interesse Europeu que se introduz como supervisor o amigo americano? Enfim, venham todos que chega para todos.

Com esta política para o ensino superior, onde cabem os interesses da OCDE, da Microsoft (ao nível do ensino básico e secundário com contratos antigos feitos com o Ministério da Educação e ao nível da formação superior e tecnológica com contratos recentes com o MCTES), do Processo de Bolonha, das universidades privadas portuguesas, dos critérios de reconhecimento e “factores de impacto” escolhidos por multinacionais como a gigante ISI-Thomson, das grandes editoras mundiais como a Springer e a Elsevier que vão abocanhando um cada vez maior número de revistas e publicações científicas outrora independentes, não nos parece que o MCTES possa acautelar e reforçar o sistema de ES Público, num quadro de abertura ao mundo, de independência e liberdade de ensino, de relevância do seu papel social para com o nosso povo. Pela importância e em louvor da coerência citamos com agrado o Ministro Mariano Gago numa intervenção nas comemorações do centenário do nascimento do Prof. Ruy Luís Gomes: «Quando falo de Ruy Luís Gomes é difícil não ver através dele, ou para além dele. Penso nas gerações perdidas no sufoco do fascismo nacional, na ciência tentada e adiada, ou ainda na demonstração repetida, de que infelizmente Portugal dá provas desde a Inquisição, da necessidade absoluta de liberdade para o desenvolvimento científico.»

Perceber Ruy Luís Gomes e negar o debate ideológico actual, pugnar pelo desenvolvimento científico e amputá-lo do seu papel no ensino, eis o caminho por onde não podemos ir.

Lisboa, 13 de Fevereiro de 2006